sexta-feira, 26 de abril de 2019

As cores de Tom e Caymmi na TV americana anos 60


TR

A capa da Ilustrada, o principal caderno cultural do país, é sobre auto tune, pasteurização... Comecei a ler e desisti. Três páginas depois, parei numa matéria de Lucas Fróes sobre Tom Jobim e a participação no programa de Andy Williams, em 1964, três anos antes do maestro soberano gravar com Frank Sinatra. Um vídeo postado no youtube por um japonês é o gancho do texto (há um link pra ouvir, mas não encontrei lá). Fui ao youtube atrás do vídeo e mais detalhes e encontrei.

São imagens coloridas de quando as cores ainda nem sonhavam chegar à televisão brasileira. É interessante perceber que as imagens do nosso maior produto de exportação, a música, só existem as que foram gravadas no exterior. No filme Tropicália, as imagens coloridas de Caetano e Gil, quando no exílio (já no fim dos anos 60), vem da TV portuguesa. O documentário dos Dzi Croquettes utiliza imagens de uma apresentação na TV alemã, no início dos anos 70. Shows de Elis Regina no exterior: os exemplos são muitos.

Voltando a 1964/65 a Andy Williams (1927-2012) e os brasileiros Tom Jobim (1927-1994) e Dorival Caymmi (1914-2008) no The Andy Williams Show. Tom voltou ao programa no ano seguinte, quando Caymmi também cantou lá. E há uma terceira participação de Tom com Andy. Todas estão no youtube (links no final). Os duetos com Andy Williams e o carinho dele com os convidados: exemplos de um tempo de delicadeza que parece ter se perdido.
Tom canta Garota de Ipanema, Samba de uma Nota Só e Bonita. E Dorival Caymmi, Das Rosas e Temporal em versões impecáveis. Vale muito assistir e reparar na troca de olhares, no carinho, entre os convidados e o cantor apresentador. 

Aqui, uma matéria não assinada da revista Manchete sobre a apresentação de Caymmi.
"O rosto de Andy Williams apareceu em close-up na televisão, perante milhares de espectadores. A orquestra, em segundo plano, tocou O Que é Que a Baiana Tem. Andy sorriu e disse: "Vocês se lembram desta música? Ela foi apresentada aqui nos Estados Unidos, em 1939, por Carmem Miranda." Pausa. Depois cantou um trecho de And Roses And Roses e prosseguiu: "Esta vocês conhecem com toda a certeza... Pois o homem que compôs estas duas maravilhosas melodias aqui está, pessoalmente: Dorival Caymmi. Num canto do estúdio, Tom Jobim elevou o polegar direito para Caymmi, encorajando-o. O baiano de cabelos prateados, empunhando seu violão, postou-se sob a luz dos refletores e começou a cantar. Antes que Caymmi concluísse o número, Andy sentou-se a seu lado e começou a cantar a mesma canção, em inglês (Roses and Roses, aliás, é o título de seu próximo disco, a ser lançado dentro de duas semanas nos Estados Unidos."

Os vídeos de Dorival Caymmi e Tom Jobim no The Andy Williams Show













quarta-feira, 10 de abril de 2019

Pernas longas, reformas, bar gay e colaboracionismo



A primeira notícia que leio nessa quinta é sobre o encontro de tchutchuca e marreco de maringá com artistas e empresários pra propagandear reformas e pacote anti-crime -"evento tratado como sigiloso pela assessoria dos dois". Nas fotos nada de tchutchuca que, diz a matéria, "precisou sair mais cedo para viajar aos EUA, foi aplaudido de pé". O destaque vai pros conges marreco destilando sorrisos com as celebridades aderentas. E uma delas me leva aos anos 90 e a um bar gay nos jardins que eu e um amigo chamávamos de "das flores" porque havia umas floreiras tímidas na frente.

Numa noite, no lado de fora que também fazia parte do bar, diante das floreiras observava pela vitrine as dezenas de rapazes que lotavam o apertado Das Flores. E era impossível não notar uma modelo loira, das raras mulheres no local. Dois metros de pernas (na verdade 1,118 metros), ela reinava absoluta bem acima dos rapazes. Só dava a top model, que nem top era ainda e sim uma espécie de revelação das passarelas, cercada por várias sacolas de vedete, como costuma ser a corte de certas celebridades e candidatas a.

Fim do mini-flashback e de volta as fotos, que vieram do instagram da moça pra ilustrar a coluna do jornal. Bem perto de virar quarentona, a modelo do "das flores" agora tem marido empresário-apoiador fiel do presidente que detesta gays e que detesta quase tudo na verdade - menos os milicianos. Ela segue loira e grande e num dos retratos aparece sentada para não destoar da altura da sra marreco. Em outro, está de pé ao lado da colega apresentadora (essa morena) também tipo bem alta e no registro com o marreco há um truque para os dois parecerem da mesma altura. Nem precisava, são todos da mesma altura Casa Grande colaboracionista no país em que a ministra da agricultura. pecuária e abastecimento diz "brasileiros não passam fome porque têm mangas nas cidades". 

terça-feira, 9 de abril de 2019

Oitenta tiros

Recorte da capa da edição de hoje do jornal O Dia

O primeiro tiro veio depois da ordem de comando e quem o disparou assumiu um certo orgulho de ter iniciado o tiroteo (em homenagem a uma tia que falava tiroteio assim). O segundo tiro, com quase um segundo de diferença, acompanhado de um certo "por pouco não fui o primeiro", do portador do fuzil. O terceiro tiro, assim como o quarto tiro e o quinto tiro chegaram empatados e diante dos olhares "droga, chegamos depois" dos que seguravam as armas. Já o sexto tiro, esse veio acompanhado de cagaço, o primeiro em alvo humanos de um quase garoto que nunca foi muito bem nas aulas de tiro. O sétimo tiro surgiu pelo mesmo dedo do que disparou o primeiro, que nem era o melhor nos treinamentos, mas se caracterizava por uma certa ousadia, pelo sangue frio. O oitavo tiro, o nono tiro e o décimo tiro floresceram diante de um "que merda é essa" dos fardados disparadores.

O décimo primeiro tiro esse saiu zunindo e após um "sigam atirando" da voz de comando, invejosa dos snipers que o governador disse já estarem em ação. O décimo segundo tiro, segundos depois, teve o sabor de segundo pro quase garoto encagaçado que disparou o sexto. O décimo terceiro irrompeu sem destaque, quase como ato banal por um soldado que já havia disparado três vezes. Foram também assim, regidos pela banalidade, o décimo quarto tiro, o décimo quinto tiro e o décimo sexto tiro. Enquanto que o décimo sexto tiro teve ecos de 17, o número do presidente que o disparador votara. O décimo oitavo tiro chegou com gosto quase com um tédio por ser domingo, estar de plantão e não poder ir ao parque com a namorada. O décimo nono foi engendrado pelo melhor amigo do que disparou o décimo oitavo e quase com a mesma intenção, só que o ódio dele pelo plantão dominical era de não poder ir ao cinema com o namorado assistir ao filme que eles vinham adiando há semanas. O vigésimo tiro saiu no piloto automático, no puro impulso de cumprir ordens.

Quando o vigésimo primeiro tiro atingiu a lataria do carro branco, o garoto por trás da arma percebeu o buraco que se abrira, quase como uma assinatura dele. O vigésimo segundo tiro errou o alvo e foi parar na parede atrás do carro. O vigésimo terceiro tiro atingiu o homem que dirigia e ele soltou um "ai" horrorizado que não chegou ao soldado que disparou. Era forte o barulho do tiroteio, parecia uma guerra particular contra um carro branco. O vigésimo quarto tiro, o vigésimo quinto tiro, o vigésimo sexto tiro, o vigésimo oitavo tiro e o vigésimo nono tiro foram seguidos pelo barulho de vidros sendo estilhaçados. O trigésimo também, só que o buraco aberto por esse foi apreciado pelos olhos do dedo que acionou o gatilho.

O trigésimo primeiro tiro, o trigésimo segundo tiro, o trigésimo terceiro tiro, o trigésimo quarto tiro, o trigésimo quinto tiro: todos eles vieram seguidos de gritos, de gritos de pavor. Antes do trigésimo sexto tiro, a voz de comando ecoou forte "continuem atirando" e como resposta vieram o trigésimo sétimo tiro, o trigésimo oitavo tiro e o trigésimo nono tiro. O quadragésimo tiro teve o estampido semelhante aos outros e o atirador, o mesmo que cometera o segundo tiro, sabia que era o de número quarenta - uma das manias dele era contar o número de disparos, era assim nos treinamentos. Ao final dizia o número total para o sargento e batia sempre. Era uma de suas habilidades.

O quadragésimo primeiro tiro, o quadragésimo segundo tiro, o quadragésimo terceiro tiro, o quadragésimo quarto tiro, o quadragésimo quinto tiro e o quadragésimo sexto tiro mal foram percebidos pelos dedos que apertaram o gatilho. A banalidade da missão começava a imperar. Já o quadragésimo sétimo tiro, esse foi calculado com precisão: o atirador era bom de mira, mas para se divertir costumava atirar para o alto e não no alvo nas aulas de tiro. Ali, diante daquele carro branco, seguiu o mesmo método: mirava o retrovisor do lado do motorista e pá pá pá. O quadragésimo oitavo tiro levou a assinatura de um garoto que amava Simone & Simaria e todas as cantoras sertanejas. Gostava só das cantoras, não prestava atenção em duplas sertanejas formadas por homens e detestava funkeiros, independente do sexo. O quadragésimo nono tiro e o quinquagésimo tiro poderiam ter suas assinaturas questionadas, talvez tivessem vindo pelos mesmos dedos. Talvez.

O problema dos números ordinais é que depois de uma certa contagem eles ficam quase impronunciáveis, Quinquagésimo não soa bem, Sexagésimo remete a sexo, septuagésimo parece desvio de septo nasal, assim por diante. A partir daqui, os tiros serão nomeados pelo número.

O tiro número 51 soou segundos antes que o atirador percebesse que a porta do alvo, o carro branco, se abria. Foi assim com o tiro número 52, com o tiro número 53 e o tiro número 54, que quase porta já quase aberta. Os olhos do dedo que apertou o gatilho do tiro número 55 perceberam um vulto se esgueirando pela porta dianteira do lado do carona. E assim ocorreu também com os olhos assustados do tiro número 56 e do tiro número 57. Já o que arquitetou o tiro número 58 viu a metade de um vulto que parecia ser de mulher irromper diante da porta aberta. Titubeou cinco segundos antes de apertar o gatilho que abriu mais um estilhaço no vidro traseiro do carro branco. Uma mulher tentava sair do carro e isso perceberam os que arremessaram o tiro número 59 e o tiro número 60, o tal sexagésimo, que lembra sexo.

A mulher que saía do carro era a própria imagem do desespero e com as mos na cabeça, berrava "moço, socorre meu marido" e por muito pouco o tiro número 61 não a atingiu. O tiro número 62 foi pro lado da porta do motorista, o segundo que atingiu o homem. Houve uma pausa pequena nos disparos, não ordenada por voz de comando, mas pela surpresa dos dez atiradores diante da imagem. Nesse quase minuto, outro homem no carro foi socorrer o motorista baleado e outro nas proximidades acercou-se também. Daí veio a ordem clara de continuar o tiroteio. O tiro número 63 não demorou muito, diante de um certo ar de deboche de seu autor. O tiro número 64 e o tiro número 65 vieram juntinhos, cada um pra um lado do carro branco. O tiro número 66 irrompeu fazendo honras ao número da besta e atingiu as costas do homem que tentava socorrer o motorista. O tiro número 67 também atingiu o alvo - o outro homem que se prestava de socorrista. O tiro número 69 e o tiro de número 70 foram decorativos estraçalhando os vidros do carro branco.

Antes do tiro número 71, o disparador, que era negro, chegou a pensar em uma tia que morrera há muito tempo, vítima de uma bala perdida. A mão do dedo que apertou o gatilho pra o tiro número 72 tremelicava e só disparou após uma troca de olhares rapidíssima com o autor do disparo anterior. O tiro número 73, o tiro número 74, o tiro número 75 e o tiro número 76 também foram disparados por mãos tremelicantes e atingiram alvos diversos - dois deles foram parar na porta que se abrira quando a mulher saiu. O tiro número 77 nasceu sob o signo da perplexidade que merda é essa em que fui me meter. Errou o alvo carro branco, agora já não imaculado depois de setenta e sete tiros. Antes de apertar o gatilho pro tiro número 78, o soldado até pensou em mirar na cabeça da mulher. Era o mais treinado, o mais experiente do grupo, medalhas em missões de resistência e sobrevivência e não deixar testemunhas era um dos ensinamentos. O tiro número 79 foi acompanhado pela sensação de "tá acabando essa merda, maldito plantão de domingo" do disparador. E daí veio o octagésimo tiro, o tiro de número 80 e não se sabe quem foi o autor. O soldado que tinha a mania de contar não apenas os tiros que ele disparava (foram dez ali), mas os alheios também, se perdeu (ele contou mais de 80 tiros) e não chegou a fazer a contabilidade com o sargento no fim do fuzilamento, que cessou sem ordem de comando para parar. Assim, como se a missão estivesse cumprida, os alvos abatidos e logo seria hora de voltar pro quartel e aproveitar o tédio do plantão de domingo diante da televisão ou no papo furado com os colegas de farda. 

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...