Aprendi
a gostar das manhãs. Tanto que até dei pra acordar meia hora mais cedo só pelo
prazer de alguns momentos a mais em casa, despertando sem pressa pros afazeres
de todo dia. Na hora de sair pra rua, um quase ritual: ipod no aleatório e vou
prestando atenção naquelas que ele vai escolhendo. A de hoje foi Diga Lá,
Coração, com o Gonzaguinha. “São coisas dessa vida tão cigana, caminhos como as
linhas dessa mão”: atento àqueles versos, no passito a caminho do ponto de
ônibus, observo árvores, prédios e pessoas com quem cruzo praticamente todo dia
e no mesmo horário, alguns com cachorros, uma velhinha com a tratatadora – o maluco
é que a moça tá sempre conversando com alguém e fica lá a velha senhora com o
olhar perdido em algo que adoraria saber o que.
Antes
de dobrar a esquina, o encontro. Uma mulher me aborda para pedir dinheiro. É
negra, ali pelos 25 anos, toda vestida de preto. Tiro o fone do ouvido, cato
moedas no bolso e ela me diz: “moço, tô toda inchada aqui”, e levanta a camiseta e toca por sobre a
legging na altura da virilha. A voz parece saída de algum lugar muito próximo de
onde habita a tristeza mais tenebrosa. “Calma, vai passar”, digo. “Não, não vai
passar”, recebo de volta, com um olhar demolidor fixo no meu e, depois de um
breve silêncio, vem um “tô fedendo”, naquela voz só desamparo. Falo para ela
procurar um abrigo, sei que tem um ali bem pertinho, e me responde com os olhos
algo como “vou fazer isso”.
Mais silêncio entre nós e digo pra ela tentar
pensar em um momento feliz que lhe tenha acontecido. Aqueles olhos negros fixos
nos meus se amainam de repente, agora não existe apenas miséria ali, há um
brilhar, um brilhar triste, mas um brilhar. Mais alguns segundos de silêncio,
olhos nos olhos: “fica com esse momento, pensa nele”, digo antes de seguir o
meu caminho. “Dá um cigarro” e lhe passo o que tinha acabado de acender. “Fica
bem”, digo antes de virar as costas. Ela nada responde, fica ali, parada na
esquina, fumando. Passos lentos, sigo o meu caminho, recoloco os fones no
ouvido, Gonzaguinha ainda está cantando e, de algum jeito muito doido, aquela
mulher triste me acompanha. Tento pensar em algum dos meus momentos felizes (hábito meu para momentos complicados),
não consigo. Ela não me sai da cabeça. São coisas dessa vida tão cigana.