quarta-feira, 19 de julho de 2023

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Garotas Iradas (2001), livro com crônicas e inéditos dela. Estava lá me esperando e é melhor ainda que nas minhas lembranças. A origem das bonecas e a maneira como elas aparecem na vida e obra de algumas lésbicas, a partir de quatro exemplos: as bonecas da escritora Djuna Barnes, o bonequinho do piloto de lanchas "Joe" Castairs, as bonecas sádicas do filme Barbarella e a canção Feiticeira, no primeiro disco de Maria Bethânia. É uma bela viagem ao mundo das bonecas em texto longo (cinco páginas do livro) e saboroso. É tudo de Vange Leonel a partir daqui: 






Quem quer brincar de boneca?

Vange Leonel 

Há alguns anos comecei a perceber em mim um interesse especial por bonecas. Não, meus queridos e queridas leitoras, não fui acometida de uma crise regressiva e nem estou perdidamente apaixonada pela Xuxa! Mas lembro bem que há uns 15 anos, mais ou menos, compus com minha banda de hard-rock, o Nau, uma curta canção bem punk onde cantava “odeio boneca, não quero boneca”. A música, mais que afirmar meu desgosto por essas miniaturas de gente, inanimadas, pretendia ser pequeno manifesto “grrrl” para romper com a figura da mulherzinha fofinha, gentil e feminina que gosta de bonecas e é criada para povoar este nosso planetinha. 

Mas o que pensei na época ser ódio transformou-se numa relação de amor. Não que eu tenha saído por aí comprando e colecionando bonecas: continuo não tendo bonecas e, definitivamente, não gosto de brincar com elas. Se bem me lembro, a única boneca de que gostava era uma bem pequenininha e moreninha que minha mãe guardava no alto de um armário, bem fechado. Por que minha mãe a escondia de mim, eu não sei. Só sei que a boneca no armário transformou-se, a certa altura, numa verdadeira obsessão – Freud explica. 

Muitos anos depois, já em 1994 ou 1995, dei uma entrevista à Sui Generis onde falei abertamente sobre a minha homossexualidade saindo do armário (para o público, pois sempre fui transparente na minha vida particular). Nesta entrevista, resolvi também tirar do armário minha velha conhecida boneca e a revista publicou um texto meu que faz parte de um livro ainda inédito. O texto, chamado Minha Boneca era assim: 

Quando eu era criança não costumava brincar de boneca. Eu corria atrás de uma bola e gostava de jogar vários jogos, mas nunca tive carinho especial por um bebê de plástico ou uma filhinha de pano.

Bizarro é o destino. O tempo passou, eu cresci e fui cada vez mais sentindo saudade da boneca que nunca tive. Agora que sou grande e não gosto de ficar sozinha em minha cama escolhi você para ser minha bonequinha.
Em você eu faço carinho enquanto você me faz companhia. Eu te penteio, eu te visto e dispo todinha e você diz pra mim segredos lindos que só eu consigo ouvir. E ainda por cima – só nós sabemos – a gente é super feliz.


Pois foi assim que saí do armário junto com a minha boneca. Depois desse dia meu interesse pelas relações das mulheres em geral – e as lésbicas, em particular – com suas bonecas aumenta a cada dia. 

O que pretendo investigar aqui, rapidamente é a maneira como as bonecas aparecem na vida e na obra de algumas lésbicas, a partir de quatro exemplos: Djuna Barnes, o bonequinho da piloto de lanchas “Joe” Castairs, as bonecas sádicas da heroína Barbarella e a canção “Feiticeira”, gravada no primeiro disco de Maria Bethânia. Mas antes de me estender sobre estes quatro exemplos, vamos saber um pouco sobre a origem das bonecas. 

As primeiras bonecas de que se tem notícia foram encontradas durante escavações no Egito, em tumbas de crianças, e datam, aproximadamente, de dois ou três mil anos antes de Cristo. Alguns experts afirmam que, antes de virar brinquedo de criança, as bonecas eram usadas para fins religiosos. Aquela pequena figura com cara de gente deve ter exercido um fascínio tão grande nas crianças que o objeto, de religioso, passou a ser de uso específico das menininhas, com grande coração e imaginação infinita. O mais curioso é que esta transição de objeto religioso para foco específico da atenção e do carinho das crianças parece ter acontecido no mundo todo e em várias culturas. Desde a Índia até a Europa, do Japão até a Síria, entre os Incas e os índios americanos, pode-se encontrar todo tipo de boneca, sempre querida pelas crianças e sempre envolvida em simbologias e rituais religiosos.

Que fascínio é esse que a boneca exerce nas meninas e que se espalhou pelos quatro cantos do planeta?


A escritora é Djuna Barnes, que em 1936 publicou sua obra-prima Nightwood, inspirada na sua relação conturbada com a escultura Thelma Wood. Djuna e Thelma viveram juntas por quase dez anos e a cada festa de ano-novo elas davam, uma para a outra, uma boneca. Numa noite, após uma briga, Thelma jogou no chão uma das bonecas de porcelana que as duas colecionavam. A boneca se despedaçou e parece que o amor delas também. A força simbólica do ato precipitou a separação definitiva do casal. Não poderia ser de outra maneira já que, em Nightwood, é inegável a força mítica da boneca na relação amorosa das duas. Em certo trecho, Djuna afirma que “quando uma mulher dá (uma boneca) para outra mulher, ela é a vida que elas não podem ter, é a filha sagrada e profana”. Ou quando conta um dia que chegou em casa e viu a amante, bêbada, “parada no meio da sala, em roupas de menino, balançando num pé e noutro, segurando a boneca que ela nos deu – ‘nossa filha’ – alto sobre sua cabeça, como se ela fosse abatê-la”. Não é preciso nem falar, a boneca é jogada ao chão e se quebra, como aconteceu na vida real entre Djuna e Thelma. Mais adiante no livro Djuna Barnes compara o terceiro sexo às bonecas, afirmando que os dois têm algo em comum: “a boneca porque parece viver, mas não tem vida e o terceiro sexo porque tem vida mas se parece com a boneca”. 

Djuna Barnes, portanto, confere à boneca um lugar especial, fazendo com que ela substitua o filho que não pode ter e comparando a boneca à sua namorada andrógina, ressaltando a plasticidade que é própria tanto da boneca como do terceiro sexo. 


Já o piloto de lancha de corridas Marion “Joe” Castairs preferia um bonequinho. Castairs era  contemporânea de Djuna Barnes e na década de 1930 comprou uma ilha no Caribe, onde se estabeleceu até o fim de sua vida. Vestia-se de homem, fabricava e pilotava lanchas de corrida e chegou a namorar a atriz Tallulah Bankhead e a sobrinha de Wilde, Dolly. Castairs não desgrudava de Wadley, um boneco de couro, presente de sua namorada Ruth. Durante uma briga – veja a coincidência com o caso de Djuna – Ruth danificou Wadley e a partir desta data Castairs nunca mais deixou nenhuma namorada ou amante se aproximar de seu boneco. Depois disso, Wadley tornou-se o verdadeiro objeto de amor de Castairs: era seu alter ego, a ele dedicava festas e fazia extensos ensaios fotográficos mostrando Wadley sob todos os ângulos possíveis, em atividades que nem Barbie sonharia. As namoras de Castairs – todas – sentiam ciúmes de Wadley. Mas o tempo passou, Castairs envelheceu e seu boneco Wadley também: seu coro escureceu, a cabeça caiu e o boneco, sessenta anos depois, estava todo remendado de band-aid. Já à beira da morte, um amigo disse a Castairs “você nunca precisou de ninguém” ao que respondeu: “só de Wadley”. Fiel à sua paixão, ela morreu com seu boneco nos braços e assim foi cremada. 

O boneco de Castairs então, não era um substituto para o filho que não podia e não queria ter – como no caso de Djuna – mas uma projeção sua, um alter-ego, a sua própria imagem em miniatura. Para mascarar sua profunda solidão Joe Castairs criou um ser à sua imagem e semelhança, a quem dedicava cuidados e buscava proteção: Castairs cuidava do boneco que cuidava de Castairs. 


Mas nem todas bonecas são tranquilas e confortadoras. Se essas craiaturas inanimadas protegiam e eram protegidas por donas como Barnes e Castairs, o mesmo não podemos dizer das bonequinhas sádicas do filme Barbarella. O filme, estrelado por Jane Fonda, é uma ficção científica kitsh da década de 1960. O encontro da heroína com as pequenas vilãs acontece quando Barbarella pousa sua nave num planeta estranho e encontra lindas bonequinhas com quem trava uma conversa amigável, achando tratar-se de doces e ingênuas criaturas. Para sua surpresa, as bonecas a amarram numa estaca e a atacam, mordendo Barbarella com seus pequenos dentes de metal. A cena, sádica, tem fortes conotações eróticas: Barbarella não consegue disfarçar a dor e o prazer que sente a cada mordida. Esta cena permaneceu como o único resquício lésbico de Barbarella, já que o diretor do filme, Roger Vadim, resolveu excluir da versão oficial as cenas de lesbianismo explícito entre Jane Fonda e Anita Pallenberg, que fazia a imperatriz do mal. 

Mas voltando às bonecas: Barbarella é enganada por seus instintos pois acreditava que todas as bonecas eram, por natureza, boazinhas. De certa maneira, o encontro da heroína com as bonecas sádicas marca a iniciação de Barbarella no mundo lésbico, um mundo onde as bonecas – e as mulheres – não são como se espera que elas sejam. Assim, as bonecas de Barbarella revelariam um outro traço da dinâmica lésbicas-e-suas-bonecas, um aspecto mais sádico no qual a boneca esquisita e “anormal” representa a profunda recusa de uma mulher a pertencer ao mundo da “normalidade”. As bonequinhas sádicas, então, são para aquelas que se recusam ser categorizadas como “boazinhas”, “doces”, “prontas para o lar” e “prontas para o prazer do homem”. 

No entanto, mesmo quando a relação das lésbicas com suas bonecas parecem beirar o sadismo, a afeição e a paixão por suas queridas nunca deixa de existir. Uma amiga minha – lésbica – conta que, quando pequena, gostava de jogar bola com sua boneca Lili. Não que Lili fosse centro-avante: minha amiga fazia a própria Lili de bola e chutava a boneca para lá e para cá. Pode parecer cruel, mas minha amiga diz que não era maldade, mas uma coisa lúdica – e que Lili adorava ser a bola! 


Partindo do lúdico para o lírico, chegamos finalmente numa das mais belas músicas do cancioneiro popular brasileiro, gravada por Maria Bethânia em seu primeiro disco. A música, Feiticeira, de autor desconhecido, conta a história de uma garotinha e sua boneca – Engraçadinha – a quem dorme agarrada todas as noites. Uma madrugada, ao invés da dona ninar Engraçadinha, é a boneca quem faz a menina pegar no sono. A tragédia se dá quando, impossibilitada pelo sono de cuidar de sua bonequinha, a menina acorda com uma surpresa. No último verso, sabemos o destino reservado às duas: 

Despertando deste sono, 
procurando Para tê-la em abraços
Oh! que dor no coração ao vê-la no chão
Separada em mil pedaços. 

Engraçadinha, depois de ninar quem sempre a ninou, fica desprotegida, cai no chão e se quebra. Novamente aqui a questão do cuidar-se e do cuidar do outro se apresenta como algo inexoravelmente ligado às bonecas. O cuidado é maternal quando se trata da boneca de Djuna Barnes e é obsessivo quando falamos de Joe Castairs e seu Wadley. A falta de cuidado das bonequinhas sádicas alerta Barbarella para um mundo diferente e a distração descuidada da menina da canção “Feiticeira” provoca a morte da boneca Engraçadinha. 

Se o mundo masculino – finalmente avalizado pelo pensamento darwiniano – sempre enalteceu a competição, valorizando aqueles que fizeram algo, alcançaram um posto ou conseguiram feitos importantes, o imaginário feminino parece dar uma importância maior ao cuidado – ou à falta dele. Por isso as bonecas, que cuidam de nós assim como nós cuidamos delas, sempre tiveram um lugar especial nos corações e na vida das meninas do mundo inteiro – e isso vale até mesmo para a mais macha das garotas. Portanto, agarre sua bonequinha (mesmo se ela for de carne e osso) e seja muito, mas muito feliz.

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...