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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Uma visita a Mangueira de Cartola nos anos 40

Que tal um passeio pela Mangueira do começo dos anos 40, com Cartola mostrando como tudo funcionava? E o melhor, há um grito de carnaval à espera, com os compositores, as pastorinhas. Cartola, 33 anos, recebe o americano Aaron Copland, ciceroneado por Villa-Lobos. Não, nada de máquina de tempo. Quem conduz tudo é uma matéria incrível da Diretrizes, lendário jornal/revista de Samuel Wainer, publicada em novembro de 1941. Eram tempos onde se escrevia dança com s, coroa era gíria nova e "cai" era grafado com e, assim: "cae", tudo a ver com os tempos redes sociais. É uma beleza de matéria e traz a letra de um samba de Cartola em homenagem a Getúlio Vargas que não deve ter sido gravado - dei uma busca rápida e não achei referências. Boa leitura. A partir de agora é tudo da Diretrizes. Tudinho.

                                            Mister Copland caiu no samba

Cartola, cercado pelos companheiros, conta ao repórter as esperanças da escola de Mangueira no próximo carnaval. Villa-Lobos e Aaron Copland homenageiam um compositor: Cartola. Villa-Lobos está satisfeito com a recepção que foi proporcionada ao colega americano
O FAMOSO MÚSICO NORTE AMERICANO ASSISTIU AO GRITO DO CARNAVAL NA MANGUEIRA – O TELEGRAMA DE VILLA LOBOS – O POEMA DE ZÉ COM-FOME – CARTOLA E A ALA DOS COMPOSITORES – O CANTO SURPREENDE AO AUTOR DE “SALON MEXICO

Reportagem de Francisco de Assis Barbosa


Bate o tamborim. Ronca a cuíca. O surdo faz pum-pum, marcando a cadência. As vozes estridentes das pastorinhas saltam da única casa iluminada no morro. Misturam-se ao barulho das cuícas, dos tamborins, do surdo.

Meu primeiro amor
Não me olhes assim
Eu já te disse adeus
E os olhos teus

Não cansam de fitar os meus


A mangueira está em festa. À porta do barraco, muita gente ficou espiando o grito de carnaval da escola de samba Estação Primeira. O samba é quente e melancólico.

Fiz mal em te dar o meu amor
Você não merece e não sabe dar
                                              valor
Pensavas que ias me trair
Os prantos que eu derramava
Eram sempre a sorrir...

As vozes morenas cortam a noite.

Os prantos que eu derramavaEram sempre a sorrir...

Cartola e outros rapazes da ala dos compositores da escola de samba Estação Primeira desceram para receber Villa-Lobos, que anunciara a sua visita com um telegrama. Logo depois chegavam os automóveis da comitiva do maestro brasileiro que convidara Aaron Copland e a reportagem de DIRETRIZES para uma audição no morro da Mangueira.


Cartola explicou: 

- Damos hoje o nosso grito de carnaval. A turma ainda não esquentou. Desculpe alguma coisa.
A música do morro parece encantar os ouvidos de Copland.

Os prantos que eu derramava

eram sempre a sorrir...



O CANTO SURPREENDE COPLAND

Genevieve é uma endiabrada fotógrafa
americana. Nem o ritmo excitante do
tamborim conseguiu afastá-la um minuto
sequer da máquina
A princípio, o barulho é infernal. Não se percebe uma palavra do canto estridente. Os tamborins batem com força. São quinze tamborins batendo na pequena sala enfeitada com papel crepom.

Os olhos azuis de Aaron Copland não perdem um só movimento das danças. Os passos são miúdos. E os bailarinos quase não movem os braços largados.
- Há um contraste entre a música e a dança – observa o músico norte americano. A melodia é forte e vibrante, ao passo que a dança é relaxada e lenta.

Na escola, a presença de Villa-Lobos e de Copland não faz diferença. Villa-Lobos chama o rapaz da cuíca.

- Eu não sei tocar direito...
- Não faz mal.
O instrumento delicia Copland. O americano quer saber tudo. Villa-Lobos conta-lhe que o samba na Mangueira é o mais puro, o mais autêntico.
- Interessante, diz Copland. A mim não me surpreendeu a música mas o canto. Esse mesmo tipo de ritmo eu já havia notado em todos os compositores brasileiros.

O repórter intervem:

- Em todos?
- Sim, em todos – responde Copland. Em todos que eu ouvi. Villa-Lobos, Gnatalli, Ovalle, Vianna, Cosme, Guarnieri, Mignone, Fernandes...

O QUE É UMA ESCOLA DE SAMBA
Deixo Copland e Villa-Lobos conversando na sala com Samuel Wainer. Num bar improvisado, encontro Cartola que me informa a organização da escola de dança.
- Somos uma sociedade. Cada sócio paga dois mil réis de mensalidade. A joia custa três mil réis. A escola funciona no tempo de carnaval. Em novembro, começam os ensaios. Hoje, como é o grito, as pastoras não são convidadas a comparecer. Mas de sábado em diante, a coisa é outra. Entram no regime da disciplina.

Pergunto sobre o número de sócios e Cartola me responde:

- Já tivemos duzentos. Hoje não chegamos a cento e vinte.

Dá uma explicação simples do fenômeno:

- Não vê que muita gente tem se mudado da Mangueira. Com essa história de se falar que a favela vai abaixo, o pessoal vai procurar outro pouso para morar. E assim o samba vai morrendo.

Faço que não entendo e a linguagem de Cartola então se torna mais clara e convincente:

- Acabando o morro, o samba também se acaba. E a gente, meu velho, aí vai ter que procurar outro divertimento.

O SAMBA DE ZÉ COM-FOME
Zé Com-Fome, poeta do morro, escreveu um samba bonito em louvor da Mangueira:

Mangueira
Foste tu sempre a primeira.
Quem se muda pra Mangueira,
É verdade,
Leva a vida cheia de felicidade.
Quem se muda de Mangueira
Tem saudade
Voltará ou mais cedo ou mais tarde.


No entanto, Zé Com-Fome se mudou. Mora no Meyer e nunca mais voltou a Mangueira. Peço a Cartola informações sobre a ala dos compositores da escola de samba. É quando o Crioulo (Adriano Gomes da Silva), um preto simpático com poletó de pijama azul, entra na conversa.
- Essa ala é um grupo de rapazes que gostam de fazer as suas bobagenzinhas, as suas coisinhas. Cartola é o nosso mestre.

De fato, a voz unânime é que Agenor de Oliveira, o Cartola, é o maior poeta e bailarino da Mangueira.

- A ala dos compositores, dizem-me, se reúne às 5ªs feiras. É quando nós discutimos os nossos pagodezinhos.
É engraçado ouvi-los falar assim das próprias composições, bobagenizinhas, pagodezinhos...

MAIS IMPRESSÕES DE COPLAND
Tenho que voltar a Copland, que está sentado a ouvir atentamente a melodia patriótica de um poeta chamado Geraldo Diniz.

Ó meu Brasil,
É você sempre altaneiro.
Orgulha-me em ser brasileiro.
Sinto imenso prazer.
És varonil
E tens tudo de riqueza
Quem deu foi a Natureza
Só por você merecer.


Mas Aaron Copland não quer se incomodar com a letra. Está com atenção fincada nos pandeiros e nos tamborins.
- Os negros da América do Norte cantam diferente. É muitíssimo curioso.
Dois cantores se aproximam em homenagem a Copland e a Villa-Lobos.

És varonil

E tens tudo de riqueza
Quem deu foi a Natureza
Só por você merecer, 
Ó meu Brasil...

Quando a música termina, Aaron Copland diz com espontaneidade:
- Eu me esqueci de que isso poderia acabar...

Uma visão a lápis do samba

UM JAZZ PRIMITIVO
O músico norte americano quer saber tudo. Desce comigo ao salão de danças, ao lado da escola. A orquestra toca uma caricatura de Fox-blues. Os pares são muitos e enchem toda a sala. Copland olha, com a sua curiosidade sempre alerta.
Aproxima-se do jazz. Observa longamente os músicos tocando. O homem do piston, o do trombone, o da bateria. Olha, depois, os pares rodopiando com lentidão.
O calor cresceu ali.
Aaron Copland está sério e atento. O ar é pesado e o barulho da orquestra e dos pés se arrastando não deixa conversar. Copland esperou a música acabar e foi saindo devagar.

Comenta, à porta, risonho:

- É um jazz bastante primitivo, não acha?
E logo depois faz-me notar o seguinte:
- Eles dançam com muita distinção. Não há nada de sensual. Os negros norte americanos são selvagens quando dançam o Fox. Os do Brasil são mansos e respeitosos.

HOMENAGEM AOS POETAS
De novo na escola de samba. Há na parede um retrato a mais. É o de Villa-Lobos, a quem a diretoria presta uma homenagem simpática. As pastorinhas estão cantando agora um samba de Carlos Moreira, outro grande poeta da Mangueira, cujo retrato também figura na sala.

Recordar Castro Alves
Olavo Bilac, Gonçalves Dias,
E outros imortais
Que glorificam nossas poesias
Quando eles escreveram
Matizando amores
Poemas cantaram
Mas talvez nunca pensaram
Ouvir os seu nomes
No samba algum dia.


Essa música se chama “Homenagem aos Poetas”. Cartola me conta que outros quadros não foram colocados hoje, na sala de ensaios.

- Retratos de quem?

- De Castro Alves, Gonçalves Dias, Humberto de Campos, Catulo da Paixão Cearense, Olavo Bilac...



AARON COPLAND CAI NO SAMBA
As pastorinhas vão e veem mexendo as ancas. Os cavalheiros dançam também, com os pés agilíssimos. E entre eles está Paulo da Portella, o famoso sambista. Dança que é uma beleza. Faz umas visagens que outros não conseguem fazer.
O samba confraterniza, vem um faz sinal a Aaron Copland e o autor de “Salon Mexico” não foge ao convite. Dança também.
Copland está gostando da música. Cantarola quando o batuque termina. E eu pergunto a ele se escreverá música com motivos brasileiros, como fez com os temas colhidos no México.
- Ainda não sei. Estive três meses seguidos no México. A minha rápida permanência no Brasil não me permite responder-lhe afirmativamente. Só mesmo nos Estados Unidos, com mais vagar, é que poderei sentir e compreender melhor esses ritmos, que são aliás interessantíssimos. E por isso mesmo um verdadeiro desafio para o musicista.

UM SAMBA DE CARTOLA
Villa-Lobos chama-me ao bar:
- Olhe, o Cartola está aí com um samba notável que você precisa ouvir.

- Pois não.
- É em homenagem ao presidente Getlio Vargas, adianta o poeta, que não deixa fugir a oportunidade e se põe a cantar:

Brasil, Brasil,
No progresso que vais
Muito breve serás
A potência universal

Brasil, Brasil
Minha pátria altaneira
És para mim a primeira
E não vejo outra igual.
Brasil, Brasil
Enviado por Deus
Veio um dos filhos teus
E do mal te salvou


Brasil, Brasil
Em tuas páginas de história
Teus filhos gravaram
Mais dez anos de glória.
O teu chefe é um talento
Não descansa um momento
Quer te ver progredir
Coração magnânimo
Enche-nos de ânimo
Para a luta prosseguir.
Delirando orgulhoso
Com seus feitos famosos
Quero alto gritar
Gravem em vossas memórias
Dez anos de glória.


Cuicas, pandeiros e tamborins. O samba chega ao auge. Mister Copland, quase impassível, assiste, até o momento em que o samba também o arrasta para roda

ORGIA É MATO NA MANGUEIRA
Pedro Palheta não é poeta:
- Não tenho coro não senhor. Só se quiser tirar das minhas costas...
E conta ao repórter:
- Escute, meu compadre, já dobrei os quarenta. Hoje sou uma coroa mas a memória ainda trabalha.
Fico sabendo que o rapaz novo se chama estrela. Coroa, como o leitor decerto percebeu, é quem vai ficando maduro.

Cartola me fala das suas músicas:

- “Divina Dama”, “Fita meus Olhos”, “Não faz amor” e muitas outras. Tenho os meus negócios com o Chico Alves que sempre me pagou direitinho e coloca o meu nome nas músicas. “Divina Dama” foi assim. Lá está: música de Agenor de Oliveira. “Não faz amor” foi gravado pela Carmen Miranda, no tempo em que ela estava começando. Não era a Carmen Miranda falada, mas uma pilantra muito errada, aliás.

Crioulo chega perto de mim e diz:

- O senhor quer saber de uma coisa. Aqui, em Mangueira, orgia é mato. Nasce e cresce sozinha. E olhe, meu companheiro, mato é coisa que não falta por aqui.

FINAL DA NOITE
Aaron Copland não fuma e não bebe. Toma água mineiral com sua cara muito parecida com a de Manuel Bandeira:
- Todos me dizem a mesma coisa. Deve ser verdade. E é uma grande honra para mim...
Villa-Lobos desce o morro e esclarece a Copland que o samba carnavalesco não tem o mesmo sabor e a mesma originalidade dos sambas das escolas de samba.
Aaron Copland não esconde a satisfação que teve em descobrir algo novo:
- Não há dúvida, estou gostando muito do samba.
Villa-Lobos leva Copland para o hotel no seu vastíssimo Dodge de sete lugares. Lá em cima do morro, as pastorinhas continuam a cantar:

Mangueira,
Foste tu sempre a primeira.
Quem se muda pra Mangueira,
É verdade,
Leva a vida cheia de felicidade.
Quem se muda de Mangueira
Tem saudade
Voltará ou mais cedo ou mais tarde.


Aaron Copland, no automóvel, fala-nos da semelhança que encontrou entre a música brasileira e a cubana:
- Os ritmos são muito parecidos e eu estou convencido de existir uma relação entre uma e outra música. O canto porém é diferente. A melodia brasileira é mais forte, mais vibrante, mais selvagem.


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