Quatro duplas de Quebra-Cabeça, série de Gilberto Braga
Em O Globo de hoje Gilberto
Braga conta suas primeiras vezes com a TV, como espectador quando ela chegava
ao país e uns vinte anos depois como autor (é um papo com a historiadora Rosa Maria Araujo,
irmã dele, e o link vai no final). O autor de Vale Tudo fala do critico teatral, atividade que
exerceu até começar a escrever para TV (A Dama das Camélias, especial com Gloria
Menezes exibido no fim de 1972 foi a estreia e as novelas viriam logo). Então assinava com o sobrenome materno (Tumscitz) e, além de crítico, também escrevia algumas matérias como repórter na revista
Manchete.
Uma série de reportagens chamada Quebra-Cabeça veio no fim de 1970. Dois nomes conhecidos enfrentavam perguntas
culturais. Eis o elenco: Marilia Pera X Regina Duarte, Betty
Faria X Aizita Nascimento, Dina Sfat X Renata Sorrah, Paulo Gracindo X Sergio
Cardoso, Paulo José X Claudio Cavalcanti, Maria Bethânia X Elis Regina, Nara Leão
x Danuza Leão, Gloria Menezes X Yoná, Tarcisio Meira X Carlos Alberto. As duas
últimas duplas foram os casais mais famosos da Globo lá nos primórdios -Tarcisio/Gloria
vinham de Irmãos Coragem e Yoná/Carlos Alberto estavam na Tupi com Simplesmente
Maria. Os convidados respondiam os questionários separadamente e os encontros só ocorriam para as fotografias e nem sempre. Ao final vinha quem havia "vencido", meio programa de tv.
E como eram as perguntas do Quebra-Cabeça? Eis algumas delas:
Como se chama o bairro
dos estudantes em Paris? Qual o único ato violento de Jesus Cristo?3) Que personagens
simbolizavam a avareza nas obras de Moliére e Walt Disney Quantos filhos têm a
Rainha Elizabeth? Quando, à mesa somos
servidos à francesa, o garçom deve nos servir pela nossa direita ou esquerda? O que quer diz
black-power, young-power e gay power?
Em 1971, Gilberto Tumscitz
passou a assinar outra série e com menor duração: O Conflito das Gerações, com os artistas e
seus filhos. Alguns deles: Paulo Gracindo e Gracindo Junior, Yoná Magalhães e
Marco Antonio, Danuza Leão e Pinky Wainer, Chacrinha e Jorge, Flavio Cavalcanti
e Flavinho, dessa vez traçando perfis das duplas familiares naquele momento. E
sempre em quatro páginas.
Paulo Gracindo, Yoná Magalhães, Carlos Imperial e Chacrinha em O Conflito de Gerações, uma série de Gilberto Braga
Além das séries, Gilberto
Tumscitz escrevia alguns perfis na revista - Elizeth Cardoso e Renata
Sorrah, por exemplo -, além de críticas de shows e peças. Hoje é Dia de Rock
(Zé Vicente), Corpo a Corpo (Oduvaldo Vianna Filho, com Juca de
Oliveira), Abelardo e Heloisa (Com Miriam Mehler e Perry Salles) e de disco, como A
Tua Presença, de Maria Bethânia.
Os Galãs, Esses
Desconhecidos é matéria dessa época, com 6 seis páginas, com um pequeno perfil dos
onze focalizados por Gilberto Tumscitz. Na página dupla de abertura, Tarcisio Meira
("Um galã muito romântico"), Francisco Cuoco ("Aquele Padre
Lindo") e Claudio Marzo ("Vitorioso mas não tanto"), os galãs
mais famosos da Globo naquele começo de década. No elenco de galãs estavam Carlos
Alberto ("Um galã muito intelectual), Claudio Cavalcanti ("Ele surgiu
como um meteoro), Arduíno Colassanti ("Viagem de um pão italiano"), Carlo
Mossy ("Ele perturba as mulheres e os homens"), Paulo José ("Um
arquiteto diferente dos outros"), Jece Valadão ("Ele não é cafajeste
nem quando está dormindo"), Jardel Filho ("Jardel é um galã que
mantém a classe"), Zózimo Bulbul ("Comunicativo, versátil e, além de
tudo, negro"). E muitos dos galãs perfilados viriam a trabalhar nas
novelas de Gilberto Braga.
Os galãs 1971 por Gilberto Braga
O link para a entrevista de Gilberto Braga em O Globo
Foi a primeira cantora (e
compositora, né) que acompanhei desde o surgimento. Por uma questão de idade cheguei
tarde em Maria Bethânia e Gal Costa e até na Rita Lee dos Mutantes e dos três primeiros
solos. Marina não, ouvi a primeira a tocar no rádio (não lembro se Transas de
Amor ou Tão Fácil), comprei no lançamento o primeiro disco e vi o primeiro show
- um projeto Pixinguinha com Zezé Motta e Luiz Melodia e ela de novidade.
Dia desses fiz algo que
vinha ensaiando (Ensaios de Amor é título de canção dela em parceria com Ana
Terra) há tempos: Ouvir os álbuns na ordem em que foram lançados e em LP. Tenho
todos em CD e em LP do primeiro, Simples Como Fogo até Próxima Parada: os dez primeiros anos, de
1979 a 1989. O aparecimento, o estouro a partir do quinto disco (Fullgás, 84) e o último, meio que transição pro próximo sucessão. E tudo na fase
transição de LP pra CD. Uma mudança importante viria no próximo: a incorporação
do sobrenome ao nome em Marina Lima (91) - Ela usava o nome completo na
assinatura das canções desde o primeiro disco.
O Manifesto de Fullgás
E ouvindo os álbuns me
vieram ousadias que Marina trouxe pra música brasileira junto com Antônio
Cícero, irmão parceiro e poeta, hoje na Academia Brasileira de Letras. São
muitas. Abaixo, algumas. Outra "redescoberta" o manifesto (ao lado) dos
irmãos que vinha com o disco Fullgás, o do estouro. É um papel branco, bem
menor que o encarte que vinha junto com o LP e assinado pelos dois. "Como a música é a expressão mais viva da cultura no Brasil, é justamente a ela que os caretas tentam impor a sua "ordem". E a ordem dos caretas é e sempre foi a da fidelidade às tais "raízes" ou "purezas" ou sabemos lá o quê..."
E abaixo as ousadias, dez delas que a lista é
enorme. E no fim, o link pras dez canções citadas.
1 - Palavra vetada pela censura
Alma Caiada, da parceria
Marina e Cícero, seria a primeira canção dos dois gravada - e por Bethânia - se
a tesoura da censura não tivesse agido. A marca da censura ficou em Mais Uma
Vez (Lulu Santos - Nelson Motta, a penúltima do de Fullgás, quando a
abertura política já acenava. E não era proibição de tocar no rádio, era disco
riscado mesmo, pulando a palavra censurada. E qual era a palavra? Não sei até
hoje, imagino que "tesão", que era perseguidíssima. Será? A letra da canção
aparece assim no encarte: "O que eu amo é o amor / Eu desejo o desejo / E
quero sempre, sempre mais querer / Um amor, um... (palavra vetada pela censura)
/ Ou razão ou motivo / Pro riso, isso é o que eu quero mais". E "a
palavra censurada" segue mistério mesmo em tempos de plataformas digitais.
2 - Gay, a palavra
Foi em Quem É Esse Rapaz
(Marina Lima - Antônio Cícero) que ouvi pela primeira vez "gay" e
deve ter sido a vez primeira que, com o sentido de homossexual, aparece na música
brasileira. Tá, pode o de "alegre" da palavra inglesa, mas
basta ouvir pra perceber que é não. "Eu o vejo perto, longe e gay / E vou
prová-lo quente e carinhoso": dizem os últimos versos da segunda de Certos
Acordes (81), o terceiro disco. Anos depois, no final dos 80, a canção seguia embalando pistas de boates gays.
3- Comê-la
Difícil (Marina Lima -
Antônio Cícero) abre Todas (85) e tem o verso "Então pensei: ela é bela
/ Porque não com ela / Sexo é bom." Todas ao Vivo (86), o álbum
seguinte, é a gravação do show e ali Marina escancara o que muita gente já
cantava e o "Porque não com ela" vira "Porque não comê-la"
na repetição do verso ao final. Uma mulher cantando isso era ousadia das
ousadias. E falando "sexo é bom" também. E "sexo é bom" bem poderia ser
o subtítulo de Difícil.
4 - Dama / Homem - Ricardos
/ Solanges
Não Estou Bem Certa (Pedro
Pimentel - Marina Lima) é versão de Sign Your Name, de Terence Trent D'Arby que aponta
pra dubiedade sexual e está em Marina Lima (91), o de Criança e Grávida.
"Tudo que eu pensei ser pra sempre / Eu já nem sei se é mais / Penso na
menina e fico atenta aos braços do rapaz." O refrão: "Será que você
será a dama que me completa? / Será que você será o homem que me
desperta?" E quase no final: "Procurar Ricardos em Solanges nunca me
fez mal."
5 - Nirvana
Everyone is Gay é verso de
All Apologies, uma das mais tocantes canções do Nirvana. Marina, sempre esteve
atenta em Kurt Cobain e o verso é chave em Na Minha Mão, parceria com Alvin L e
faixa de Pierrot do Brasil (98). "O fato é que eu já comecei / A olhar
em outra direção / Se todo mundo é mesmo gay / O mundo está na minha mão"
6 - Sauna Gay
Anna Bella (Marina Lima -
Antonio Cícero) é mais recente, a terceirade Lá Nos Primórdios (2006). Foi composta pra artista plástica Anna
Bella Geiger, que hoje tem 87 anos. "Já que é assim me pergunto / Uma
coisa que pensei / Por que as mulheres também não podem ter a sua sauna
gay?" Já se passaram 14 anos e a pergunta continua na bela canção que é
bem menos conhecida do que deveria.
7 - Bundinhas
Uma Noite e 1/2 (Renato
Rocketh) virou uma espécie de hino do verão, desde que apareceu no disco Virgem
e tem participação do autor nos vocais e no baixo. Era 87 e
"bundinha" não era palavra que frequentasse a música brasileira e nem
top-less. "Não demora muito agora, / Todas de bundinha de fora, / Top-less
na areia, / Virando sereia." E o refrão não fica atrás em deliciosas
ousadias: "Essa noite eu quero te ter / Toda se ardendo só pra mim / Essa
noite eu quero te ter, / Te envolver, te seduzir."
8 - Pátrias, famílias, religiões e preconceitos
Pra Começar (Marina Lima - Antônio Cícero) abre o Todas ao Vivo (86) e
foi tema de abertura da novela Roda de Fogo. "Pátrias, Famílias, religiões
e preconceitos, quebrou não tem mais jeito",provavelmente um dos temas de novela mais
libertários. É daquelas que Marina voltou a cantar, regravou e não costuma faltar nos
shows.
9 - Francisca
É o subtítulo de Me Diga (Marina Lima - Antonio Cícero), faixa de
Setembro (2001). A "ousadia" aqui é pela abordagem social de uma
nordestina há muitos anos no Rio (veio "no tempo em que eu não era
nascida), algo não corriqueiro na parceria dos dois irmãos. E a canção tem trechos recitados por Marina e Cícero. "Entre o
nordeste que deixou na infância/ E o sul que nunca pareceu real / A Francisca
tem saudade de uns lugares / Que passam a existir quando ela os pinta: / São mares
turquesados e espumantes em frente a uns casarões abandonados que, não sei bem
por que, nos desamparam / no meio de algum lugar tão distante."
10 - Coxinhas
O funk Só os Coxinhas (Marina Lima - Antônio Cícero) é do ótimo e
recente Novas Famílias (2018) repleto de novos parceiros e ótimas canções, como
a faixa título, Árvores Alheias (só dela), Mãe Gentil (Arthur Kunz - Marina
Lima -Leticia Novaes) e Do Mercosul (Silva / Marina Lima / Dustin Galan).
"Nunca me senti tão envolvida com o Brasil. (...) Aqui está a minha
trilha para o Brasil de agora. Realista, crítica, porém cheia de amor pra
dar": ela escreve em texto no disco. Só os Coxinhas veio no auge (em um
dos auges) da polarização política e provocou barulho. Como assim, o acadêmico
Antonio Cícero fazendo letra de funk e usando o termo coxinha? Bobagens, meu
filho, bobagens, apenas mais uma das ousadias de Marina Lima, sempre inquieta,
graças aos deuses.
Nada de ensaio. É uma matéria de jornal, uma saborosa página
inteira do Jornal do Brasil em agosto de 1972. Pauta: a mulher na música
brasileira. Entrevistados: Mario Lago, Vinicius de Moraes e Chico Buarque.
Veteranos, Mario (então com 61 anos) fala de Amélia, o hino da mulher submissa que compôs em 42 e Vinicius, 59
anos ali e tinha acabado de parir Samba
da Gesse para a amada, lembra da bossa nova e de outras canções sobre a mulher. O
novato Chico Buarque, 28 anos, fizera há pouco Cotidiano e fala de outras
mulheres de suas canções: Carolina, Januária,
Com Açúcar Com Afeto e Teresa, uma de
suas primeiras e não gravada até então.
A matéria é assinada por Maria Lucia Rangel, que guarda
boas lembranças dela. Foi a sua primeira no Jornal do Brasil e feita "em
experiência", a pedido de Alberto Dines, o editor do Caderno B. A
jovem repórter entrevistou até o pai Lucio Rangel (1914-1979), jornalista,
crítico, escritor, historiador e íntimo da música brasileira.
Abaixo a matéria:
A Letra marca a mulher que passa
Para Mario Lago, autor de Amélia "a mulher de verdade",
feita em 1942, a imagem da mulher na música popular brasileira não se modificou
através dos anos, continuando com "os mesmos elementos de amor e
beleza." Já o poeta Vinicius de Moraes vê esta imagem bem diferente de
alguns anos atrás, mais sofisticada e um pouco assexuada "porque os caras
não curtem mais aquela dor de
cotovelo de antigamente e também pelo deslocamento do nível cultural dos
compositores." Chico Buarque de Holanda preocupa-se em fazer uma crítica à
mulher da Zona Norte e do interior. "a típica mulher de classe média
brasileira", que fica na janela e não entra na realidade da vida.
"Minhas músicas têm todas o mesmo tipo de recado, uma espécie de apelo para
que a mulher venha brigar com a
gente." Mas todos são unânimes em afirmar que o grande tema da música
popular brasileira é a mulher.
O grande tema da música
popular brasileira sempre foi a mulher. Quando não é ela, é a dor de cotovelo.
A não ser em músicas folclóricas e de contestação. A mulher foi cantada de
todas as maneiras e não há compositor que não tenha uma obra dedicada à ela.
Sua imagem passou por diversas fases. Enquanto que antigamente era a chamada mulher da pesada, a companheira que
gostava de apanhar, hoje em dia ela é vista sob um ponto de vista mais
sofisticado, até "mais assexuada", segundo Vinicius de Moraes.
Enquanto Noel Rosa fez a apologia da mulher da Lapa, Chico Buarque confessa que
suas músicas são para a mulher do subúrbio e do interior, numa espécie de apelo
para tirá-la da janela e jogá-la na realidade da vida
AS DEUSAS DA MÚSICA
Ary Barroso
De uma maneira geral, os
compositores sempre endeusaram a mulher, como Ary Barroso e Luis Peixoto em sua
Maria, feita em 31 com o nome de Bahia, mas que ficou famosa em 32,
quando teve sua letra trocada, falando na mulher: "Maria, o teu nome
principia / Na palma da minha mão / E cabe bem direitinho / Dentro do meu
coração..."
Também Lauro Maia e Humberto
Teixeira mostram em Deus Me Perdoe
uma intensa dor de cotovelo: "Deus me perdoe / Mas levar esta vida que eu
levo / É Melhor morrer! / Relembrando a fingida mulher / Que me abandonou /
Mais aumenta a saudade / Que tanto me faz sofrer..."
Já Kid Pepe, Germano Augusto
e Guará fazem o "reverso da medalha", em As Lágrimas Rolavam, mostrando a mulher sofredora, em situação
inferior: "As lágrimas rolavam / na face da mulher/ Que eu mais amava e
deixei / Aos meus pés ajoelhada / Ela me implorava / Implorava / Perdoa!
Perdoa!"
Nássara já era caricaturista
famoso quando, em 1933, chegou ao Café Nice com uma música pronta. Foi gravada
por Mario Reis e Francisco Alves e foi a primeira Formosa da música brasileira: "Foi Deus quem te fez formosa /
Formosa, oi, formosa / Porém este mundo te tornou / Presunçosa,
presunçosa..."
Trinta anos depois, no Natal
de 1963 em Paris, Vinicius de Moraes e Baden Powell faziam a sua Formosa para presentear os amigos
durante a ceia: "Formosa, não faz assim / Carinho não é ruim / Mulher que
nega / Não sabe não / Tem uma coisa de menos / No seu coração..."
Mas a mulher também foi
motivo de brigas e disputas e seus diferentes tipos cantados cada ano. Em 1932,
Lamartine Babo adaptava Teu Cabelo Não
Nega, originalmente dos Irmãos Valença: "O teu cabelo não nega mulata
/ Porque é mulata na cor..." Endeusada a mulata neste carnaval, Lamartine
foi acusado de plagiário e no ano seguinte fez sozinho Linda Morena: "Linda morena, morena / Morena que me faz penar
/ A lua cheia / Que tanto Brilha / Não brilha tanto quanto teu olhar..."
É lógico que depois da
mulata e da morena, as louras estavam sesentindo rejeitadas, e João de Barro, o Braguinha, não perdeu tempo e
lançou com sucesso Lourinha:
"Lourinha, Lourinha / Dos olhos claros de cristal / Dessa vez em vez da
moreninha / Serás a rainha do meu carnaval."
MARIA, A MAIS POPULAR
É difícil um nome de mulher
que não tenha sido cantado no samba. Maria é o mais popular e o que melhor
caracteriza a brasileira e a portuguesa. Depois da Maria de Ary Barroso, Nássara fez Maria Rosa, sobre a qual foram
escritos diversos artigos, tal a zombaria da letra: "Cadê Maria Rosa /
Tipo acabado de mulher fatal / Que tem como sinal uma cicatriz / Dois olhos
muito grandes, uma boca e um nariz."
Enquanto o funcionário
público é chamado de barnabé e é a imagem do homem sacrificado, em 1952 quando
houve uma verdadeira invasão de mulheres nos Ministérios, elas foram
imediatamente criticadas por Armando Cavalcanti e Klecius Caldas na conhecida
marchinha Maria Candelária. Era outra
vez a Maria simbolizando a mulher, só que desta vez causando indignação e
protestos: "Maria Candelária / É alta funcionária / Saltou de para-quedas
/ Caiu na letra o, o, o, o / Começa meio dia / Coitada da Maria / Trabalha,
trabalha / Trabalha de fazer dó..."
A Maria do morro, a
trabalhadora, que não espera nada da vida, também foi imortalizada por Luis
Antonio e J. Junior em Lata D'agua:
"Lata d'água na cabeça / Lá vai Maria, lá vai Maria / Sobe o morro e não
se cansa / Pela mão leva a criança / Lá vai Maria."
Os nomes cantados são
infinitos. Dorival Caymmi tem duas obras primas dedicadas à mulher, as duas com
nomes próprios e falando da mulher cabocla, do Norte: Dora, "Dora, rainha do frevo e do maracatu / Dora, rainha
cafuza de um maracatu..." e Marina,
que consta como o primeiro samba-canção feito no Brasil: "Marina, morena /
Marina você me pintou / Marina você faça tudo / Mas faça um favor / Não pinte
este rosto que eu gosto / Que eu gosto e que é só meu / Marina, você já é
bonita com o que Deus lhe deu..."
Mas foi talvez Orestes
Barbosa quem mais endeusou a mulher na música. Em Serenata ele mostra sua adoração pelo sexo fraco: "Dorme junto
a teus pés o meu ciúme / Enjeitado e faminto como um cão..."
Noel Rosa
Noel Rosa só acertou com mulher na hora de casar. Foi sempre uma vítima de moçãs não muito recomendáveis
e deixa claro seu sofrimento em Julieta,
feita em 31 de parceria com Eratóstenes Frazão: "Julieta, não és um anjo
de bondade / Como outrora sonhava o teu Romeu / Julieta, tens a volúpia da
infidelidade / E quem te paga as dívidas sou eu." Sua idolatria por
mulheres da Lapa também é mostrada em várias composições, como A Dama do Cabaré: "Foi num cabaré
da Lapa / Que eu conheci você / Fumando cigarro / Derramando champanha no seu soiré."
Cartola
No começo do cinema falado,
o filme Divina Dama, fez muito
sucesso e sua música inspirou Cartola, que baseado na mulata brasileira, e não
na loira de olhos azuis protagonista do filme, fez sua Divina Dama: "Tudo acabado e o baile encerrado / Atordoado,
fiquei / Eu dancei com você, divina Dama / Com o coração queimado em
chamas."
Mas existe também o sambista
que não conta nada de suas mulheres e dores, dizendo que o segredo "é pro
fundo das redes." É como diz Herivelto Martins: "Teu mal é comentar o
passado / Ninguém precisa saber / O que houve entre nós dois..."
A febre da operação plástica
foi gozada em algumas marchinhas. Monsueto em Doutor Pitangui parece não estar satisfeito com a nova invenção e
faz sua crítica à mulher: "Levei a Marieta ao Pitangui / Quando voltou não
a reconheci / Cortaram lá, cortaram cá / Agora ela vive a reclamar / Que a sua
caratem Vontade / De sentar pra
descansar."
A MULHER DE VERDADE
Em 42, surgiu Amélia, que virou adjetivo de mulher
submissa e foi um estouro nos padrões musicais da época. Mario Lago confessa
que fez a letra de brincadeira, por causa do Almeidinha, irmão de Araci de
Almeida, que dizia sempre: "Amélia passava, cozinhava, o dinheiro que
ganhava a gente levava." Mario achava que isso dava letra de samba e não
bobeou.
- Na minha opinião - diz ele
- Amélia funcionou porque é o tipo de mulher que fica ao lado do homem em
qualquer situação e as outras músicas da época ainda não exploravam o tema. Mas
ela era calhorda também, porque ao mesmo tempo que era o símbolo da fidelidade,
era igualmente o do conformismo. Para mim, a verdadeira Amélia é a que encoraja
o homem nas lutas por reivindicações. A grande curiosidade é que fiz a letra sem
saber que em 1751 Henry Fielding, autor de Tom Jones, escreveu seu último romance
intitulado Amélia, onde a personagem central oferece um autêntico modelo de
abnegação feminina. Sem saber também que Amélia é nome de origem germânica,
Amalberga, composto de Amal (trabalho) e Berga (amparo, proteção). É como na
música: "Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que
comer / Quando me via contrariado / Dizia - Meu filho o que se há de fazer? /
Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia é que era a mulher de verdade."
Mas Mário Lago não acha que
a imagem da mulher na música tenha sido modificada com o tempo. Continua com os
mesmo elementos de amor e de beleza.
Como símbolo de mulher
sofredora, no mesmo ano de Amélia surgiu
Emília, de Wilson Batista e Haroldo
Lobo: "Quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar / E de manhã cedo /
Me acorde na hora de trabalhar..."
Para o poera Vinicius de
Moraes a visão da mulher na música mudou muito com o nível cultural dos
compositores:
- Já na década de 50 começa
a aparecer a mulher sofisticada, de boate,imortalizada nas músicas de Antonio
Maria, Fernando Lobo e Paulinho Soledade. Mesmo as nossas mulheres, a partir da
bossa nova, já têm um outro gabarito social. Surge a mulher ingênua, a Garota
Zona Sul de Garota de Ipanema:
"Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem
e que passa / Num doce balanço / Caminho do mar..."
A SOFISTICAÇÃO DA MULHER
Mas segundo o poeta, sua
música que mais fez conquistas foi Minha
Namorada, que é bem "a definição poética da garota que a gente curte.
Importante porque marca a distinção entre a namorada e a "amante pra valer".
- Teve até um grupo de bossa
nova que começou a curtir a garota feia, como numa música de Oscar Castro
Neves. Isso tudo fazia parte daquela ingenuidade da época. Me lembro também,
quando tinha uns 15 anos, e começou a se falar em apartamento, telefone, asfalto.
Foi quando apareceu a mulher de piteira, de sinal de rosto e pega-rapaz, que
chamávamos de "belezinha". Orestes Barbosa fala disso numa música:
"Recordo às seis da tarde o apertivo / Depois jantar, cinema, a vida ao
léu / Meu telefone agora vive mudo / O dela sempre em comunicação..."
Até a grã-fina ganhou um samba,
e inspirados em Teresa Souza Campos, Francis Hime e Vinicius de Moraes fizeram Teresa, dedicada à mulher que transa em
gafieira e sociedade: "Chegou, chegou sim senhor / Chegou sem avisar / Fez
um alô pra ioiô / Fez um olá pra iaiá / Depois sambou e sambou / Até o dia
raiar."
- Acho que o samba se
assexuou um pouco. Os caras não curtem mais a mulher com aquela dor de corno de
antigamente. Mas eu continuo fazendo música para a mulher amada. Só componho
apaixonado e fiz o Samba da Gesse com
Toquinho, para minha mulher: "Até parece / Que eu conhecia sempre você /
Que me aparece / Quando eu não via / Jeito de ser..." Quando a tipo
definido de mulher na música atual, acho que não existe. É a que cada um vê.
A visão das mulheres de
Chico Buarque de Holanda é inteiramente diferente da de Vinicius:
- Em geral, as mulheres das
minhas músicas são presas, ficam na janela. Não são independentes. É claro que
faço isso tudo com uma dose de crítica, de chamamento à mulher. Uma espécie de
apelo para tirá-la de casa para a rua. Porque a mulher classe média brasileira
é assim, presa. O problema existencial da garota Zona Sul, de minissaia, para
mim não é importante. Uma das minhas primeiras composições, Teresa, de 64 e que nem foi gravada,
dizia assim: "Ser mulher é muito mais / Que pregar botão..." Carolina, Januária, Com Açúcar Com Afeto e até Cotidiano, que fiz no ano passado, têm o
mesmo tipo de recado: "Todo dia ela faz tudo sempre igual / E me acorda às
seis horas da manhã.."
Mas debochada, amada,
triturada, difamada, julgada, fica a imagem que Sinhô deu à mulher em Gosto Que Me Enrosco: "Gosto que me
enrosco / De ouvir dizer / Que a parte mais fraca é a mulher / Mas o homem /
Com toda a fortaleza / Desce da Nobreza/ E Faz o que ela quer..."
15 CANÇÕES CITADAS NA MATÉRIA
Maria (Ary Barroso - Luis Peixoto) Aqui com Lucio Alves em um álbum só com canções com nomes de mulher no título
Deus me Perdoe (Lauro Maia - Humberto Teixeira) com Ciro Monteiro
As Lágrimas Rolavam com Jayme Vogeler
Formosa (Nássara) _ Francisco Alves e Mario Reis
Formosa (Vinicius de Moraes - Baden Powell)
O Teu Cabelo Não Nega (Irmãos Valença - Lamartine Babo)
Maria Rosa (Nássara)
Maria Candelaria (Armando Cavalcanti / Klecius Caldas)