Nada de ensaio. É uma matéria de jornal, uma saborosa página
inteira do Jornal do Brasil em agosto de 1972. Pauta: a mulher na música
brasileira. Entrevistados: Mario Lago, Vinicius de Moraes e Chico Buarque.
Veteranos, Mario (então com 61 anos) fala de Amélia, o hino da mulher submissa que compôs em 42 e Vinicius, 59
anos ali e tinha acabado de parir Samba
da Gesse para a amada, lembra da bossa nova e de outras canções sobre a mulher. O
novato Chico Buarque, 28 anos, fizera há pouco Cotidiano e fala de outras
mulheres de suas canções: Carolina, Januária,
Com Açúcar Com Afeto e Teresa, uma de
suas primeiras e não gravada até então.
A matéria é assinada por Maria Lucia Rangel, que guarda
boas lembranças dela. Foi a sua primeira no Jornal do Brasil e feita "em
experiência", a pedido de Alberto Dines, o editor do Caderno B. A
jovem repórter entrevistou até o pai Lucio Rangel (1914-1979), jornalista,
crítico, escritor, historiador e íntimo da música brasileira.
Abaixo a matéria:
A Letra marca a mulher que passa
Para Mario Lago, autor de Amélia "a mulher de verdade",
feita em 1942, a imagem da mulher na música popular brasileira não se modificou
através dos anos, continuando com "os mesmos elementos de amor e
beleza." Já o poeta Vinicius de Moraes vê esta imagem bem diferente de
alguns anos atrás, mais sofisticada e um pouco assexuada "porque os caras
não curtem mais aquela dor de
cotovelo de antigamente e também pelo deslocamento do nível cultural dos
compositores." Chico Buarque de Holanda preocupa-se em fazer uma crítica à
mulher da Zona Norte e do interior. "a típica mulher de classe média
brasileira", que fica na janela e não entra na realidade da vida.
"Minhas músicas têm todas o mesmo tipo de recado, uma espécie de apelo para
que a mulher venha brigar com a
gente." Mas todos são unânimes em afirmar que o grande tema da música
popular brasileira é a mulher.
O grande tema da música
popular brasileira sempre foi a mulher. Quando não é ela, é a dor de cotovelo.
A não ser em músicas folclóricas e de contestação. A mulher foi cantada de
todas as maneiras e não há compositor que não tenha uma obra dedicada à ela.
Sua imagem passou por diversas fases. Enquanto que antigamente era a chamada mulher da pesada, a companheira que
gostava de apanhar, hoje em dia ela é vista sob um ponto de vista mais
sofisticado, até "mais assexuada", segundo Vinicius de Moraes.
Enquanto Noel Rosa fez a apologia da mulher da Lapa, Chico Buarque confessa que
suas músicas são para a mulher do subúrbio e do interior, numa espécie de apelo
para tirá-la da janela e jogá-la na realidade da vida
AS DEUSAS DA MÚSICA
Ary Barroso |
Também Lauro Maia e Humberto
Teixeira mostram em Deus Me Perdoe
uma intensa dor de cotovelo: "Deus me perdoe / Mas levar esta vida que eu
levo / É Melhor morrer! / Relembrando a fingida mulher / Que me abandonou /
Mais aumenta a saudade / Que tanto me faz sofrer..."
Já Kid Pepe, Germano Augusto
e Guará fazem o "reverso da medalha", em As Lágrimas Rolavam, mostrando a mulher sofredora, em situação
inferior: "As lágrimas rolavam / na face da mulher/ Que eu mais amava e
deixei / Aos meus pés ajoelhada / Ela me implorava / Implorava / Perdoa!
Perdoa!"
Nássara já era caricaturista
famoso quando, em 1933, chegou ao Café Nice com uma música pronta. Foi gravada
por Mario Reis e Francisco Alves e foi a primeira Formosa da música brasileira: "Foi Deus quem te fez formosa /
Formosa, oi, formosa / Porém este mundo te tornou / Presunçosa,
presunçosa..."
Trinta anos depois, no Natal
de 1963 em Paris, Vinicius de Moraes e Baden Powell faziam a sua Formosa para presentear os amigos
durante a ceia: "Formosa, não faz assim / Carinho não é ruim / Mulher que
nega / Não sabe não / Tem uma coisa de menos / No seu coração..."
Mas a mulher também foi
motivo de brigas e disputas e seus diferentes tipos cantados cada ano. Em 1932,
Lamartine Babo adaptava Teu Cabelo Não
Nega, originalmente dos Irmãos Valença: "O teu cabelo não nega mulata
/ Porque é mulata na cor..." Endeusada a mulata neste carnaval, Lamartine
foi acusado de plagiário e no ano seguinte fez sozinho Linda Morena: "Linda morena, morena / Morena que me faz penar
/ A lua cheia / Que tanto Brilha / Não brilha tanto quanto teu olhar..."
É lógico que depois da
mulata e da morena, as louras estavam se
sentindo rejeitadas, e João de Barro, o Braguinha, não perdeu tempo e
lançou com sucesso Lourinha:
"Lourinha, Lourinha / Dos olhos claros de cristal / Dessa vez em vez da
moreninha / Serás a rainha do meu carnaval."
MARIA, A MAIS POPULAR
É difícil um nome de mulher
que não tenha sido cantado no samba. Maria é o mais popular e o que melhor
caracteriza a brasileira e a portuguesa. Depois da Maria de Ary Barroso, Nássara fez Maria Rosa, sobre a qual foram
escritos diversos artigos, tal a zombaria da letra: "Cadê Maria Rosa /
Tipo acabado de mulher fatal / Que tem como sinal uma cicatriz / Dois olhos
muito grandes, uma boca e um nariz."
Enquanto o funcionário
público é chamado de barnabé e é a imagem do homem sacrificado, em 1952 quando
houve uma verdadeira invasão de mulheres nos Ministérios, elas foram
imediatamente criticadas por Armando Cavalcanti e Klecius Caldas na conhecida
marchinha Maria Candelária. Era outra
vez a Maria simbolizando a mulher, só que desta vez causando indignação e
protestos: "Maria Candelária / É alta funcionária / Saltou de para-quedas
/ Caiu na letra o, o, o, o / Começa meio dia / Coitada da Maria / Trabalha,
trabalha / Trabalha de fazer dó..."
A Maria do morro, a
trabalhadora, que não espera nada da vida, também foi imortalizada por Luis
Antonio e J. Junior em Lata D'agua:
"Lata d'água na cabeça / Lá vai Maria, lá vai Maria / Sobe o morro e não
se cansa / Pela mão leva a criança / Lá vai Maria."
Os nomes cantados são
infinitos. Dorival Caymmi tem duas obras primas dedicadas à mulher, as duas com
nomes próprios e falando da mulher cabocla, do Norte: Dora, "Dora, rainha do frevo e do maracatu / Dora, rainha
cafuza de um maracatu..." e Marina,
que consta como o primeiro samba-canção feito no Brasil: "Marina, morena /
Marina você me pintou / Marina você faça tudo / Mas faça um favor / Não pinte
este rosto que eu gosto / Que eu gosto e que é só meu / Marina, você já é
bonita com o que Deus lhe deu..."
Mas foi talvez Orestes
Barbosa quem mais endeusou a mulher na música. Em Serenata ele mostra sua adoração pelo sexo fraco: "Dorme junto
a teus pés o meu ciúme / Enjeitado e faminto como um cão..."
Noel Rosa só acertou com mulher na hora de casar. Foi sempre uma vítima de moçãs não muito recomendáveis
e deixa claro seu sofrimento em Julieta,
feita em 31 de parceria com Eratóstenes Frazão: "Julieta, não és um anjo
de bondade / Como outrora sonhava o teu Romeu / Julieta, tens a volúpia da
infidelidade / E quem te paga as dívidas sou eu." Sua idolatria por
mulheres da Lapa também é mostrada em várias composições, como A Dama do Cabaré: "Foi num cabaré
da Lapa / Que eu conheci você / Fumando cigarro / Derramando champanha no seu soiré."
Cartola |
No começo do cinema falado, o filme Divina Dama, fez muito sucesso e sua música inspirou Cartola, que baseado na mulata brasileira, e não na loira de olhos azuis protagonista do filme, fez sua Divina Dama: "Tudo acabado e o baile encerrado / Atordoado, fiquei / Eu dancei com você, divina Dama / Com o coração queimado em chamas."
Mas existe também o sambista
que não conta nada de suas mulheres e dores, dizendo que o segredo "é pro
fundo das redes." É como diz Herivelto Martins: "Teu mal é comentar o
passado / Ninguém precisa saber / O que houve entre nós dois..."
A febre da operação plástica
foi gozada em algumas marchinhas. Monsueto em Doutor Pitangui parece não estar satisfeito com a nova invenção e
faz sua crítica à mulher: "Levei a Marieta ao Pitangui / Quando voltou não
a reconheci / Cortaram lá, cortaram cá / Agora ela vive a reclamar / Que a sua
cara tem Vontade / De sentar pra
descansar."
A MULHER DE VERDADE
Em 42, surgiu Amélia, que virou adjetivo de mulher
submissa e foi um estouro nos padrões musicais da época. Mario Lago confessa
que fez a letra de brincadeira, por causa do Almeidinha, irmão de Araci de
Almeida, que dizia sempre: "Amélia passava, cozinhava, o dinheiro que
ganhava a gente levava." Mario achava que isso dava letra de samba e não
bobeou.
- Na minha opinião - diz ele
- Amélia funcionou porque é o tipo de mulher que fica ao lado do homem em
qualquer situação e as outras músicas da época ainda não exploravam o tema. Mas
ela era calhorda também, porque ao mesmo tempo que era o símbolo da fidelidade,
era igualmente o do conformismo. Para mim, a verdadeira Amélia é a que encoraja
o homem nas lutas por reivindicações. A grande curiosidade é que fiz a letra sem
saber que em 1751 Henry Fielding, autor de Tom Jones, escreveu seu último romance
intitulado Amélia, onde a personagem central oferece um autêntico modelo de
abnegação feminina. Sem saber também que Amélia é nome de origem germânica,
Amalberga, composto de Amal (trabalho) e Berga (amparo, proteção). É como na
música: "Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que
comer / Quando me via contrariado / Dizia - Meu filho o que se há de fazer? /
Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia é que era a mulher de verdade."
Mas Mário Lago não acha que
a imagem da mulher na música tenha sido modificada com o tempo. Continua com os
mesmo elementos de amor e de beleza.
Como símbolo de mulher
sofredora, no mesmo ano de Amélia surgiu
Emília, de Wilson Batista e Haroldo
Lobo: "Quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar / E de manhã cedo /
Me acorde na hora de trabalhar..."
Para o poera Vinicius de
Moraes a visão da mulher na música mudou muito com o nível cultural dos
compositores:
- Já na década de 50 começa
a aparecer a mulher sofisticada, de boate,imortalizada nas músicas de Antonio
Maria, Fernando Lobo e Paulinho Soledade. Mesmo as nossas mulheres, a partir da
bossa nova, já têm um outro gabarito social. Surge a mulher ingênua, a Garota
Zona Sul de Garota de Ipanema:
"Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem
e que passa / Num doce balanço / Caminho do mar..."
A SOFISTICAÇÃO DA MULHER
Mas segundo o poeta, sua
música que mais fez conquistas foi Minha
Namorada, que é bem "a definição poética da garota que a gente curte.
Importante porque marca a distinção entre a namorada e a "amante pra valer".
- Teve até um grupo de bossa
nova que começou a curtir a garota feia, como numa música de Oscar Castro
Neves. Isso tudo fazia parte daquela ingenuidade da época. Me lembro também,
quando tinha uns 15 anos, e começou a se falar em apartamento, telefone, asfalto.
Foi quando apareceu a mulher de piteira, de sinal de rosto e pega-rapaz, que
chamávamos de "belezinha". Orestes Barbosa fala disso numa música:
"Recordo às seis da tarde o apertivo / Depois jantar, cinema, a vida ao
léu / Meu telefone agora vive mudo / O dela sempre em comunicação..."
Até a grã-fina ganhou um samba,
e inspirados em Teresa Souza Campos, Francis Hime e Vinicius de Moraes fizeram Teresa, dedicada à mulher que transa em
gafieira e sociedade: "Chegou, chegou sim senhor / Chegou sem avisar / Fez
um alô pra ioiô / Fez um olá pra iaiá / Depois sambou e sambou / Até o dia
raiar."
- Acho que o samba se
assexuou um pouco. Os caras não curtem mais a mulher com aquela dor de corno de
antigamente. Mas eu continuo fazendo música para a mulher amada. Só componho
apaixonado e fiz o Samba da Gesse com
Toquinho, para minha mulher: "Até parece / Que eu conhecia sempre você /
Que me aparece / Quando eu não via / Jeito de ser..." Quando a tipo
definido de mulher na música atual, acho que não existe. É a que cada um vê.
A visão das mulheres de
Chico Buarque de Holanda é inteiramente diferente da de Vinicius:
- Em geral, as mulheres das
minhas músicas são presas, ficam na janela. Não são independentes. É claro que
faço isso tudo com uma dose de crítica, de chamamento à mulher. Uma espécie de
apelo para tirá-la de casa para a rua. Porque a mulher classe média brasileira
é assim, presa. O problema existencial da garota Zona Sul, de minissaia, para
mim não é importante. Uma das minhas primeiras composições, Teresa, de 64 e que nem foi gravada,
dizia assim: "Ser mulher é muito mais / Que pregar botão..." Carolina, Januária, Com Açúcar Com Afeto e até Cotidiano, que fiz no ano passado, têm o
mesmo tipo de recado: "Todo dia ela faz tudo sempre igual / E me acorda às
seis horas da manhã.."
Mas debochada, amada,
triturada, difamada, julgada, fica a imagem que Sinhô deu à mulher em Gosto Que Me Enrosco: "Gosto que me
enrosco / De ouvir dizer / Que a parte mais fraca é a mulher / Mas o homem /
Com toda a fortaleza / Desce da Nobreza/ E Faz o que ela quer..."
15 CANÇÕES CITADAS NA MATÉRIA
Maria (Ary Barroso - Luis Peixoto) Aqui com Lucio Alves em um álbum só com canções com nomes de mulher no título
Deus me Perdoe (Lauro Maia - Humberto Teixeira) com Ciro Monteiro
As Lágrimas Rolavam com Jayme Vogeler
Formosa (Nássara) _ Francisco Alves e Mario Reis
Formosa (Vinicius de Moraes - Baden Powell)
O Teu Cabelo Não Nega (Irmãos Valença - Lamartine Babo)
Maria Rosa (Nássara)
Maria Candelaria (Armando Cavalcanti / Klecius Caldas)
Julieta (Noel Rosa)
Divina Dama (Cartola)
Samba da Gesse (Vinicius de Moraes - Toquinho)
Tereza Tristeza (Chico Buarque)
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