É simplesmente a canção que detonou a bossa nova e depois dela nada foi como antes na música brasileira. Aqui, quem conta o parto em parceria com Tom Jobim é Vinicius de Moraes em uma coluna - imagina o título? Bossa Nova, claro - que ele assinou por pouco tempo no jornal Diário Carioca, ali por 1965. É uma maravilha acompanhá-lo a compor os versos famosos ("acho que em toda minha vida de letrista nunca levei uma surra assim"). Na foto abaixo, os parceiros em 1959, três anos depois do nascimento de Chega de Saudade. E depois da foto, tudo foi escrito por Vinicius de Moraes.
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Fotos de Paulo Namorado - Revista O Cruzeiro, 1959 |
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Nesse mesmo ano de 1956,
Tom, depois de preparada a partitura da minha peça Orfeu da Conceição, resolveu descansar em Poço Fundo, lá pelos
lados de Itaipava onde seu pai tem um sítio. Quatro sambas (os nossos primeiros),
haviam saído dessa safra, todos para o Orfeu: Se Todos Fossem Iguais a Você,
Lamento no Morro, Mulher, Sempre Mulher e Um Nome de Mulher. Minha valsa
Eurídice seria usada como o tema da mulher amada. Tudo andava sobre rodinhas e
eu, uma vez escolhido o diretor e os atores, achei-me no direito de ter uma
angina de garganta, que me bateu na cama.
Foi no meio dessa angina que
Tom, de volta da montanha, chegou à minha casa na rua Henrique Drummond,
sentou-se ao meu lado, e depois de um papo manso, pegou meu violão e pôs-se a
tocar um sambinha que logo me alertou o ouvido.
- Você gosta? – perguntou-me
ele ao terminar.
- Faz de novo.
Tom repetiu-o umas dez
vezes. Era uma graça total, com um tecido melancólico e plangente; e bastante “chorinho
lento” no seu espírito. Eu fiquei de saída com a melodia no ouvido, e vivia a
cantarolá-la dentro de casa, à espera de uma deixa para a poesia. Aquilo sim,
me parecia uma música realmente nova, original: inteiramente diversa de tudo que
viera antes dela, mas tão brasileira quanto qualquer choro de Pixinguinha ou
samba de Cartola. Um samba todo em voltas, onde cada compasso era uma queixa de
amor, cada nota uma saudade de alguém longe.
Mas a letra não vinha. De
vez em quando eu me sentava à minha mesa, diante da janela que dava para o
Contry (hoje a casa foi, é claro, transformada em mais um prédio de
apartamentos...) e tentava. Mas o negócio não vinha. Acho que em toda minha
vida de letrista nunca levei uma surra assim. Fiz dez, vinte tentativas. Houve
uma ocasião em que dei o samba como pronto, à exceção dos dois versos finais da
1ª parte, que eu sabia quais eram, mas que não havia maneira de encaixarem na
música, numa relação de sílaba com sílaba. Eu já estava ficando furioso, pois Tom
embora não me telefonasse reclamando nada, estava esperando pelo resultado.
Uma manhã, depois da praia,
subitamente a resolução chegou. Fiquei tão contente que cheguei a dar um berro
de alegria, para grande susto de minhas duas filhinhas. Cantei e recantei o
samba, prestando atenção a cada detalhe, a cor das palavras em correspondência
à da música, à acentuação das tônicas, aos problemas de respiração dentro dos
versos, a tudo. Queria depois dos sambas do Orfeu apresentar ao meu parceiro
uma letra digna de sua nova música: pois eu realmente a sentia nova, caminhando
numa direção a que não saberia dar nome ainda, mas cujo nome já estava
implícito na criação. Era realmente a bossa nova que nascia, a pedir apenas, na
sua interpretação, a divisão que João Gilberto descobriria logo depois.
Entitulei-o Chega de Saudade
recorrendo a um dos seus versos. Telefonei para Tom e dei um pulo a seu
apartamento. O jovem maestro sentou-se ao piano e eu cantei-lhe o samba duas ou
três vezes, sem que ele dissesse nada. Depois, vi-o pegar o papel, colocá-lo
sobre o piano e cantá-lo ele próprio. E em breve chamar sua mulher em tom
vibrante:
- Teresa!
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