domingo, 26 de agosto de 2018

"Só a poucos conto a verdade": minha entrevista com Clarice Lispector

Fotografada na sala de seu apartamento pela amiga Olga Borelli, por volta de 1976/77


As perguntas são minhas. Todos os pontos, travessões, aspas e colchete - sim, colchete - são de Clarice Lispector. E foi em 1977, o ano em que ela morreu (em 9 de dezembro), esse encontro que nunca houve. Dois, na verdade. O primeiro, em julho, rendeu as duas primeiras perguntas e as demais, no final quando outubro se aproximava do final.
Agora sério: As respostas foram  retiradas de duas colunas que ela escreveu no jornal Última Hora, o último em que colaborou. Essas colunas estão pela primeira vez em livro no Todas as Crônicas, saindo pela editora Rocco e, para mim, são a cereja do livro, junto com as 13 para a revista Jóia (1968/69). Segue a "entrevista". E ao final, o link para observações sobre a falta de cuidado editorial de Todas as Crônicas que escrevi aqui.

Primeiro foram as crônicas no Jornal do Brasil, depois seus textos nos shows de Maria Bethânia e quem sabe, no futuro, algo que a gente nem pode imaginar agora espalhe ainda mais seus escritos. (nota: em certo exercício de futurologia eu tentava (será?) falar das redes sociais e da 'popularização' de Clarice por elas) Fale sobre 'a questão do perigo de popularizar-se'?
Até que ponto o que se torna conhecido provoca algum descrédito? Suspeita-se daquilo que todos gostam e do sucesso. Verdade é que, pelas muitas vezes em que essa desconfiança acerta, há muitas vezes em que não. Mas, à parte o natural esnobismo a que temos direito - por termos tantas vezes sido vítimas de nossos próprios enganos - à parte disso, a verdade, que nem por ser imponderável deixa de ser real, é que a popularização afeta a coisa escrita.

'A popularização afeta a coisa escrita': interessante isso.
O desvirtuamento feito pela interpretação de muitos agrega-se à obra como um pó, e a partir de certo ponto ninguém mais tem a oportunidade de ler o livro no seu original. O que X entende de um livro altera dele intimamente o sentido quando chega a vez de Y.

Vamos Ler, 1945
Clarice, e se eu lhe dissesse 'em tal livro encontrei uma coisa tão semelhante ao que você escreveu, que parecia escrito por você'?
Eu poderia ficar triste? Ah, tão pelo contrário: encontrei no mundo alguém que é eu. A confirmação de minhas suspeitas, meus pensamentos nunca passaram de fortes ou fracas e enviesadas suspeitas, nascidas de uma desconfiança de quem olha para um lado e para outro antes de tentar entrar. E eis que alguém num livro está me dizendo: pois é verdade, criatura, pois se eu também....

É verdade que você levou um tempo para descobrir Fernando Pessoa?
Embora só tenha lido trechos de Fernando Pessoa, quando comecei tão tarde a ser introduzida no seu mundo por uma amiga, assustei-me deveras: não quero saber mais, senão para sempre sairei de meu mundo, encantado e tortuoso de suspeitas, e entrarei por uma claridade que temo - pois, sem saber explicar, parece-me que a claridade nega a si mesma.

A estante biblioteca de Clarice
Clarice, você é uma pessoa altamente intelectualizada...
Uma amiga erudita, mas que não foi afetada pela erudição, me conta um boato que deveria ser mais certo que a realidade: muitos pensam que sou altamente intelectualizada e que tenho grande cultura. "Mas você", diz ela com carinho, "devia pelo menos, não só para se envergonhar diante dos outros, dar um jeito melhor na sua estante, é uma biblioteca muito desfalcada demais." Conto-lhe então que um homem de letras me disse: "Gostaria de ver sua biblioteca para entender finalmente onde você se inspira para suas coisas." Diz minha amiga: "Você vê que tenho razão."

E isso preocupa você?
Brinco toda secreta de deixar que pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser realmente uma "desfalcada" - em outras coisas me dói - estou pura para sentir o gosto do logro. É que também é muito bom enganar, conquanto que a pessoa não engane a si mesma. Só a poucos conto a verdade. No começo tentei dizer a verdade: mas tomavam como modéstia, mentira ou "esquisitice". E desse tipo de contar a verdade não gostei. De modo que passei a me calar. Só a poucos digo a verdade. Essa minha amiga já me diz hoje tranquila: "O escritor tal, no seu livro...", interrompe-se e sem escândalo me pergunta: "Você já ouviu falar nele?"

E o que diria para as pessoas "logradas" por você?
Mas bem que queria deixar um testamentozinho exatamente para as pessoas involuntariamente logradas por mim: Deixo-lhe minha incultividade que em si não me deu nenhum gosto e até muitas falta me fez, mas deixo-a [para o senhor], pois foi tão bom que o senhor não a supusesse: deixo-a intacta, pronta para ser transmitida, A cultura não se lega, porque a pessoa mesmo tem que trabalhá-la, mas a vantagem de uma relativa incultura é que se pode entregá-la a outra pessoa... eu bem sei que triste legado.

E aqui, o link para "Livro reúne quase todas as crônicas de Clarice Lispector





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