quarta-feira, 18 de julho de 2012

De oráculo, índios e Bethânia

Todo dia é assim: De manhã, ainda no elevador, aciono “música aleatória” no ipod e atento à primeira como se oráculo fosse. Tem vezes que nada acontece, mas em muitas vêm canções pra se prestar atenção. Hoje foi assim. Não propriamente uma canção, mas um texto – Texto do índio, que eu nunca tinha ouvido com atenção. Que texto é esse? Bom, fez parte de Estranha Forma de Vida, show de Maria Bethânia de 1981, nunca lançado em disco. É o texto-carta de um chefe índigena americano que, há 150 anos atrás, “antevia toda a salada ecológica que o homem branco começava a preparar”, nas palavras de Fauzi Arap, o diretor do show.


Estranha Forma de Vida não é Drama nem Rosa dos Ventos, mas é show encantado. De nunca gravadas, Bethânia canta por exemplo Bastidores e muitas do Chico da Ópera do Malandro – Tango do Covil, O casamento dos Pequenos Burgueses, Terezinha, O Meu Guri, Geni e o Zepelin. Mais? Tem A Volta do Boêmio, Se Eu Quiser Falar com Deus. E textos? Além do antológico do índio tem um da Clarice Lispector: “Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente. 

Abaixo está o Texto do Índio inteiro. Começa com uma introdução e depois aquela voz vai recitando aquelas palavras e você se arrepiando. Mas não precisa ficar imaginando não. Estranha Forma de Vida está disponível na rede e dá para baixá-lo na íntegra,  gracias ao ótimo site Maria Bethânia Re (verso) que têm outros espetáculos históricos de Maria Bethânia, aqueles que pensava que nunca ia ouvir. 

Texto do Índio:
Em 1854, há mais de 120 anos atrás, o presidente dos Estados Unidos fez uma oferta aos índios para a compra de uma grande extensão de suas terras, oferecendo em troca a concessão de uma outra reserva. A resposta do chefe índio, recentemente difundida pelas nações unidas, é considerada um dos mais belos pronunciamentos já feitos em defesa do meio ambiente.

"Como se pode comprar ou vender o firmamento? Essa ideia é desconhecida para nós. Se não somos donos da frescura do ar e do fulgor das águas, como poderão ser comprados? Cada porção dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada brilhante mata de pinheiros, cada grão de areia nas praias, cada gota de orvalho nos escuros bosques, cada colina e até o som de cada inseto, tudo é sagrado ao passado e à memória do meu povo. Os mortos do homem branco esquecem o seu país de origem quando empreendem seus passeios entre as estrelas. Os nossos mortos, no entanto, não podem nunca esquecer essa bondosa terra, pois que ela é a mãe dos pele-vermelhas. Somos parte da terra, assim como ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs, os escarpados penhascos, os úmidos prados, a grande águia, o calor do corpo do cavalo, o homem, todos pertencemos a mesma família.


Por tudo isso, quando o grande chefe de Washington nos envia mensagem de que deseja comprar nossas terras, ele nos está pedindo demasiado. Também nos diz o grande chefe que nos reservará um lugar onde possamos viver confortavelmente entre o nosso povo. Ele se converteria em nosso pai e nós em seus filhos. Por isso consideraremos a oferta para comprar nossas terras, mas se lhes vendermos a terra devem ensinar a seus filhos que são sagradas. Os rios são nossos irmãos e também são seus. Portanto devem tratá-los com a mesma doçura com que se trata um irmão. Mas isso talvez seja porque o índio é um selvagem e não compreende nada. Que o barulho somente parece insultar nossos ouvidos. Depois de que serve a vida se o homem não pode escutar o grito solitário do noite bó? O ar...O ar tem um valor inestimável para um pele-vermelha já que todos compartilham do mesmo alento, a besta, a árvore, o homem: todos respiramos o mesmo ar. 

O homem branco parece não ter consciência do ar que respira, como um moribundo que agoniza durante dias insensível ao fétido odor. Eu vi milhares de búfalos apodrecendo nos prados, mortos a tiros pelo homem branco de um trem em marcha. Eu sou um selvagem e não posso compreender como uma máquina fumegante pode importar mais que um búfalo que nós matamos apenas para sobreviver. O que seria do homem sem os animais? Se todos fossem exterminados o homem também morreria de uma grande solidão espiritual. Porque tudo que suceder aos animais também sucederá ao homem. Tudo está entrelaçado. O homem não teceu a trama da vida, ele é somente um rio. Tudo que ele fizer com a trama ele fará a si mesmo. Tudo está entrelaçado. Tudo que correr à terra ocorrerá aos filhos da terra. Contaminem os seus leitos e uma noite perecerão afogados em seus próprios resíduos. Aonde está a floresta espessa de escuridão? Onde a grande águia nos apareceu termina a vida e começa a sobrevivência." (E Bethânia emenda o texto com Rosa dos Ventos).

E no vídeo abaixo, o show Estranha Forma de Vida Inteiro. Bethânia começa a dizer o texto mais pro final, a partir de 1:27:58


3 comentários:

fu disse...

como é bom ser sua amiga para não deixar a vida passar sem esse encantamento.

Luis Santos disse...

Como é bom, mesmo sem ser seu amigo, te descoberto e te conhecido. Seu blog faz parte agora, com carinho, das minhas assinaturas...

alex stazenco disse...

ótimo!

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