sábado, 5 de abril de 2014

"O meu cão é o meu país": José Wilker na Playboy, em 1985


Li quando saiu e nunca esqueci a entrevista que José Wilker, morto hoje, deu para a Playboy, em outubro de 1985. Era o auge da novela Roque Santeiro, ele acabara de filmar O Homem da Capa Preta e fazia a peça Assim é se lhe Parece, com Ary Fontoura, Nathalia Thimberg e Henriqueta Brieba. Quem o entrevistou foi Nirlando Beirão e começava assim: “O pessoal da televisão diz que você é meio louco. Você é louco?”. Resposta dele: “Não sou, não”.  Joguei a revista fora, mas as 12 páginas da entrevista seguem comigo e já reli muitas vezes. Abaixo, vou copiar alguns trechos sobre loucura, política (o militante do Partidão quando garoto no Recife), os anos 70, drogas... 

O Pessoal da televisão diz que você é louco?
Não sou, não.


Então, já foi.
Nem fui. Eu nunca joguei dinheiro fora, nunca falei sozinho, nunca andei nu na rua. Sabe o que é? Há dois padrões que valem há mil anos. Primeiro, artista tem que ser estranho, é uma pessoa que não tem uma vida normal. O outro é o que determina que a pessoa que não se comporta segundo esses padrões só pode ser louca. Um ator não precisa necessariamente ser desvairado. Só que, pelo tipo de seu trabalho – é uma pessoa que se divide em duas -, ele nunca vai se comportar exatamente como um secretário ou um médico homeopata. Por isso é que, às vezes, um artista se dá ao luxo de tomar uma atitude mais extravagante, porque sabe que vão justificar, “deixa, é um artista”. Mas isso é mais malandragem que convicção.


Louco por convicção, como é?
As pessoas que não se comportam segundo os padrões não precisam, não merecem e não devem ser classificadas da forma como a gente as classifica. Eu tenho convicções rigorosamente diversas das convicções padrões. Eu não acredito que possa ter qualquer vislumbre de salvação me comportando como a maioria da classe média. As convicções dessa classe média me parecem deletérias. Não gosto, acho chato, entediante. É convicção de classe média que o casamento é um vínculo absoluto que se deve respeitar? Eu caso, e desrespeito. Para que fique bem claro que meu casamento é uma paixão, e não um contrato social. Está estabelecido que é responsabilidade do cidadão defender a pátria? Então, eu sou insubmisso. Não tenho que defender porra nenhuma de pátria, se ela não é exatamente a minha pátria. E esse lugar aqui, durante muito tempo, não foi a minha pátria, foi apenas o quintal de três ou quatro babacas. Eu desrespeito rigorosamente, e pago a pena de desrespeitar.

Você está dizendo que não serviu o Exército?
Eu não podia servir à pátria dirigida por esses generais que a governaram por um tempão. Imagine se eu tivesse ido, no momento em que invadiram a Nicarágua... Nicarágua não, a República Dominicana, defendendo os interesses dos Estados Unidos, servindo à minha pátria. Agora, sou capaz de me comover com o desfile de Sete de Setembro. Acho bonito aquele monte de caras marchando. Também acho muito babaca aquele monte de caras marchando. Mas acho bonito também.
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Tem gente que acha que você está imitando o Jack Nicholson, no Roque. Pode ser?
Sou mais o Marlon Brando.
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Você não estava na linha de frente das diretas. O que houve: você tem um certo recatamento na política?
Eu fui a alguns comícios e me comovi enormemente no comício da Candelária. Eu pude atravessar todo o comício, da Central até a Candelária, sem dar um autógrafo. A multidão estava ali para um ato político.

Você falou?
Fui ao palanque, ia falar, a Christiane (Torloni) disse que a relação dos artistas estava muito grande, que eu fosse breve. Eu pensei: “Ótimo, não preciso falar”. E desci lá para baixo. Mas me comoveu também, encontrar o Arraes (Miguel), encontrar o Prestes (Luís Carlos).

Você fez campanha para o Arraes, quando garoto, não fez?
Com 13, 14 anos, no Recife, fiz campanha do Arraes para prefeito, para governador, fiz campanha para o marechal Lott.

Você, garoto, tinha que posição política?
Eu era do Partido Comunista Brasileiro, o Partidão, que até 64 era a coisa mais revolucionária que o país tinha. Em segundo lugar, vinha a UDN...

Não é à toa que a esquerda perdeu em 64.
Não deu certo no Brasil, mas, no Recife, deu sim. A gente fez um trabalho, no Movimento de Cultura Popular, do Arraes, que se tivesse continuado, com a devida seriedade e o devido senso de humor, seria fantástico. Acredito que o que faltou ao Partido e à esquerda brasileira foi, primeiro, seriedade, segundo, senso de humor. Você não é sério se não tem senso de humor.
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No Recife, como foi a vida de militante?
Morávamos uns três ou quatro garotos num chatô, como se chama lá, uma espécie de casinha de madeira em cima do último andar de um puteiro qualquer da zona. A gente tinha uns dois ou três livros, uns dois ou três discos, inclusive um que as putas adoravam, o Rodolfo Mayer dizendo As Mãos de Eurídice, e umas cento e tantas garrafas de cachaça, além de quilos e quilos de pão, e o tempo todo para falar besteira, sacanagem. As putas ficaram amigas e, de vez em quando, preocupadas com o estado de prostração causado pelos porres, nos davam gemadas e diziam: “Fora, o pessoal está esperando para o comício”.

Do Partidão.
É. Eu era membro do Comitê Estadual do Partido Comunista, secção de Pernambuco, junto com o Gregório Bezerra, o David Capistrano, o Hiram Pereira, todos esses ilustres mortos, o Paulo Cavalcanti, etc.

Você convivia com eles?
Convivia. Nos comícios, o Gregório me anunciava assim: “E, agora senhoras e senhores, vai falar um garoto”. Eu ficava puto. Eu dizia para ele: “Pô, não me chama de garoto, eu sou homem”. Ele: “Não, você é garoto sim”. Aí, um dia, eu comecei um comício em Casa Amarela mais ou menos assim: “Camaradas, aqui, nesta praça, onde futuramente tremulará a bandeira vermelha da foice e do martelo, redentora da classe operária...” Acabei com o comício, bicho. Não deixavam mais eu falar.
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Você é da geração de 68, da geração da Revolução. Desistiu?
Hoje, a revolução para mim, é uma coisa muito objetiva. Ela começa na minha casa, no meu dia-a-dia. Não faz sentido, para mim, que uma pessoa tenha um discurso público libertário e seja um repressor com a mulher e os filhos. Minha revolução começa na forma como eu me relaciono com o meu cão, passando pela relação com minha mulher, com minha família, com os meus amigos e, finalmente, com o meu país. O meu cão é o meu país.

Você sempre foi assim?
Olha, por mais que eu seja um cara de cabeça aberta, eu já me vi, de repente, fazendo parte dessa confraria franciscana. Não quero que suma da minha memória, por exemplo, o fato de que, na minha origem, como membro do Partido Comunista, no Recife, eu votei a favor de que se expulsasse do partido um homossexual, e disso nunca vou me perdoar.
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É verdade que você foi a uma reunião seríssima, da Globo, usando batom?

Eu fazia uma peça chamada A China é Azul, né? Aí, um dia antes da estreia, o Rubens (Correia), que dirigia a peça e também era ator, falou: “Pô, ficava bonito se a gente pudesse usar, todos nós, batom”. Era um espetáculo cubista, com as figuras multifacetadas, aí ficava legal haver alguma coisa que fosse usada pela Tetê Medina, pelo Rubens, por mim, pelo resto do elenco. Então, a gente pintou a boca, só que pintou com batom encontrado na esquina, um batom que não saía. Aí, eu tinha duas saídas: ou limpava com palha de aço a minha boca, toda noite, ou assumia aquilo pela temporada da peça.
Aí você ficou de batom alguns meses?
... e fui trabalhar normalmente, na Globo, de batom, e você não vai acreditar, bicho, mas ninguém reparou que eu estava de batom. Ninguém. Todo mundo fingia que não via. Até que o Daniel (Filho, então diretor de novelas) me puxou pelo braço e sussurou no meu ouvido: “Se manca, bicho, você está de batom”. Foi um alívio para mim.
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Tem uma história que você ficou nu numa festa. É verdade?
É, eu estava a fim de uma moça que estava casada com outra e eu fiquei sentado no quarto dela, na cama das duas, dizendo que ela tinha que casar com um homem, e não só argumentei como tirei a minha roupa e, de repente, estava sentado ali na cama, dizendo que aquilo não podia, que era um absurdo.

Quando a dona da casa entrou...
Com o Fauzi (Arap, diretor de teatro), que foi o que me salvou. A moça ia me comer de porrada, mas aí o Fauzi me levou e ficou conversando comigo umas cinco horas, dizendo que eu tinha de parar com aquilo, e ele tinha razão, não é? Eu tomava um ácido por dia, e aí passava na frente do botequim e via aquele monte de pernil, aquele monte de carne, aí eu parava e queria convencer o dono do botequim a tirar aquilo dali: “São cadáveres que o sr. está expondo aí, o Sr. tem de tirar isso daí”. Então, tinha muito folclore a meu respeito...

Folclore?
Eu vivi tudo isso, mas o suco que ficou, pra mim, de tudo isso, é outro. Porque, você vê, nesse tempo eu fazia as loucuras, tudo bem, mas eu escrevi A China é Azul, eu fazia O Arquiteto (O Arquiteto e o Imperador da Assíria, peça de Arrabal), eu fazia Dona Flor, no cinema, eu fazia Xica da Silva, eu produzia o Rock (Hoje é Dia de Rock, de José Vicente), eu fazia o Ensaio Selvagem, eu fazia Bandeira Dois, na televisão, eu fazia O Tartufo, eu fazia O Dibuk, O Casal, eu fazia O Rei da Vela, tinha toda uma produção. Para mim, eu era isso que eu fazia: tudo.
...
Eu não estive de cara limpa seguramente por uns quatro anos. Por quatro anos, no mínimo, eu tinha colado um sonrisal na testa e corrido 100 metros. Nesse tempo...

Quando?
De 70 a 74, por aí.

Quer dizer que você cheirou cocaína, tomou ácido, fumou maconha?
Tudo.


Ao mesmo tempo?
Às vezes, ao mesmo tempo.
...
A droga te fez bem ou te fez mal?
De certa maneira, me fez bem. Mas me fez bem porque eu pude parar. Me fez bem porque eu sabia, o tempo todo... Bem, nessa época eu fazia análise também. Muitas vezes eu tomei ácido com um cara do lado.

Um analista?
É, eu estava querendo saber até onde eu podia ir com minha loucura. Isso corresponde a um momento meu. Em 67, 68, eu fui estudar Sociologia na PUC, não queria mais ser ator. Aí, eu fui convidado para fazer O Arquiteto e o Imperador da Assíria, com o Rubens Correia, que destampou a minha cabeça. Foi uma descoberta, um negócio que me revolucionou. Até então, eu tinha feito teatro porque era uma atividade político-partidária, depois eu fiz teatro porque precisava sobreviver no Rio, e eu só sabia ser ator. De repente, eu comecei, com O Arquiteto..., a fazer teatro porque gostava, porque era vital para mim, porque não podia mais viver sem teatro. No fim da peça, tem aquele cara que puxa o cérebro do outro, para saber como o outro é – a transgressão total, absoluta. Diante disso, o resto são acidentes, é crônica policial, a porra-louquice não quer dizer nada. O que ficou, para o resto da vida, foi o que a gente produziu nesse período, eu, o Fauzi, o Rubens Correia, o Ivan de Albuquerque, um pouco o Vianinha (Oduvaldo Viana Filho) – o Vianinha nem tanto, ele nunca pirou assim. Acho que minhas relações com as pessoas, desde então, são muito mais fundas, são muito mais definitivas do que tinham sido até então. Eu, até aquele momento da minha vida, não tinha tido um amigo ou uma amiga.




Um comentário:

Cotidiano disse...

Gênio. E louco.
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