Cleyde Yaconis em seu jardim. Jordanésia |
Ela, a primavera, vem aos
poucos e já anda por aí. É só reparar no sol, na maneira como ele bate e se firma, e no
canto de alguns pássaros, como o sabiá, para perceber a sua presença. Para
saudá-la, fui buscar um catálogo imenso de flores e uma escritora poderosa para
falar delas. Abaixo, flores, muitas flores e por Clarice Lispector. Ah, é mais
uma daquelas falsidades de internet e não foi ela quem escreveu. Foi, criatura.
Foi ela. Duvida? Pega um exemplar de Água Viva e se não leu seu queixo vai
cair. É impressionante a cada linha. Poderia até dizer o número da página em
que começa esse trecho das flores, mas varia de acordo com a edição - está lá pela metade do livro.
Ah, para abrir, uma
foto de Cleyde Yaconis em seu jardim. Ela amava flores, as colecionavava e me
ensinou a gostar ainda mais delas. E abaixo, foi tudo escrito por Clarice Lispector
FLORES SEGUNDO CLARICE
LISPECTOR
Rosa é flor feminina que se dá toda e tanto
que para ela só resta a alegria de se ter dado. Seu perfume é mistério doido.
Quando profundamente aspirada toca no fundo íntimo do coração e deixa o
interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher é
belíssimo. As pétalas têm gosto bom na boca – é só experimentar. Mas rosa não é
it. É ela. As encarnadas são de grande sensualidade. As brancas são a paz de
Deus. É muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas. As amarelas são
de um alarme alegre. As cor-de-rosa são em geral mais carnudas e têm a cor por
excelência. As alaranjadas são produto de enxerto e são sexualmente atraentes.
Já o cravo tem um
agressividade que vem de certa irritação. São ásperas e arrebitadas as pontas
de suas pétalas. O perfume do cravo é de algum modo mortal. Os cravos vermelhos
berram em violenta beleza. Os brancos lembram o pequeno caixão de criança
defunta: o cheiro então se torna pungente e a gente desvia a cabeça para o lado
com horror. Como transportar o cravo para a tela
O girassol é o grande filho do sol. Tanto que sabe virar sua enorme corola para o lado de quem o criou. Não importa se é pai ou mãe. Não sei. Será o girassol flor feminina ou masculina? Acho que masculina.
A violeta é introvertida e
sua introspecção é profunda. Dizem que se esconde por modéstia. Não é.
Esconde-se para poder captar o próprio segredo. Seu quase-não-perfume é glória
abafada mas exige da gente que o busque. Não grita nunca o seu perfume.
Violetas diz levezas que não se podem dizer.
A sempre-viva é sempre
morta. Sua secura tende à eternidade. O nome em grego quer dizer: sol de ouro.
A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele. Só tem uma camada de pétalas. O centro é uma brincadeira infantil.
A margarida é florzinha alegre. É simples e à tona da pele. Só tem uma camada de pétalas. O centro é uma brincadeira infantil.
A formosa orquídea é exquise
e antipática. Não é espontânea. Requer redoma. Mas é mulher esplendorosa e isto
não se pode negar. Também não se pode negar que é nobre porque é epífita.
Epífitas nascem sobre outras plantas sem contudo tirar delas a nutrição. Estava
mentindo quando disse que era antipática. Adoro orquídeas. Já nascem
artificiais, já nascem arte.
Tulipa só é tulipa na
Holanda. Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto para ser.
Flor dos trigais só dá no
meio do trigo. Na sua humildade tem a ousadia de aparecer em diversas formas e
cores. A flor do trigal é bíblica. Nos presépios da Espanha não se separa dos
ramos de trigo. É um pequeno coração batendo.
Mas angélica é perigosa. Tem
perfume de capela. Traz êxtase. Lembra a hóstia. Muitos têm vontade de comê-la
e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.
O jasmim é dos namorados. Dá
vontade de pôr reticências agora. Eles andam de mãos dadas, balançando os
braços e se dão beijos suaves ao quase som odorante do jasmim.
Estrelícia é masculina por
excelência. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho. Parece ter crista
de galo e o seu canto. Só que não espera pela aurora. A violência de tua
beleza.
Dama-da-noite tem perfume de
lua cheia. É fantasmagórica e um pouco assustadora e é para quem ama o perigo.
Só sai de noite com o seu cheiro tonteador. Dama-da-noite é silente. E também
da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e
janelas fechadas. É perigosíssima: é um assobio no escuro, o que ninguém
agüenta. Mas eu agüento porque amo o perigo. Quanto à suculenta flor de cactus,
é grande e cheirosa e de cor brilhante. É a vingança sumarenta que faz a planta
desértica. É o esplendor nascendo da esterilidade despótica.
Estou com preguiça de falar
de edelvais. É que se encontra à altura de três mil e quatrocentos metros de
altitude. É branca e lanosa. Raramente alcançável é a aspiração.
Gerânio é flor de canteiro
de janela. Encontra-se em São Paulo, no bairro de Grajaú e na Suíça.
Vitória-régia está no Jardim
Botânico do Rio de Janeiro. Enorme e até quase dois metros de diâmetro.
Aquáticas, é de se morrer delas. Elas são o amazônico: o dinossauro das flores.
Espalham grande tranqüilidade. A um tempo majestosas e simples. E apesar de
viverem no nível das águas elas dão sombras. Isto que estou te escrevendo é em
latim: de natura florum. Depois te mostrarei o meu estudo já transformado em
desenho linear.
O crisântemo é de alegria
profunda. Fala através da cor e do despenteado. É flor que descabeladamente
controla a própria selvageria.
Trecho do livro Água Viva, de Clarice Lispector
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