sábado, 10 de novembro de 2018

João Gilberto em agosto de 1968 por Augusto de Campos


É Augusto de Campos escrevendo sobre uma visita a João Gilberto. Era agosto de 1968 e João morava em New Jersey, com a mulher Miúcha e a filha Bebel Gilberto, então com dois anos. A ponte para o encontro é a amizade de Caetano Veloso e Gilberto Gil e Augusto leva discos e entrevistas dos dois para João. A visita, o que eles conversam, algumas revelações sobre o jeito de ser de João: é uma beleza de matéria e até  poderia ser um capítulo de uma biografia de João Gilberto. "Penso no gênio de João, na grandeza do seu exílio, na sua recusa ao fácil, no seu apego ao silêncio, na lucidez de sua visão". Abaixo, como publicado no jornal Correio da Manhã.


                                 João Gilberto e os jovens baianos
                                               Augusto de Campos

Falou-se tanto da incomunicabilidade de João Gilberto, que eu confesso que hesitei, frente ao telefone, no Hotel Chelsea, em Nova York. antes de recitar o quilométrico número que me ligaria com o cantor, em Nova Jersey. Enfim, resolvi lançar os dados. Quem me atendeu foi o próprio João Gilberto. Declinei o meu nome, sem grande esperança, acrescentando que era amigo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dos quais trazia comigo discos e entrevistas gravadas, que gostaria que ele ouvisse. A resposta veio sob a forma de canção. Do outro lado João começou a cantarolar o Superbacana. E em seguida desandou a falar, a falar, sobre Caetano, sobre os jovens baianos:

- Tenho tantas coisas a dizer para Caetano. Ele está fazendo coisas tão lindas. Olha, Caetano anda dizendo por aí que eu sou um gênio. Diga a ele para não falar assim, não. O gênio é ele. Caetano é um poeta. Caetano está lá no alto, lá no alto, lapidando a inteligência. Pra mim é Drummond e Caetano.

Interrompo para saber como ir a sua casa. Ele me diz que eu não me preocupe. Heloísa (sua mulher, irmã de Chico Buarque de Holanda) me dará depois todas as explicações. E retorna:

- Vamos pensar um pouco mais sobre o que Caetano está fazendo. Tenho tantas coisas a dizer para ele. O que é que vou dizer para Caetano - ele se interroga, meio aflito, em busca da palavra precisa. Não, não diga nada disso, não. O que é que eu vou dizer pra Caetano? Diga que eu vou ficar olhando pra ele.

João marcou o nosso encontro para alguns depois, às 10 hroas da noite. Heloísa, ao telefone, explicou o caminho.


Avisei que era marinheiro de viagem e que, por via das dúvidas, eu e Lygia, minha mulher, íamos sair com bastante antecedência. Às 9 da noite, estávamos lá. Nova York pousava, do outro lado do Rio Hudson, em cartão postal. A rua de João é uma rua tranquila, muito arborizada; a casa é ampla e quieta. Fomos recebidos por Heloísa e Isabel, a filhinha deles. Enquanto Heloísa ia e vinha preparando o jantar de Isabel, a garotinha, toda riso, nos fazia companhia. Ela e a sua caixinha de música, inseparáveis. Acredite quem quiser, Isabelzinha, que não tem mais de dois anos, já canta e entoa à maneira de João. De vez em quando dizia para nós: - "Qué Banda?" - apontando para o disco de Chico Buarque.

Estamos conversando e esperando, entre Heloísa e Isabelzinha, há mais ou menos uma hora. A televisão fica ligada, sem som. De João não há notícia. Uns sons meio indestinguíveis parecem vir do andar superior. Heloísa esclarece que João acordou há pouco (são 10 horas da noite!) e que, logo que acorda, costuma fazer exercícios vocais para manter a voz em forma. Ele não gosta que ninguém escute e ficava muito chateado quando eles moravam num apartamento parede-meia que não assegurava o sigilo do seu ioga vocal. De repente (são 10 e alguns minutos) uma voz - a voz inconfundível de João Gilberto - vem lá de cima:

- Augusto, me desculpe, estou preocupado com vocês, eu já vou descer.

Logo está com a gente. Pede licença para ir tomar o seu breakfast à baiana (moqueca de peixe) e volta pouco depois. Heloísa leva Isabelzinha para dormir. João me pergunta do Brasil e dos baianos. Vou recapitulando os acontecimentos importantes, o desafio de Caetano e Gil no III Festival da Música Popular e a sua posterior saída da Record, depois de conquistado o sucesso, a independência com que o grupo baiano tem agido, recusando-se a aceitar a imagem que querem impor para eles e assumindo o risco de novas experiências. João aprova. Quando falo que Caetano está cantando Yes, Nós Temos Banana, João não diz nada. Pega o violão e começa a entoar a marchinha. Canta em ritmo bem lento, naquela sua maneira peculiar, escandindo o yes em duas sílabas: yes-si, nós temos banana. Repete, às vezes, a última sílaba de cada linha para ajustá-la bem no tom. E daí por diante João nos dá um show particular das suas coisas mais bonitas. Vem, entre outros, O Samba da Minha Terra, e a voz de João se confunde com o som do violão nas variações do início e do fim ("q'tim-cumpadim, q'tim-cum-dum, q'tim-cum-dum") até quase perder o fôlego. Canta músicas antigas do repertório de Orlando Silva e, em dueto com Heloísa, muito afinada com ele, Joujoux e Balagandãs. Lembro-lhe aquela noite em que ele e Orlando Silva cantaram juntos na televisão o belíssimo A Primeira Vez, que ele logo reprisa para nós. Canta, num fio de voz, a cantiga de ninar que Heloísa fez para Isabelzinha. E toca, ainda, três das músicas novas que compôs nos Estados Unidos. São composições instrumentais, sem letra, e ainda sem nome: João se refere a elas como "valsa" ou "choro", e uma é dedicada aos médicos que o curaram da dor nevrálgica na mão direita. O "choro" é extraordinário, cheio de harmonias complicadas. O rosto de João ainda está contraído pelo esforço de dar o som preciso, justo: - "Você gostou?", quando lhe digo que é uma das coisas mais lindas que já ouvi, João toma um hausto fundo, mirando em alvo, como que emocionado. Durante todo o tempo, a televisão continua ligada, sem som, só as imagens em movimento. Voltamos a conversar. Do andar de cima, ouve-se o choro de Isabelzinha, que acordou no meio da noite. Subitamente, como o choro continue, João se levanta e diz:

- Eu vou buscar Isabelzinha. Eu não posso. Eu tenho pena dela. Tenho muita pena. Ela quer estar aqui com a gente. Ela não quer perder isso tudo! - Sobe as escadas correndo e volta com a garotinha no colo, superacordada, sorridente e triunfante.

Comentamos os LPs de Caetano e Gil, que andaram comigo por toda a parte, e apaixonaram os alunos das Universidade de Texas, Wisconsin, Indiana. João cantarola Onde Andarás, pergunta quem foi o arranjador desta ou daquela faixa, e a propósito das "imitações" de Nélson Gonçalves e Orlando Silva, que Caetano faz em momentos de Onde Andarás e Paisagem Útil, exclama, entusiasmado:

- Pois é. O bom é que ele não avisa nada. A gente vai ouvir e tem aquela surpresa.

Falo na beleza de "Luzia Luluza" e João e Heloísa se entreolham como se eu tivesse adivinhado um dos seus hits preferidos do disco de Gilberto Gil.

- É, o Gil também é muito bom - diz João - Ele é mais rasgado, mais peito aberto, ele se entrega todo à música.

Quero conferir com ele o meu entusiasmo por essa cantora, ainda não muito conhecida, que é Gal, para mim a mais pura voz feminina de nossa música popular. João concorda:

- Cantora, cantora mesmo é Gracinha (Ele a chama de Gracinha e não de Gal). Cantora para dar aquele tom certo, cantora é mesmo Gracinha.

Pergunto-lhe o que acha da música norte-americana atual. João diz que o que se está fazendo no Brasil é muito mais bonito. Mas fala muito bem de Up, up and Away, na gravação do conjunto The Fifth Dimension.

- É uma música onde tudo é certinho, perfeito. Fale para eles ouvirem. Eles vão gostar.

Heloísa nos serve um doce de côco para matar as saudades. A conversa gira para a vida no Rio e em São Paulo. Eu, que moro em Sâo Paulo, digo que preciso respirar, ao menos uma vez por ano, no Rio. Um pouco de calor para a muita frieza paulistana. João não pensa bem assim. Diz que gosta muito de São Paulo, que o Rio é bom, mas tem aquela coisa, a gente vai comprar um selo no guichê e fica esperando, ninguém atende, em São Paulo não, é tudo organizado; mas acaba concordando e sintetizando tudo numa equação perfeita:

- É, você tem razão. Sâo Paulo é bom por causa do Rio.

João fala no mar do Rio, que é um mar lindo, e no mar da Bahia, que é um mar, é "o" mar. Indago de Amaralina, tão decantada por Caetano. João diz que é uma praia assim como Ipanema, mas com um azul, um azul todo especial.

- Pois é - associo em voz alta - Amaralina. Parece que a própria palavra já diz tudo: Amar... anil... anilina.

João se entusiasma, salta de onde está para um tablado imaginário:

- É isso mesmo. Anil e Anilina, dois irmãos. Amaralina é a tia. "Bom dia, Tia Amaralina" (cumprimentando, no ar, um suposto personagem). Anilina, a menina, é a mais velha. É quieta, não dá trabalho. Anil, o garoto, já não é tão bem comportado.

E prossegue, por um momento, nessa pantomima improvisada em que as palavras viram coisas, viram gente.

São quase três da manhã. Vamos ouvir as entrevistas gravadas por Gil e Caetano. João escuta em silêncio, meditando, esses depoimentos em que se fala muito dele e se debate a "retomada da linha evolutiva da música popular a partir do momento João Gilberto". No fim, ele comenta:

- Que coisa mais bonita. Eles discutem todas essas coisas, eles estudam, eles são muito sérios.

Quatro horas. Partimos para as despedidas. Atravessamos o túnel, de volta a Nova York. Lá ficou o olhar de João, iluminando os caminhos da nova música brasileira. Penso no gênio de João, na grandeza do seu exílio, na sua recusa ao fácil, no seu apego ao silêncio, na lucidez de sua visão. Penso em Anton Webern, o mais radical compositor contemporâneo, o que superou a todos os outros na estima dos mais jovens. Webern, cujo temor físico do ruído - segundo Robert Craft - o fazia relutante até de começar a ensaiar, por saber de antemão que o barulho, a vulgaridade, a má entonação, a expressão falsa e a articulação errada seria uma tortura. "Ouvir Webern tocar uma única nota no piano" - diz Ansermet, citado por Craft - era ter observado um homem em ato de devoção". Webern, a esfinge. Weber, o justo. Webern e João. João e o violão, o cantor e a canção. Como distinguir um do outro?

                           Correio da Manhã, Domingo, 18 de agosto de 1968




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