Na foto, Clarice Lispector com Tonia Carrero |
O suplemento do UH |
Quando penso em amor aos
livros me vem logo esse texto de Clarice Lispector. Só o li muito depois que
ela o escreveu, mas é daqueles que permanece. Foi publicado num suplemento de
fim de ano do icônico Última Hora, o jornal de Samuel Wainer, em 18 de dezembro
de 1968 (faz 50 anos daqui a alguns dias). Nele, Clarice fala de suas primeiras
impressões literárias e cita um conto que escreveu depois: o absurdo Felicidade
Clandestina, que abre o livro homônimo e é a maior declaração de amor aos
livros que pode existir - e tem uma vilã, a menina filha de um dono de
livraria. Abaixo, o texto de Clarice Lispector, como publicado em Última Hora. Ah, ela não diz o nome do último livro que cita: é Felicidade (Bliss), livro de contos de Katharine Mansfield, traduzido por Érico Verissimo, que depois viria a se tornar um dos seus grandes amigos.
O primeiro livro de cada uma das minhas vidas
Clarice Lispector
Busco em minha memória e
tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro
fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. O livro
custava um cruzeiro e cinquenta centavos; estou traduzindo direito? Dizíamos
mil e quinhentos. Eu lia e relia as histórias; criança não tem disso de só ler
uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo sabendo quase de cor, relê com
uma excitação de primeira vez.
A história do patinho que
era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou-se o mistério:
ele não era pato e sim um belo cisne - essa história me fez meditar muito e
imediatamente identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio, já que eu, no
meio das outras crianças, era diferente com minhas pernas compridas demais de
menina alta. Eu ficava esperando já com impaciência as primeiras demonstrações
de que na verdade eu era um cisne que em pequeno não tem a graça do patinho
seguro de si mesmo. E a história de Aladim como sua lâmpada soltava minha
imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível
estava ao meu alcance. A idéia de um lâmpada que, esfregada, libertava o seu
gênio que dizia a Aladim, ou melhor, a mim: sou teu servo, pede o que quiseres
- isso me deixava em devaneio profundo. Quieta no meu canto, eu pensava se
algum dia um gênio me diria: pede o que quiseres. Mas revelava-se que sou daqueles
que têm de trabalhar duro para terem o que querem. Quando acontece.
Tive várias vidas. Em outra
de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado, porque era muito caro: "Reinações
de Narizinho", de Monteiro Lobato. Já contei em crônica o sacrifício de
humilhações e perseveranças pelo qual passei pois o livro grosso que me
prometia o mundo pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina
gorda e feia tornara-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler
aquele livro, fez um jogo de "amanhã vem em casa que eu empresto".
Quando eu ia, literalmente com o coração batendo de alegria, ela me dizia: hoje
não posso emprestar, venha amanhã. Ela própria não lera sequer o livro, como
vim a descobrir, e este era virgem. Ah, como eu sonhava em tê-lo nas minhas mãos:
era um livro caro e grosso e maravilhoso. Depois de cerca de um mês de
"venha amanhã", o que eu, embora orgulhosa que era, recebia com
humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele
primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco
horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele momento mesmo
me fosse emprestasse o livro. Suponho que empalideci ou corei de alegria ao
pegar aquele livro. Eu, que andava aos pulos e correndo, andei devagar,
segurando com as duas mãos o livro divino contra o peito magrinho de patinho
feio. (Não me tornei um belo cisne, nem era patinho feio propriamente: tudo era
imaginação minha). Não li o livro de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de
cada vez, para não "gastar". Acho que foi o livro que me deu mais
alegria naquela vida.
O Lobo da Estepe, Herman Hesse |
Em outra vida que tive, eu
era sócia de uma biblioteca de aluguel que ficava na Rua Rodrigo Silva. Sem
guia, eu escolhia os livros pelo nome. E eis que escolhi um dia um livro
chamado "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse. O nome me agradou,
pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada
vez mais deslumbrada, era de aventura, mas de aventura interior. E eu, que já
escrevia pequenos contos desde os sete anos de idade, fui aos treze germinada por
Herman Hesse e comecei em segredo a escreve um longo conto imitando-o: a
aventura interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande
literatura.
Katherine Mansfield |
Em outra vida que tive, aos
quinze anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva numa
livraria que me parecia ser o mundo encantado onde eu gostaria de morar.
Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para
outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que
fiquei lendo presa ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E
contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber
que a autora não era anônima e era considerada um dos melhores escritores do
mundo: Katherine Mansfield.
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