Vestido de Noiva:a primeira e histórica montagem por Os Comediantes, em 1943 |
Procurava coisas outras e,
de repente, a tela do computador é invadida por uma foto imensa do Ziembinski e
um título: Nelson Rodrigues escreve: Ziembinski naquela noite. E que noite!
A de estréia da tragédia carioca Vestido de Noiva, Teatro Municipal RJ 1943, considerada o momento divisor de águas do teatro brasileiro.
"Nada mais antigo do que o passado recente", escrevia Nelson
Rodrigues, em outubro de 1978. O texto genial saiu na Manchete quando da morte
de Ziembinski, o diretor da montagem. E o autor simplesmente leva seus leitores
para a estreia. Abaixo o texto de Nelson Rodrigues.
"Amigos, começava o ano
de 1943. Dirão os meus leitores: "Isso foi outro dia." Tenho que
explicar, então, que nada mais antigo do que o passado recente. Esse 1943 parece
outra realidade, outro Brasil, outro mundo. Eu acabava de escrever a minha
tragédia carioca, Vestido de Noiva. Esta peça, coitada, pagou todos os seus
pecados.
Ziembinski e Nelson Rodrigues em 1943 |
Eu saí, de porta em porta,
oferecendo minha peça. Dulcina não quis, Odilon não quis, Jayme Costa não quis.
Alguém cochicha: "Rapaz, mostra Vestido de Noiva ao Ziembinski."
Virei-me: "Ziembinski, que Ziembinski?" O outro fez um resumo
biográfico: "Chegou da Europa, expulso pela Guerra, entende pra burro de
teatro." O nome tinha um som que me agradou. Por um momento fiquei
silencioso, meio alado, pensando no tal Ziembinski. Quis saber: "Onde se
encontra o Ziembinski?" O outro explicou que o mestre polonês estava nos
Comediantes. Ora, Os Comediantes eram um grupo amador que só fazia teatro
sério. Por um momento sonhei: "Será que o Ziembinski vai gostar de Vestido
de Noiva?"
Tudo, porém, teve uma
progressão fulminante. Primeiro, Brutus Pedreira apareceu. Ouvira falar em
Vestido de Noiva e queria lê-la. Leu, de um dia para outro. Ficou muito
impressionado e disse: "Te dou dois contos de réis para representar
Vestido de Noiva. Tremi em cima dos sapatos. Ao mesmo tempo, Brutus marcou o
meu encontro com Ziembinski no Amarelinho, ali na Cinelândia. Aquele
desconhecido polonês sentava-se na minha alma.
No dia seguinte, lá aparece
Ziembinski, já com a cópia de Brutus. Tinha um sotaque bárbaro, o polonês. Mas
dava para entender. Disse o que ia fazer: ler um ato num dia, outro ato no dia
seguinte, outro ato no terceiro dia. Não podia brincar com uma língua nova. Disse-lhe:
"Mas eu entendo tudo o que você diz." Ouvira alguém dizer "Pois
é." Achara lindo esse "Pois é." Boas coisas começaram a
acontecer para o meu lado. Em primeiro lugar, Ziembinski achou lindo o primeiro
ato. Falei do segundo e ele explicou: "Só leio um por dia." No dia
seguinte reapareceu: "Muito bonito o segundo." Mais um dia e fechou o
ciclo: "Grande peça." Mas fez uma observação que não me convenceu:
"A peça acaba na morte de Alaíde." Não concordei e ele se deixou
convencer.
Começou, então, a batalha de
Vestido de Noiva. Durante sete meses, um elenco bateu no texto de Vestido de
Noiva. Cada fala era repisada de uma maneira obsessiva e insuportável. Depois
do ensaio, os artistas saíam. Diziam o texto no meio da rua e na fila de
ônibus. Os outros passageiros ouviam coisas estranhíssimas: "Enterro de
anjo é mais bonito que de gente grande." Ou então: "Eu acho bonito,
duas irmãs amando o mesmo homem. Não sei, mas acho." Auristela de Araújo
dizia pela boca de Madame Clessy; "As mulheres só devem amar meninos de 17
anos." Ainda Madame Clessy: "Gente morta como fica." Os
porteiros do teatro tinham decorado páginas do texto. Eram inesquecíveis os
papos de Ziembinski nos intervalos do ensaio. O curioso é que, no trabalho, não
comia. Ou por outra: dois ovos quentes. E voltava depois como um bárbaro. Mas
eu falava de sua conversa: ele tinha maravilhosa memória de ator, mas suas
opiniões nos escandalizavam: "Jouvet é uma besta." Alguém queria
duvidar: "Mas todo mundo aqui acha Jouvet formidável." Ziembinski
então falava de Batty: "Batty é muito melhor do que Jouvet." Quanto
às mulheres, acreditava mais na Duse do que em Sarah Bernhardt. De vez em
quando eu perguntava a Ziembinski: "E vamos fazer sucesso?" Dizia e
repetia, varado de certeza: "Sucesso formidável!" Assim era o grande
artista: fazia afirmações como um fanático.
Alguns, porém, nas suas
costas, rosnavam: "Qual nada, Jouvet era um gênio." Mas eu verificava
uma coisa: dia após dia, Ziembinski se tornava mais brasileiro ou, melhor
dizendo, um carioca. Nunca perdeu um momento de ensaio. Ziembinski ensinava a
uma grã-fina obtusa: "Diz assim: "Tão nova, tão cheia da
vida."" A outra errava todo o santo dia.
Quando faltavam vinte dias
para a estréia, começou o que eu chamaria de tensão dionisíaca. O ensaio já não
era mais esportivo. As pessoas se irritavam. Havia uma surda competição, só a
inveja explica certas atitudes.
Ah, os últimos ensaios: ou
por outra, o ensaio geral de Vestido de Noiva foi o verdadeiro inferno. Com os
seus 35 anos, Ziembinski tinha uma resistência brutal. Eu me lembro de um
contra-regra: "Como trabalha o Zimba!" Ou por outra, não era Zimba,
Zimba viria depois, em 43 era ainda Ziembinski. Os intérpretes sabiam o texto,
as inflexões, sabiam tudo. Durante sete meses, à tarde e à noite, a peça fora
repetida até o limite extremo de saturação. Ainda faltava, porém, a luz, E
Ziembinski exigia mais do elenco, cada vez mais.
Não posso falar da luz sem
lhe acrescentar um ponto de exclamação. Em 1943 o nosso teatro não era
iluminado artisticamente. Pendurava-se, no palco, uma lâmpada de sala de visita
ou jantar. E a luz, fixa, imutável - e burríssima - nada tinha a ver com o
texto e os sonhos da alma e da carne. Ziembinski era o primeiro, entre nós, a
iluminar poética e dramaticamente uma peça.
Estou vendo Alaíde, ao
aparecer, pela primeira vez, de noiva. Sua intérprete era Evangelina Guinle da
Rocha Miranda. Ficamos atônitos, de beleza. Dentro da luz, era um maravilhoso e
diáfano pavão branco. Ziembinski exigira uns dez ensaios gerais de luz. Era
pedir demais ao nosso Municipal. Os dez ficaram reduzidos a três. Por três dias
e três noites, o selvagem polonês esganiçou-se no palco.
Houve um momento em que
Ziembinski tomou dois ovos quentes. Por vezes a gema escorria-lhe como baba
amarela. Ah, ninguém faz uma ideia da paciência e martírio do elenco. A 27 de
novembro, não, não, de dezembro de 1943, e, portanto, na véspera da estréia,
atrizes e atores tinham, em cada olho, um halo negro. Alguém que, de repente,
entrasse ali, havia de pensar que o elenco estava de olheiras de rolha
queimada. Ziembinski tinha a obsessão da luz exata.
Meia noite e todos
representando. De repente. alguém começa a chorar. Perguntaram: "Mas o que
é isso? Não faça isso?" E ele, num gemido maior: "Eu não aguento
mais! Eu não aguento mais!" Delirava de cansaço. Com efeito, a exaustão
enfurecia e desumanizava as pessoas. Ninguém tinha mais a noção da própria
identidade. Os artistas passaram a se detestar uns aos outros.
E, por fim, às cinco da
manhã, houve entre Ziembinski e Carlos Perry um bate-boca quase homicida. Não
sei qual o motivo e ainda hoje me pergunto: "Houve tal motivo?" Já
amanhecendo, o simples cansaço enlouquecia o diretor, ator, eletricista,
contra-regra, etc, etc E Ziembinski e Carlos Perry andaram por um fio. Quando
subi no palco, estava certo que não ia ter estréia nenhuma.
Os planos: Realidade, memória e alucinação |
Vejo Ziembinski saindo do
teatro e jurando que não voltaria para o espetáculo. Olho a cena ainda
iluminada. Queria me parecer que Pongetti tinha razão: Vestido de Noiva ia
perder-se no puro e irresponsável caos. Dentro da luz, cadeiras, sofás e
pessoas pareciam boiar. As caras eram azuladas, lunares. A caminho de casa, uma
súbita certeza instalou-se em mim: Vestido de Noiva ia ser vaiada. O cenário,
ou terrível cênico, estava dividido em três planos: em cima realidade, embaixo
memória e alucinação.
Ao despertar às onze da
manhã, eu imaginava que o meu processo de ações simultâneas, em tempos
diferentes, não tinha função no Brasil. O nosso teatro era ainda Leopoldo
Fróes. Sim, ainda usava o colete, as polainas e o sotaque lisboeta de Leopoldo
Fróes. E ninguém me perdoaria a desfaçatez de uma tragédia sem linguagem nobre.
Debaixo do chuveiro, perdia a fé em mim. E me perguntava inconsolável:
"Como é que fui meter gíria numa tragédia, embora carioca?" Depois do
almoço, corri para a cidade. Mas era um ex-Narciso, um Narciso que tinha,
agora, horror da própria imagem. Eis o que pensava: "Foi por isso que
Álvaro Lins escrevera em Diretrizes e não no Correio da Manhã." Baixou em
mim que eu jamais teria um rodapé de Álvaro Lins. Deus Lhe Pague já ia para
três mil representações. Segundo Gilberto Amado, Deus Lhe Pague era a única
peça universal do teatro brasileiro.
Brutus Pedreira e Carlos Perry |
Entro no teatro. Ziembinski
e Carlos Perry estavam juntos, mais solidários e mais irmãos do que nunca. Dez
para as oito da noite. Estou andando pelos corredores vazios, mas iluminados. O
teatro ia abrir os seus portões. Vi os porteiros, ainda com os uniformes azuis
e dourados da belle époque. Por fim, um deles, de bigodões espectrais, abria o
primeiro portão. Ninguém para entrar.
Minto. Alguém vinha subindo,
lentamente, a escadaria. Crispei-me ao vê-lo e numa emoção tão doce e tão
funda, vim para Manuel Bandeira, transido de felicidade: "Grande figura,
grande figura."
No hall, conversando com o
poeta, eu tiritava. Um súbito otimismo dava-me febre como a malária. Voltei a
acreditar num rodapé sobre mim, com o mesmo título do artigo de Manuel Bandeira
- Vestido de Noiva.
O poeta foi comigo até a
porta da caixa. Lá, apertou a mão de José Sanz que, vestido de médico, faria
uma ponta. Mas o público começava a entrar, despedi-me de Manuel Bandeira. Ele
ainda me perguntou: "Animado?" Rangi os dentes de pavor: "Mais
ou menos." E o poeta saiu para sentar-se na segunda fila (enxergava bem,
mas ouvia mal). Naquele momento senti necessidade de ver Ziembinski.
Passei na caixa. Pânico
geral. Ziembinski fazia uma última revisão. Dizia para o elenco: "Calma,
calma." Ele próprio, porém, ventilava por todas as narinas. Seu olhar
vazava a luz. Volto. Vou ficar num camarote da minha mulher e das minhas irmãs.
Numa pusilanimidade total, fico no fundo do camarote, arriado. Platéia, frisas,
camarotes e balcões lotados. Alguém me sussurrou: "O melhor público do
Brasil (Carlos Drummond viria no dia seguinte, Schmidt muito depois). Eu não
via, nem queria ver nada. Muitas vezes tapava os ouvidos, doente de medo. E o
pior foi o silêncio do público, silêncio ensurdecedor, como se não existisse um
gato pingado no Municipal. Ninguém ria, ninguém tossia. E havia qualquer coisa
de apavorante, naquela presença numerosa e muda.
O Velório de Madame Clessy |
Termina o primeiro ato. Três
palmas se tanto, ou quatro, ou cinco no máximo. Imaginei que seriam palmas da
minha mulher, das minhas irmãs, do meu irmão. Talvez Manuel Bandeira já
estivesse arrependido do artigo. Continuei no fundo do camarote, cravado na
minha cadeira. Repetia para mim mesmo: "Fracasso, fracasso." Eu
imaginava Ziembinski, prostrado. Termina o segundo ato. Pongetti tinha razão:
Vestido de Noiva era o caos.
Até que baixa o pano sobre o
final do terceiro e último ato. Estou ouvindo. Silêncio. Nenhuma palma. E então
começam os aplausos. E tudo foi uma progressão fulminante. Era a apoteose. E, de
repente, vem Ziembinski das entranhas do
teatro. Vem de mangas de camisa, arrastado pelos artistas. Estava atônito
diante da apoteose. Ninguém podia imaginar que estava ali um grande homem
brasileiro ou, melhor dizendo, um grande homem carioca. E, enquanto ele
agradecia mais uma vez, do alto, o lustre pingou diamantes."
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