terça-feira, 30 de junho de 2020

Bethânia em 67 por Isabel Câmara



Aos vinte anos, há dois no Rio, Maria Bethânia deu essa entrevista para Isabel Câmara (1940-2006), em maio de 1967, no Jornal dos Sports. "Uma conversa com esta moça de vinte anos fascina pelo despojamento, pela sinceridade, pela coragem", escreve Isabel. E tantos anos depois a entrevista ainda fascina, quase como um bem escrito capítulo de uma biografia da entrevistada. Aos doze/treze anos, ela encucava com a voz rouca. Até o dia em que Caetano e uma amiga a fizeram cantar inteira, Franqueza, da Maysa. Claro que tem muito Caetano: a amizade dois dois, a primeira (?) namorada do irmão... A primeira vez que gravou - na casa de Mario Cravo, a primeira que cantou em teatro - Na Cadência do Samba, de Ataulfo Alves, os primeiros shows com os amigos baianos. É uma maravilha de entrevista, que encerra com ela falando do show que faria em boate. Foi Comigo Me Desavim, considerado o "primeiro" show de Bethânia, com direção de Fauzi Arap e roteiro de... Isabel Câmara, a entrevistadora aqui. Alguns anos depois, Isabel dirigiria (com Antônio Bivar) Drama, um dos antológicos shows de Maria Bethânia.

Maria Bethânia de Canto e Alma
Por Isabel Câmara

- Eu sou uma cantora, sabe, e acho que não sei dizer outra coisa de mim. Sou uma cantora, sou uma cantora e eu gostaria que todo mundo soubesse disso, porque é importante. Tem gente que faz poesia para viver, escreve livros para viver, música para viver - eu canto, É o que eu sei fazer, é o que tenho de mim para mostrar que estou viva, e porque estou viva, que eu amo, que eu existo. Na minha alegria, na minha fossa, não tem a menor importância. Quando eu canto eu sou sempre o maior de mim, o melhor de mim.

Maria Bethânia é um caso sério sim, Não porque já tenha atrás de si uma carreira de muitos anos ou coisa que o valha. Mas da mesma forma que é impossível deixar de participar de um espetáculo seu, quando sua voz invade os ouvidos da gente, nos levando a participar com ela da música que canta, e da música que ela, Bethânia, é, uma conversa com esta moça de vinte anos fascina pelo despojamento, pela sinceridade, pela coragem. Como Chico Buarque de Holanda fascina pela música que faz e pela sua singeleza, tão em harmonia com aquilo que compõe, Bethânia tem aquela vibração, a mesma, que chega até nós quando ela interpreta.

- Bem, morei em Santo Amaro, na Bahia, nasci lá. Desde pequena fui muito amigo do meu irmão Caetano. Desde criança Caetano "inventar" música e seu jeito me fascinava. Quando mudamos para Salvador eu tinha de doze para treze anos e Caetano já não "inventava" música, mas compunha. Lá em casa éramos oito irmãos e todos adoravam Noel e Araci de Almeida. De manhã à noite ouvíamos, tocávamos, vibrávamos com Noel.

- Um dia Caetano começou a namorar uma moça chamada Hercília, que era muito bonita. Eu olhava meu irmão e me orgulhava dele e achava sua namorada muito bonita, mas para mim ainda faltava uma coisa importante nela - ser artista. Se ela fosse artista como Caetano seria bacaníssimo. Acho que foi nesta época que eu descobri que as pessoas não podiam ser só bonitas, era preciso que elas tivessem aquela chama. Não era preciso cantar só, não, era preciso que a beleza viesse também lá de dentro. Eu me achava a mais insignificante das criaturas porque não sabia fazer nada e cantar era bom (sabe, naquela época nós fazíamos serenata, muita serenata lá em Salvador, juntávamos umas dez pessoas, Caetano tocava violão e o grupo cantava) eu achava impossível para mim, pois tinha uma voz rouca demais.

- Quer dizer que nas serenatas você ficava de fora?
- Mais ou menos. Eu tinha vergonha de cantar, como tinha vergonha de muita coisa. Era de uma inibição terrível. Mas aí, um dia, não sei porque, quando íamos para casa de Hercília, Caetano, uma amiga nossa e eu, resolvi perguntar se eles já tinham ouvido uma música que Maysa cantava e era assim - "você passa por mim e não olha...". Foi a primeira vez que uma nota saía assim, naturalmente. Os dois me olharam assustados e me obrigaram a cantar a música até o fim e foi aí que tudo começou.

- Quando é que você cantou pela primeira vez?
- Caetano tinha sido convidado para fazer a música de um filme, um curta metragem de Álvaro Guimarães, que também está no Rio agora, dirigindo teatro, chamado Moleque de Rua. Caetano chegou em casa vibrando e eu também fiquei no maior contentamento. Mas aí eu gelei quando Caetano, muito mandão, avisou que só faria a música se eu a cantasse. Imagine só que loucura. Está claro que eu fiquei na maior felicidade da minha vida, mas o medo também não era pequeno. Bem, resumindo, um dia fomos gravar em casa de Mario Cravo. Olha aí, eu que vivia imaginando coisas sobre ser artista, que tinha a maior admiração pelos artistas, um dia entrei pela casa de Mario Cravo. Fascinada por tudo, mas fascinada mesmo. Gravar a música na casa do Mario era demais.

Afinal gravamos naqueles aparelhos maravilhosos dele. Eu estava eufórica. Não, não me lembro mais como era a música.

- Mas o mais engraçado nisso tudo é que eu não tinha ainda a menor confiança em mim. No fundo eu tinha a maior vontade de ser artista de teatro, achava maravilhoso ser artista de teatro. Um dia o Álvaro Guimarães avisou que iria montar "Boca de Ouro", de Nelson Rodrigues e disse que ia precisar de mim, Pensei que ia me oferecer um papel como atriz. Perdi o sono, morria de satisfação. Mas não era como atriz que ele me queria, mas como cantora. Eu devia cantar um samba de Ataulfo Alves "quero morrer numa batucada de samba..." você conhece.

- Mas na frente do público?
- Não, eu cantava nos bastidores, mas logo na primeira noite parece que o pessoal gostou e quando eu acabava de cantar o teatro inteiro batia palmas antes da cortina abrir e começar a peça. Bem, eu não preciso dizer que comecei a ter confiança em mim. Puxa, fiquei na maior emoção. Daí então, em Salvador, todo começou a falar na voz de Bethânia e eu a querer aprender mais e mais para não decepcionar o pessoal.

- Um dia resolvemos montar um show que se chamava - "Velha Bossa, Nova Bossa Velha" - Caetano, Gilberto Gil, Gal Costa e eu. O problema era saber quem ia começar a cantar, quem ia ter a coragem de enfrentar o público de cara. O medo da gente era fogo. Eu me aventurei. "Sabem de uma coisa, quem começa sou eu". E comecei mesmo. Abria a cortina e eu soltava,  com esta voz rouca de sempre - "tu verás que ainda sou, o que mais deseja te ajudar...". Resultado, deu certo, o pessoal criou coragem, eu também, e fizemos o show que foi um dos primeiros sucessos do grupo na Bahia. Caetano foi quem dirigiu e me deu a liberdade para fazer o que bem entendia em cena. Cantar como quisesse.

- E como você chegou ao Rio?
- Nessa época Nara Leão esteve em Salvador e viu o nosso show. Depois do espetáculo me procurou e disse que eu era a pessoa que ia substituí-la no Opinião. Foi assim que eu vim, foi assim que fui ficando por aqui.

- Ótimo, Bethânia, agora quer falar um pouco de você... Sei lá, sua infância, o que você quiser.
- Infância. Todo mundo tem mania de perguntar sobre isso. Sabe de uma coisa, acho que infância não cabe numa reportagem. Se a minha foi triste ou alegre só eu posso saber. Para outros ela poderia ter sido alegre, para mim não foi tanto assim. Só posso dizer uma coisa - eu sempre tive uma coisa dentro de mim, essa mesma coisa que acontece quando eu canto - fé, sabe, muita fé. É esquisito isso - mas dá uma força para gente não mentir, para não disfarçar, dá coragem para se dizer tudo, e no meu caso cantar tudo. Eu seria capaz de cantar numa casa vazia. Cantar para uma casa sem público com a mesma alegria com que canto para um auditório inteiro. Não é só o aplauso que dá alegria pra gente, é a gente mesmo. Se eu continuo sendo capaz de cantar para uma casa vazia, quando eu canto para uma casa cheia, eu tenho mais o que dizer. Não sei se você entende. É uma solidão que faz bem, que é capaz de criar na gente um amor pelos outros quando eles nos ouvem.

- E os planos de agora?
- Bom, vou fazer um show de boate daqui a algum tempo e pedi para todos os meus amigos compositores que fizessem música para que eu cantasse. Torquato Neto, Paulinho da Viola, Caetano, Capinam, Ferreira Gullar, Gilberto Gil, todos esses estão convocados. Agora eu quero cantar músicas que falam do cotidiano da gente, das coisas que a gente ama, sofre, vê, perde, ganha, Desse cotidiano que às vezes parece tirar tudo da gente mas que pode muito bem dar coisas novas de volta. Eu sou uma pessoa alegre, mas muito alegre. Eu gostaria às vezes de poder voar de alegria e quando isso acontece parece que estou em todos os lugares ao mesmo tempo. Ultimamente eu pensei que tivesse perdido a minha alegria - não perdi não. Quando pedi aos meus amigos para escreverem músicas para mim que falassem do cotidiano era uma espécie de jeito meu de procurar de volta, ter de volta a minha alegria. Quando a gente fica na fossa pensa que não tem mais capacidade de ficar alegre. Eu andei meio cansada, agora estou voltando. Sem minha alegria eu não seria capaz de me reconhecer. Acho que ser alegre ainda é não ter perdido aquela fé que eu falei da minha infância.

Um comentário:

Ronaldo Cooper disse...

Muito linda a entrevista e esse jeito del encarar a vida e a arte.

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