Autógrafo em O Lustre, da biblioteca de Benjamin Moser |
Sabe quem é o autor mais citado no twitter? Sim, é Clarice Lispector. Diz levantamento recente do YouPix que ela é citada 3,5 mil vezes por dia. "Ah, mas muitas frases não são delas", tem gente que reclama. Também não faltam gaiatos para escrever uma sandice qualquer e assinar Clarice Lispector como se isso fosse muito, mas muito engraçado. Pra mim, se 10% das frases forem verdadeiras já é o máximo. Gosto dessa faceta pop de Clarice que em vida esteve longe de ser campeã de vendas e precisou ralar em trabalhos para jornais e traduções para sobreviver. E ela ainda tinha a fama de “diferente”, desde os primórdios, como mostra essa matéria abaixo, de 17 de março de 1946, de Solena Benevides Viana, a mesma da entrevista do post anterior. Aqui, a jornalista escreve sobre o primeiro encontro com Clarice que estava no Rio para lançar seu segundo livro. E só pode ter sido nesse encontro que Clarice autografou O Lustre para Solena e esse exemplar faz parte da biblioteca brasileira de Benjamin Moser, autor da biografia Clarice,. Gentilmente, Benjamin, o enviou (foto acima).
Abaixo, a matéria publicada na coluna Miscelania do Suplemento literário do jornal carioca Amanhã.
Ao saber que Clarice
Lispector estava no Rio, de passagem, resolvi aproveitar a oportunidade e
agradecer-lhe uma antiga gentileza. Confesso, também, que me movia uma certa
curiosidade de conhecer pessoalmente a escritora que, durante algum tempo
serviu de assunto à grande parte das “rodinhas” literárias da cidade e,
principalmente, às dos novos.
Não só o seu primeiro livro
foi discutidíssimo, levantando a comentada questão sobre se a autora teria
sofrido ou não influência de Joyce – contra o que há o argumento de que o seu
livro já estava escrito quando travou conhecimento com a obra do grande autor
inglês – como a própria Clarice Lispector passou a figurar na lista das pessoas
“diferentes”.
Telefonei-lhe, pois, e
marcamos um encontro que não teve, em absoluto, caráter de entrevista. Foi
apenas uma palestra cordial sem a preocupação de colher informações, que versou
sobre assuntos os mais variados. Uma miscelânia, enfim.
Para começar, Clarice pode
ser “diferente” mas não no sentido que lhe querem dar. Fisicamente é uma moça
esbelta, alta, loura, de olhos claros, de maneiras simples e naturais. Não se
mostra demasiado expansiva, nem muito retraída. Como se vê, portanto, até agora
– nada de “diferente”. Confessou-me, com toda a sinceridade, estar naquele dia
em ótima disposição de espírito, não obstante o calor – que era tremendo!!! – o
que nem sempre se verificava. Mas, qual é aquele que se pode gabar de conservar
inalterável o seu humor!
Estudou direito, interessada
sobretudo em direito penal; todavia, entre outras coisas, depois de tomar parte
num júri simulado desinteressou-se da aludida disciplina e passou a cogitar de
outros afazeres. Exerceu atividades jornalísticas durante quatro anos, tendo
trabalhado inclusive em “A Noite”. Em 1944, embarcou para Nápoles, onde residiu
dois anos no Consulado por falta de habitações e, hoje em dia, a sua maior
aspiração é... uma casa!
Na Itália, as perturbações
da época interfiriram na sua vida. Passou cerca de um ano quase sem sair de Nápoles,
limitando-se a fazer algumas viagens a Roma. Ultimamente conseguiu ir a
Florença. Apesar dos naturais estragos causados pela guerra a maioria das obras
de arte foi poupada. Várias galerias ainda estão fechadas, num trabalho de
reforma e reorganização. Toda a Itália, aliás, se ergue aos poucos. E aos
poucos renascerá o seu ânimo e a sua glória.
Quanto ao movimento
literário italiano, dentro do âmbito restrito que lhe foi dado observar, o
último conflito mundial nada introduziu de especialmente novo. As antigas
tradições continuam a predominar, e o trabalho prossegue com esforço e
esperança. A escultura e a pintura, segundo observou Clarice Lispector, estão
sob a força de um grande impulso, tendo na vanguarda nomes como o de Leonor,
Fazzini, Savelli, Guzzi, De Chirico.
As condições de vida na
Itália a seu ver, são precárias, mas caminha-se para uma lenta reorganização.
Os sofrimentos suportados incutiram nas criaturas uma nova coragem,
permitindo-lhes encarar com ânimo forte situações desesperadoras. Certa vez,
por exemplo, encontrou um rapaz iugoslavo aparentemente alegre, lançando mão de
seus conhecimentos linguísticos para sustentar-se, enquanto aguardava
oportunidade de embarcar com destino ao Brasil. Pouco depois foi surpreendido
com a informação de que perdera toda a família na Iugoslávia. E acidentes desta
natureza repetem-se diariamente.
Os gêneros alimentícios e
artigos de primeira necessidade são vendidos por alto preço. O café, por
exemplo, está a 2000 liras o quilo. Um negociante que se lembrou de vender
camisas por 150 liras cada uma, acabou forçado a recorrer à intervenção da
polícia. Lá também as atividades do câmbio negro são intensas.
Nesta altura da palestra, a
escritora declarou-me – mais uma prova de que não é assim tão “diferente” – que
pagou o seu tributo à decantada “saudade da pátria distante” e procurou
mimitiga-la tomando... caldo de cana, bebida na qual antes, no nosso país,
pouco pensava.
Portanto, diante do que acima ficou exposto, muitas
pessoas devem estar conjecturando até agora: “uma criatura, assim tão humana,
que sente saudades como toda gente e age com tamanha simplicidade, será mesmo
“diferente”?
Sim, Clarice Lispector é “diferente”. É “diferente” na
aplicação das suas energias, no amor ao trabalho, na sua produção literária.
Sente necessidades de escrever, e quando dá início a uma obra a ela se consagra
inteiramente. Não vacila em admitir a importância que atribui ao seu trabalho,
o esforço dispensado à sua elaboração. E, por isso mesmo, embora respeite a
opinião do público, regogizando-se quando nele encontra ressonância, coloca
acima de tudo o mundo interior do escritor, o impulso criador que o animou e a
liberação absoluta do seu eu.
O seu estilo é único e escapa, muitas vezes, à percepção
do leitor apressado. Não se pode ler um romance de Clarice Lispector como um
simples passatempo, seguindo o enredo, salientando esta ou aquela imagem
interessante. A sua intensidade exige do leitor o mesmo esforço de concentração
com que foi escrito; faz doer os nervos. E assim Perto do Coração Selvagem surgiu inopinadamente na nossa literatura e nela permanece até hoje como um
marco isolado.
Clarice Lispector acaba de publicar, pela editora Agir, O Lustre. Neste novo romance – fruto também de intenso labor – o ardor
primitivo cedeu lugar à reflexão comedida, à psicologia sutil da análise dos
sentimentos desordenados a uma poesia pessimista e vaga, que a cada passo se
manifesta:
- Dez é como domingo. A gente pensa que domingo é o fim
da semana passada, não é? mas já é o começo da outra. A gente pensa que dez é o
fim de nove, não é? mas já é o príncipío de onze.
E ainda mais adiante, quando Virginia – a personagem
principal – ao observar os bonecos de barro que modelara reflete:
“... mesmo bem acabados eram toscos como se pudessem
ainda ser trabalhados. Mas vagamente pensava que nem ela nem ninguém poderia
tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só
pudessem se aperfeiçoar por eles mesmos, se isso fosse possível.
E as dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo”.
Na sua visão sombria, ou talvez fosse melhor dizer, na
crueza da sua realidade, dentro da originalidade que o caracteriza, o livro
assinala mais uma vitória para sua autora.
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