quinta-feira, 14 de junho de 2012

O após-guerra de Clarice Lispector



Há um tempo postei aqui uma entrevista que garimpei de Clarice Lispector quando estudante de direito, em 1941. Acabou publicada no livro Entrevistas / Clarice Lispector (editora Azougue) que reúne algumas entrevistas da escritora, que não era chegada a dar entrevistas. Garimpar Clarice me é sempre um prazer e dia desses deparei com outra entrevista bem rara dela. É do final de 1945, quando o após-guerra era recente, ela morava em Nápoles e estava elaborando "apenas vagamente" um novo livro (O Lustre, o segundo dela, foi publicado no ano seguinte, 1946). É do jornal carioca A Manhã. Fiz uma busca nos livros sobre Clarice Lispector e não encontrei nada sobre essa matéria. E nem a bela foto que ilustra a matéria. Bom, chega de falar, melhor ler e acompanhar o pensamento de Clarice Lispector no após-guerra para a opinativa jornalista Solena Benevides Viana. Abaixo, a entrevista toda.



                                              CLARICE LISPECTOR FALA DE NAPOLES

A situação literária no Velho Mundo – Interesse na Itália pelo romance social – Os poetas franceses da resistência – Uma nova liberdade

                                                                                           Solena Benevides Viana

O presidente dos Estados Unidos, em discurso recente, salientou mais uma vez aquilo que tantos estadistas já haviam afirmado e que está ao alcance de qualquer criatura de bom senso, isto é, que a vitória dos armas de nada valeu se não conseguirmos ganhar a paz. Esta última etapa, porém, se nos apresenta bem mais árdua do que a anterior. Enquanto no período de luta todos se congregaram em prol da causa comum, aplainando obstáculos e relegando para segundo plano, em benefício da coletividade as diferenças pessoais, na fase de reconstrução mundial e ajustamento político que atravessamos multiplicam-se as divergências agravadas pela precária situação econômica e material dos povos na sua totalidade, e os proclamados direitos do homem restringem-se ao papel, sufocados pelo incomensurável egoísmo da espécie humana em geral.

O fracasso da Conferência de Ministros das Relações Exteriores de Londres em assentar as bases dos tratados de paz da Europa, explicado pela falta de preparo prévio do conclave, trouxe novamente à ordem do dia a Itália vencida. Sendo os escritores os mais lídimos representantes do pensamento de um povo, considerei o momento oportuno para transcrever algumas impressões da romancista Clarice Lispector sobre o que pode observar no aludido país. São informações ligeiras e de caráter exclusivamente literário, mas que de algum modo contribuirão para iluminar um pouco as trevas que envolvem a Europa quanto ao panorama intelectual, neste momento de tão grande absorção política.

                                                                     A ESCRITORA

Antes de dar início ao interrogatório sobre as letras europeias desejei que a própria autora de “Perto do Coração Selvagem” esclarecesse se houve de fato real influência de Joyce na sua obra.  Mas, evitando uma pergunta direta que poderia ser mal interpretada, apesar de eu ser da opinião de que não há criação alguma absoluta, indaguei:

Algum autor, nacional ou estrangeiro, contribuiu de forma poderosa na sua formação?

- Não sei dizer, - declarou a interrogada – que autores influíram no que escrevi ou na minha formação. Possivelmente me influenciaram mais os motivos dos escritores, mesmo que eu nada soubesse deles, do que seus livros.

E adiantou:
- Cercando a questão mais de perto, eu poderia dizer de fora para dentro, concordando com pessoas que escreveram sobre meu trabalho, que eu tive influência de Proust e Joyce, o que tem como obstáculo material apenas o fato de eu não ter lido Proust e Joyce antes de escrever o primeiro livro. Como para mim não tem tido importância consciente a questão de influência, é-me difícil sair dos meus verdadeiros problemas e analisá-la.

                     “PRÊMIOS ALEGRAM E HONRAM MAS SÃO ALÉM DO TRABALHO”

A resposta da entrevistada ao primeiro quesito, levou-me a desejar saber se recebera algum prêmio que a encorajasse ou se alguém a incentivara no caminho das letras.
- O prêmio que recebi foi depois de publicar o primeiro livro (Prêmio Graça Aranha de 1943), o que me agradou, surpreendeu e deu-me vários tipos de sensações e reações que não se podem chamar de encorajamento. Prêmios alegram e honram mas são além do trabalho. Houve sim pessoas que me deram muito ânimo, sempre.

Insisti:


Na sua vida escolar, por exemplo, tinha acentuada predileção pelas letras?
- Tinha sim, mas como fora da vida escolar. Tinha “predileção pelas letras” no sentido de ler.

Apesar da observação inicial da Sra. Clarice Lispector, de que não tinha jeito para dar entrevistas, habituada como estivera a tomá-las durante muito tempo, antes de passar a assunto de maior amplitude, ainda no terreno pessoal, ponderei:


O seu livro implantou uma nova técnica em matéria de estilo e no que se refere à disposição do romance na literatura brasileira contemporânea, qual é a surpresa que nos reserva para o futuro?
- Elabora, apenas vagamente, um novo trabalho.

                                O MODERNO MOVIMENTO LITERÁRIO ITALIANO

Pedi então à escritora que me dissesse alguma coisa sobre o que tem observado na Itália, com relação ao movimento literário. Se notara algo que viesse a reforçar a opinião de alguns escritores patrícios de que o mundo de após-guerra nos reserva grandes surpresas no mundo das letras.
Eis a sua cautelosa resposta:

- Lamento não poder dar muitas informações sobre a situação literária na Itália e na Europa em geral, o que certamente mais interessa a qualquer leitor. Todo o ambiente durante esse meu ano de Itália tendo sido de guerra, e eu mesmo estando afastada dos meios literários, torna-se difícil dar-lhe noções mais precisas sobre o que acontece nesse setor. Depois de responder às suas perguntas conversei com várias pessoas autorizadas que concordaram com as minhas impressões.

E reafirmou:

- Não tendo estado em contato com escritores de um modo geral, o é difícil dada a perturbação do momento, chegar a uma conclusão. Editam-se aqui muito livros antigos, fazem-se inúmeras traduções da melhor qualidade. Quanto a um movimento literário italiano, parece-me que há um interesse especial pelo romance social; é do que se ocupam os mais jovens. Mesmo durante o fascismo havia essa tendência, velada, nos romances, o que a censura permitia por não compreender. Agora mesmo o romancista Ignazio Silone, que esteve fora da Itália durante anos e cujos livros eram desconhecidos pelos italianos por ordem fascista, está tendo sucesso e despertando simpatia sobretudo pela intenção boa, política e social. Em relação a uma surpresa literária no mundo de após-guerra, nada notei que me fizesse esperá-la; essa surpresa virá amanhã ou daqui a cem anos. È provável que venha amanhã, não sei.


                                                             A CRÍTICA EUROPÉIA

Tem ouvido falar de algum escritor novo que, no momento, esteja despertando a atenção da crítica europeia?
- A crítica europeia esteve tão regular e congestionada como a vida europeia. Mal acabou a guerra, e o último tiro de canhão infelizmente não pôs a funcionar todas as delícias da paz. Lêm-se muitos poetas franceses da resistência, que também são conhecidos no Brasil; as poesias deles estão espalhadas em revistas e jornais, creio por toda a Europa. Não falando dos novos, um novo que cada vez mais ganha em evidência e importância é o de Jean Paul Sartre, que tem escrito para o teatro e vai se ocupar do cinema também.



                                                O BRASIL E O APÓS-GUERRA LITERÁRIO

A meu ver a guerra não terminou, muito ao contrário, atingiu agora o seu clímax, que terá de ser resolvido não pela força das armas, mas pela conjugação de todos os recursos e reservas do espírito humano. Daí a ter proposto à Sra. Clarice Lispector a indagação:

O longo período de luta armada que finalizou terá influído decisivamente na literatura brasileira, abrindo-lhe novos horizontes?
- Naturalmente a guerra terá influência na literatura brasileira, como em todas. Revelaram-se várias realidades, criaram-se muitas novas. Desses dois fatos e da consciência deles podem nascer novos rumos. Que se tomou consciência da situação prova a atitude dos escritores do Brasil e o movimento da imprensa em geral.

                                                           O FUTURO NAS LETRAS

A referência da entrevistada ao “Interesse especial pelo romance social” veio demonstrar ser oportuna a minha curiosidade sobre se estava de acordo com a corrente que vaticina o ressurgimento do romantismo, e, neste caso, qual seria o destino da literatura social? Desapareceria? Tomaria novos rumos? Impor-se-ia demais?

Clarice Lispector aquiesceu em opinar a respeito.

- Não creio – disse ela – que a chamada literatura social desapareça, exatamente no instante em que a questão social está em vias de se resolver e de tomar algum rumo aberto. E naturalmente ela poderá coexistir com qualquer outra corrente literária. Não sei se ressurgirá o romantismo. É possível que venha uma literatura de intimidade porque numa realidade de mundo quase igual para todo o movimento, seja em direção ao recolhimento, que teria como sempre o valor de uma descoberta para o escritor. Quem sabe também o problema social entre nas pessoas com tal realidade que elas escrevem sobre ele como escrevem sobre o único tema possível durante algum tempo, e nascem bons livros. Quem sabe, o que mudará é a forma, e os temas não tenham importância por algum tempo. Quem sabe, afinal, tudo isso suceda e coexista e dê uma nova combinação e uma nova liberdade, uma liberdade que penetre no quarto onde as pessoas trabalham. O que dessa liberdade resultará não sei prever.


Um comentário:

Fids Gombrowicz disse...

Obrigado pelo excelente achado!!
Ela não se furta a responder nenhuma pergunta, porém as respostas dela não parecem protocolares, tiradas de um baú. O seu estilo literário está presente no seu discurso particular. Acho-a lindamente marcante!

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