Domingo vi no twitter uma foto (ao lado) que o Pedro Alexandre Sanches tirou da Raquel Trindade, 78 anos, no encontro de intelectuais que apoiam a candidatura Dilma. Olha a Raquel, pensei. E fiquei com aquela mulher incrível na cabeça. Eu a conheci há oito anos. Foi uma matéria para o primeiro número da FFW Mag!. Abaixo, a saga de uma família de raízes africanas que faz da paixão pela arte o motor de sua existência, os Trindade. E vai pro saudoso Ailton Pimentel, que também era negro, editava a revista e me chamou para escrever essa matéria que deixou belas lembranças.
santíssima (família) trindade
Poesia, dança, música, artes plásticas e muitas outras formas de expressão compõem, de geração em geração, a saga de uma família de raízes africanas radicada em São Paulo, que faz da paixão pela arte o motor de sua existência.
Raquel entre os netos Manuel e Zinho. Foto Bob Wolfenson |
Quando
criança, o agora rapper MC Zinho Trindade ficava “zoado” com a quantidade de
pessoas entrando e saindo de sua casa. Era um povo alegre que gostava de
música, dança e muita festa, algo bem diferente da calmaria nas residências
vizinhas. Foi assim que Zinho começou a tomar consciência de que nascera numa
família de artistas – e a descobrir, aos poucos, um baú de preciosidades. “Sou
negro, meus avós foram queimados pelo sol da África/ minh’alma recebeu o
batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs”. É com orgulho que Solano
Trindade, o bisavô de Zinho, deixou registrada em versos sua descendência.
Poeta, pintor, teatrólogo, ator e folclorista, ele dedicou a maior parte de sua
vida a batalhar pela cultura popular. Nascido em Recife, em 1908, foi um dos
maiores animadores culturais de seu tempo, como provou a Frente Negra Pernambucana,
fundada por ele em 1930, quando publicou seus primeiros poemas. A militância
nunca mais parou e estendeu-se para outros estados nas temporadas em que morou
em Belo Horizonte, em Minas, e em Pelotas, no Rio Grande do Sul.
“Papai
foi criado ouvindo histórias de mula-sem-cabeça e de saci e da literatura de
cordel e assistindo nas ruas ao maracatu e as outras danças populares”, contra
outra integrante do clã, Raquel Trindade. Artista plástica, coreógrafa e
ialorixá de candomblé, ela herdou de Solano o amor pela cultura negra e pelas
tradições populares e é quem mantém o trabalho de resgatar as danças, a
religiosidade e os ritmos afro-brasileiros.
Solano Trindade |
DE
RECIFE PARA O MUNDO
Na memória
de Raquel está bem vivo o dia em que ela e a mãe, Margarida, a irmã e uma amiga
deixaram Recife, em plena Segunda Guerra Mundial, quando os navios estavam indo
a pique, para encontrar Solano Trindade no Rio de Janeiro. A única pista que
tinham era o bar Vermelhinho, famoso na década de 50 por ser ponto de encontro
de artistas, políticos e intelectuais da época – e que ele frequentava todos os
dias. Ao desembarcar, Margarida deixou as crianças no navio e foi até o bar,
onde teve notícias do marido pelo ator Grande Otelo. Logo a família Trindade
estava reunida outra vez, morando no subúrbio do Rio, principalmente num
barraco improvisado na Gamboa e depois numa casa em Duque de Caxias.
A
mãe era presbiteriana; o pai, comunista – e a casa, bem peculiar: “Num caixote
de cebolas havia O Capital, de Karl
Marx, ao lado da Bíblia”, relembra Raquel. Na casa dos Trindade funcionava a
célula Tiradentes do Partido Comunista, sempre com muitos operários e
camponeses. “Apesar de presbiteriana, minha mãe servia cafezinho para os
comunistas, ensinava dança para eles. Era uma mulher muito inteligente, muito
avançada”.
Solano
foi preso pelo governo Dutra, e a temporada no cárcere “não diminiuiu em nada
seu amor pela arte e pela vida”, conta Raquel. Sem nunca parar de escrever seus
poemas, fundou vários grupos de teatro. Um dos principais foi o Teatro Popular
Brasileiro, em 1950, que fazia uma leitura nova de danças como maracatu e
bumba-meu-boi, com ricas e coloridas coreografias apresentadas por operários e
gente do povo.
Raquel
faz questão de chamar a atenção para a frase que era chave no trabalho de seu
pai: “Pesquisar nas fontes de origem e devolver ao povo em forma de arte”. Em
1955, o grupo viajou para a Europa como atração de um Festival da Juventude,
com artistas do mundo todo. A dançarina Raquel tinha então 19 anos e foi com o
pai. No navio, conheceu o primeiro marido (depois dele, viriam mais sete), pai
de Vitor de Trindade, hoje percussionista em atividade na Alemanha. Raquel tem
mais duas filhas: Regina, a única da família que não se dedica às artes, e
Dadá, que canta, dança, toca e escreve nos Estados Unidos.
RITMO E
POESIA
Perto
de completar 70 anos, Raquel mora no Embu, a cerca de uma hora do centro de São
Paulo, numa casa bem simples, repleta de livros e quadros. Ao lado, funciona o
Teatro Popular Solano Trindade, que ela fundou em 1975, um ano após a morte do
pai. O que no princípio era um barracão está se transformando num prédio amplo,
moderno, ainda não totalmente concluído. Durante a semana, o lugar abriga aulas
e, no fim de semana, os ensaios do grupo de danças folclóricas, formado por 30
pessoas.
Os
netos, Manuel e Zinho, filhos do percussionista Vitor, também são músicos.
Zinho, 23 anos, optou pelos caminhos do hip hop. Seu estilo é o freestyle, em
que a rima é feita na hora, e o primeiro CD, Zinho Trindade Resgatando as Raízes, vai misturar maracatu, coco e
folclore com hip hop. Alguns poemas do bisavô Solano vão entrar na rima – e a
atualidade dos versos impressiona o rapper: “Eram muito avançados para a época.
Um deles, escrito nos anos 50, já fala nos manos. Tem outro chamado Salve, que é a saudação de hoje em
linguagem de ruas. Tudo numa linguagem popular, numa valorização da periferia”.
Manuel, 21 anos, começou nas pegadas do pai percussionista, se encantou pela
bateria e também mistura ritmos folclóricos em seu trabalho. Ele e o pai
preparam um show com os poemas de Solano Trindade, que Vitor vem musicando. No
CD Airá Otá, que gravou em parceria
com Caçapava em 2001, Vitor já incluiu três: Rio, A Velhinha do Angu
e Zumbi.
Para
vários críticos, Solano é o criador da poesia assumidamente negra no país. Em
versos repletos de musicalidade e ritmo, ele cantava o amor, as mulheres, as
cidades onde viveu e o cotidiano da família, mas também falava do negro e das
más condições da vida do povo, entre outros temas sociais. “Ainda são versos
muito atuais em sua defesa das tradições culturais e em sua luta por um mundo
melhor”, diz Raquel. Hoje restrita a um público especializado, a poesia de
Solano Trindade ganhou mais exposição nos anos 70, quando foram musicadas Mulher Barriguda e Tem Gente com Fome, gravados pelo grupo Secos e Molhados e por seu
líder, Ney Matogrosso, respectivamente.
CONTINUIDADE
A ligação
da família Trindade com o Embu começou nos últimos anos da década de 50. A
convite do escultor Assis, Solano foi conhecer a cidade e se instalou com seu
grupo de 30 pessoas no barracão do amigo. Nos fins de semana, cantavam e
dançavam pelas ruas do lugar e começaram a atrair um público cada vez maior. Em
1959, Solano e o grupo participaram de Gimba,
peça de Gianfrancesco Guarnieri montada no TBC e estrelada por Maria Della
Costa, que fazia o papel de uma mulata. Apaixonado por Embu, Solano instalou-se
na cidade em 1961, e sua casa tornou-se um núcleo artístico. Em 1968, Assis e
Solano fundaram a feira de artesanato que, com o tempo, se transformou numa
espécie de cartão de visitas da cidade.
Separado
de Margarida, Solano teve mais duas mulheres. Terapeuta ocupacional, Margarida
continuou no Rio de Janeiro e trabalhou 25 anos com a legendária Nise da
Silveira, no Museu do Insconsciente, ensinando aos doentes suas danças do
Nordeste. Volta e meia vinha visitar a família no Embu. Quando Solano estava
doente e em dificuldades financeiras, ela veio buscá-lo e o levou para uma
clínica no Rio, onde ele faleceu.
“Minha
forma de arte hoje é a pintura”, diz Raquel que, depois de um acidente no qual
sofreu muitas queimaduras, descobriu as telas e as tintas. Praticamente na
mesma época veio o candomblé. É ialorixá (“a mãe que zela pela energia da
cabeça”) e faz palestras sobre sincretismo religioso.
Nos
anos 70. Raquel foi carnavalesca. O primeiro desfile foi em 1976 para a
paulistana Vai-Vai, sua escola de coração, que homenageou seu pai com o enredo Solano Trindade, Moleque do Recife.
Vieram outros carnavais e uma passagem marcante pela Quilombo, escola de samba
carioca. Ela fala com entusiasmo desses tempos. Mas o que a deixa mais animada
é pressentir a continuação de seu trabalho de valorização da cultura popular
por seus filhos e netos. Por isso, não se incomodou nem um pouco quando o neto
Zinho enveredou pelos caminhos do hip hop: “É uma maneira de essa juventude se
expressar. É arte, é evolução, é o futuro”, diz ela, com um brilho de orgulho
nos olhos que já foram pretos e cada vez estão mais claros, uma característica
das mulheres de sua família tão especial.
Revista FFW Mag! nº 1 2006
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