Graciliano Ramos e Mario de Andrade |
Erico Verissimo |
Visita ao Presépio da Quinquina
Jorge Amado
Ora, quem sabe se um dia os
fados não vos levarão a entrar num trenzinho da Leste Brasileira que, com um
atraso médio de nove horas, vos deixará em Salgado, vila perdida de Sergipe? E
quem sabe se esses fados não continuarão a brincar com o vosso destino fazendo
com que aí embarqueis num auto ou num ônibus em direção à cidade de Estancia?
Se assim for, abençoarei os fados, porque terão sido bons fados. Estância será
para vós uma bela surpresa e se não estais com o coração de todo murcho amareis
com certeza esta cidade lírica e jovial, cercados pelos rios e penetrada por um
bosque. Vos sentireis românticos e poetas andando nas ruas largas de Estancia,
olhando os velhos casarões de balcões floridos e vendo a boa gente que
atravessa as ruas num passo sem pressa. Vossos olhos contemplarão velhas
centenárias que sabem histórias de outros tempos, histórias de um sabor
inesquecível, e verão também o maravilhoso espetáculo da noite de Estancia,
bela sobre todas, noite na qual sobram as estrelas e o luar. Vereis a lua mais
inspiradora e as mais brilhantes estrelas. Muita coisa mais vereis também se
descerdes ao cais, onde as palmeiras e as canoas olham o mar distante e o rio
próximo.
Mas se os fados de tão bons
forem a fada da bondade e vos levaram a Estancia no Natal, então, ó viajante,
cruzai a rua Capitão Salomão, penetrai no Parque Triste e, ao primeiro
estanciano que encontrardes, perguntai onde fica a casa da minha prima
Quinquina. Ele vos indicará com a gentileza que caracteriza o filho desta
cidade. Marchai então para lá e marchai sem receio. Não é preciso sequer que
digais o vosso nome. Na porta encontrareis uma das irmãs e basta anunciar que
quereis ver o presépio. Antes com certeza vos farão entrar na sala de jantar
onde pedirão que, entre diversos licores, decidais daquele que querereis beber.
Será sem dúvida uma escolha difícil porque sobre a mesa encontrareis licor de
jenipapo, talvez com mais de três anos de engarrafado, licor de mangoba que é
tão fino como o mais fino licor francês, licor de banana que contém vitamina e
muitos outros mais. Porém se quereis um bom conselho provai primeiro o licor de
abacaxi. Ele é feito por Géo e duvido que sobre a face da terra, alguém saiba
fazer um licor de abacaxi como a minha prima Géo. Ao meu ver é uma das glórias
da família esse licor de abacaxi. Provai, porque depois provareis de todos os
demais e, se não sois totalmente cretino, dareis estalos com a língua, estalos
que porão rosadas de alegria as faces de Géo. Com certeza encontrareis doces e
bolos também e vos aconselho que aceiteis porque por isso não só comereis de um
prato gostoso como deixareis radiante de felicidade a minha prima Quinquina que
faz os doces. E assim, de estômago satisfeito, elas vos levarão, humildes e se
desculpando, a ver o presépio.
Antes era a sala de visitas.
Essa sala de visitas que se abre exclusivamente nas grandes ocasiões, quando a
visita é de muita importância. Agora ela desapareceu, o presépio domina tudo.
Reparai bem que o presépio é uma multidão mas não é uma confusão. Ao primeiro
momento pode vos parecer que as figuras recortadas do Tico-tico e pregadas
sobre papelão estejam misturadas com os burros e os bois de barro que são
vendidos nas feiras do nordeste. Que as estampas religiosas (Santa Rosa de
Lima, que é a santa dos olhos e da luz, e São Benedito, que é preto) estejam
profanamente próximos dessas estampas recortadas de revista mundana e que são
homens e mulheres elegantes, todos nas ruas de areia e conchas que levam à
manjedoura. Mas não há tal mistura se atentardes bem no presépio. Observareis
que vários são os planos dessa cidade em miniatura que minha prima Quinquina
constrói todos os anos na sua sala de visita. E os santos estão num plano mais
alto, os burrinhos e os bois num plano mais baixo como num terceiro estão os
homens e mulheres e o pastor com seu rebanho de carneiros brancos. São muitas
as ruas também, rua calçada de areia que veio de Mangue Seco e nas quais as
conchas brancas e cor de rosa semelham calhaós enormes. São as ruas de Bethlem,
onde nasceu o Cristo. Vós não sabeis bem como eram as ruas de Bethlem, eu não o
sei tão pouco. Só um velho historiador, desses que passam a vida sobre antigos
papéis, poderia dizer como eram de fato as ruas da cidade que assistiu ao
nascimento do Menino. Mas um historiador velho, dobrado sobre os documentos, é
um homem que já perdeu toda a poesia da vida e a sua descrição seria seca e
triste, desinteressante e por tudo isso falta de verdade. Porém minha prima
Quinquina sabe perfeitamente como eram as ruas de Bethlem. Sabe que eram pobres
porque foi principalmente para os pobres que o Cristo veio. Sabe que eram em
vários planos, enladeiradas e cheias de calhaós porque a vida de Cristo não foi
suave e ele amava as ladeiras e as montanhas. Sabe que havia cisternas porque o
Cristo amava também a água, símbolo de toda a pureza. Sabe que os rebanhos
andavam nas ruas porque sabe que o Cristo era toda bondade e amava igualmente
aos animais. Sabe que havia uma confusão de gente, santos e pecadores, mendigos
e elegantes, crianças e mulheres, porque Cristo amou a todos, sem distinção. Os
demais perderam a visão da cidade de Bethlem, não sabem das suas ruas nem da
gente que nelas estava, porque perderam a visão do Cristo ou a quiseram adaptar
a si. Mas minha prima Quinquina sabe que o Cristo foi bom e foi bom para todos,
sem distinção de classes e mesmo sem distinção sobre a virtude e o pecado. Sabe
que o Cristo foi humano também e ela não esqueceu essa lição de humanidade. Ela
não leu os teólogos, os tomistas, os neo-tomistas e guardou a visão perfeita do
Cristo: a suma bondade, a suma humanidade. Por isso é essa multidão que parece
confusão no meio das lâmpadas pequenas que iluminam a cidade e a manjedoura.
Por isso vão bois de mistura com crianças, burros ao lado das mulheres e homens
pecadores ao lado dos santos. E se caíssem uns livros ilustrados na mão da
minha prima, ela não teria receio de por Voltaire, Nero, Robespierre, Marat e
Calígula, todos os que foram e são na Terra inimigos do Cristo, porque sabe que
o Menino os receberia com o mesmo olhar sereno, e como esses inimigos são muito
diversos entre si, ele sorriria para aqueles que só combatem a caricatura que
dele fizeram os homens e abrandaria com o olhar os que odeiam a sua verdadeira
figura. E seu olhar suavizaria uns e outros corações.
Descansai os olhos na
manjedoura onde o Menino dorme, cercado pela Virgem, por São José, os Reis e os
animais. Não deveis vos importar se há desproporção entre as figuras, se o
Menino é maior que todos porque em verdade o era e isso também minha prima
Quinquina adivinhou porque na sua pobreza e na sua bondade ela sabe tudo que se
refere ao Cristo, sobre todos bom e sobre todos pobre.
Viajantes cansados dos
Natais das grandes cidades com presentes caros e champagne: ide a Estancia e no
Parque Triste encontrareis o presépio de Quinquina. Bebereis licor, comereis
bolo de aipim, conversareis com as velhas. E na sala de visitas encontrareis,
pobre e nu, cercado, no entanto, de Reis, santos, homens, mulheres e animais,
Cristo, o verdadeiro, o que perdoou Madalena, lavou os pés dos mendigos e
pescou com os pescadores nas águas do Jordão.
O Cruzeiro, 23 de dezembro
de 1939
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