Livro Todas as Crônicas: R$ 89,90 |
Com uma foto belíssima, 700
páginas e capa dura, o livro Todas as Crônicas, saindo pela Rocco, impressiona
já ao vê-lo exposto na livraria. Até pelo título que se pretende abrangente,
definitivo. Mas estarão "todas as crônicas" ali mesmo? A editora segue as pegadas de sucesso da bem
editada coletânea Todos os Contos (2016), que abrigava em um só volume os
livros de contos da escritora e mais alguns dispersos. O cuidado editorial aqui
não parece o mesmo e várias "falhas" tornam o título impreciso, o que
é uma pena.
Tribuna da Imprensa, 4 janeiro 1974 |
Foi como colunista do Jornal
do Brasil que Clarice Lispector encontrou popularidade e começou a espantar o
"hermética" que a crítica insistia em colar nela. De agosto de 1967 a
dezembro de 1973, Clarice escreveu lá todo sábado. Foram quase seis anos até ser
demitida no meio das festas de fim de ano por um bilhete (à esquerda), tendo devolvidas três
crônicas que estavam no jornal como adiantamento. E isso o prefácio (fofo) de
Marina Colasanti não conta. Nem o posfácio.
Essas colunas, que rechearam
livros como A Descoberta do Mundo (1984) e Para Não Esquecer (1978), são a
cereja do bolo aqui e vão até a página 575 de Todas as Crônicas. Depois dessa primeira
parte com a produção da era JB 1960/1970, o volumoso livro dá um drible na
cronologia. Suas últimas 120 páginas, a segunda e terceira partes, são de textos
inéditos em livro. Eles vêm de O Jornal
(sete, de 1946), revista Senhor (seis, de 61), revista Jóia (20, de 1968/69),
as derradeiras em Última Hora (seis, de 1977, o ano em que ela morreu) e do
livro Para Não Esquecer (15, sem data, sim, sem as datas em que foram escritas).
Todos os contos: 2016 |
Datas: eis um dos problemas desse
Todas as Crônicas, que as dispensa no
corpo do livro, além do que apenas três asteriscos separam as colunas, que vão
se emendando confusas. Se quiser saber a data, o leitor precisa consultar o
índice ao final, o que dificulta o prazer da leitura e de situar o momento preciso
em que Clarice as escreveu. Mais: por confusos "critérios editoriais"
que o posfácio tenta explicar, foram retiradas crônicas (ou contos) que Clarice
publicou na coluna e depois lançou em livros, trocando os títulos, muitas
vezes. Por esse "critério editorial" dançaram trinta textos (praticamente
todos estão em A Descoberta do Mundo) que, às vezes, ela parcelava a publicação
em duas, três ou até quatro semanas consecutivas. Ao final, no posfácio que
leva o título "Crônica de todas as crônicas", estão listadas essas três dezenas
de exclusões e com a página em que se encontram em Todos os Contos (os dois
livros são da mesma editora). "O ovo e a galinha", "A legião estrangeira", "Felicidade clandestina" são alguns dos contos famosos publicados no JB e suprimidos
aqui. Ok, critério editorial e ainda serve para não aumentar muito as 700
páginas, o que inviabilizaria a edição. E, para não complicar mais, melhor nem
tocar nos critérios dessa divisão crônicas, novelas, contos, pensamentos,
anotações.
VOCÊS SE LEMBRAM DE GLÓRIA
MAGADAN?
A Descoberta do Mundo, o
livro com as colunas de Clarice no JB, é considerado por muita gente o melhor
da escritora. Há quem o leia como Bíblia, abrindo ao acaso e conferindo a página
diante de seus olhos. Estão lá grande parte dos escritos dela publicados no jornal.
Muitos que ficaram fora são agora recuperados, "cerca de 60 textos (entre
crônicas e notas)", avisa o posfácio. Entre os "recuperados",
destaque para dois em que Clarice fala do incêndio de que foi vítima e que a
deixou três dias entre a vida e a morte: "Rispidez necessária" (16 maio 1970) e "Vocês se lembram de Glória Magadan?" (10 abril 1971). O incêndio também é o tema
de "Mistérios da alma humana", essa em
outubro de 1968, na revista Jóia,
"Assim, grande atenção
foi necessária para não deixar escapar nem um único fragmento sequer dos textos
publicados no Jornal do Brasil", avisa o posfácio. Mas muitos ficaram de
fora sim. Pode-se citar dezenas, mas vou resumir em "Apenas um cisco no olho" (abaixo),
que em 29 de dezembro de 1973, com esse título premonitório, encerrava a coluna e a participação de Clarice no
JB. Acabava assim: "Pois, como eu ia dizendo, lembrei-me do Ano-Novo,
assim, de repente. Desejo um 1974 muito feliz para cada um de nós." Com a
demissão súbita e a perda do espaço no Jornal do Brasil, o 1974 de Clarice
Lispector foi complicado. E esse último texto histórico não poderia ficar de
fora de um livro que se chama Todas as Crônicas, sejam quais forem os
"critérios editoriais".
Outro "critério
editorial" foi eliminar citações de autores famosos que Clarice fazia, às
vezes praticamente na coluna toda, entre aspas, claro. O campeão era Jorge Luis
Borges, que aparece em várias colunas. Em outras vezes, traduzia textos que lia
e lhe chamavam a atenção. E a partir desses autores, volta e meia falava de si
mesma. Em "A descoberta", maio de 1973, citava um trecho de Truman Capote (à direita) sobre
superstições para dar observação dela sobre o tema. Em 18 de julho de 1970, a
coluna "Folclore brasileiro" reunia algumas lendas de Henriqueta Lisboa e uma
observação: "A primeira ("Mulher dengosa") eu ouvi de cozinheiras da minha
infância." Em 11 abril de 1970, usa resposta de Hemingway (à esquerda) quando
perguntado se a situação financeira do escritor prejudicava a boa literatura.
Claro que isso não estava ali de graça, ela provavelmente usava o escritor para
falar de algo que a inquietava. Tem muitos, muitos mais exemplos disso e essas
licenças reveladoras estão todas fora de Todas as Crônicas. O interessado por
Clarice perde a chance de saber quem eram os escritores que ela lia (ou até
traduzia) naquele momento.
O livro A Descoberta do Mundo como
modelo é evidente até na repetição de alguns "erros" que existiam nele. Em vez de recorrer às colunas originais, simplesmente repetem o que está no livro anterior. "As dores da sobrevivência: Sérgio Porto" não
encerra a coluna do dia 28 setembro 68, como registra Todas as Crônicas e ocorria
em A Descoberta. Abre a do sábado seguinte, 5 de outubro. "Mãe-gentil", que
fecha a coluna de 12 de outubro de 1969, chama-se "Mãe-gente", na coluna do JB.
Errinhos que poderiam ser facilmente corrigidos numa visita às colunas
originais do jornal, aliás disponíveis na internet.
"Outra reintegração
significativa no campo das artes plásticas foi a da crônica "Paul Klee e o processo de criação", datada de 22 de julho de 1972", diz o posfácio. Ueba,
corro ao índice e a crônica não está lá. Ficou de fora. (ao lado a coluna do JB)
Diário Carioca, 1950 |
Clarice recorria muitas
vezes ao baú e textos escritos em diferentes épocas eram publicados outra vez,
às vezes mudando o título. Todas as Crônicas traz alguns dos anos 50,
republicados quase 20 anos depois. Avisa o posfácio: "É o caso, por exemplo de "O medo de errar", publicado no jornal A Manhã em 2 de julho de 1950, e que vai aparecer na edição de 13 de setembro de 1969 do Jornal do Brasil". É nessa data que "O medo de errar" aparece no livro. Por que não a de sua primeira publicação? O posfácio cita vários casos e ignora
muitos outros. Exemplos: "A sala assombrada" (JB 27 de setembro de 1969) foi publicado primeiro no Diário
Carioca, em 1950. "Algumas pessoas" (ao lado), também do Diário Carioca em 1950, gerou duas
crônicas no JB: "A inspiração" (9 maio 1970) e "A antiga dama" (27 novembro 1971).
Como no original havia quatro histórias, pode ter gerado mais duas, que não
identifiquei. Ah, O Diário Carioca não consta no livro como um dos órgãos de imprensa em que Clarice colaborou.
CHILDREN´S CORNER
Clarice em O Jornal: 1946 |
Em 1946, morando na Suíça,
Clarice Lispector enviou colaborações para jornais cariocas. "Eu também
publiquei algumas coisas , na Manhã e no Jornal. São pequenos trechos, algum
poema, tudo ligado pelo título geral de "Children´s corner". Talvez
eu mande para você, mas não vale a pena.", ela escreve em carta datada de
8 de fevereiro de 1947, para o amigo Fernando Sabino, que morava em Nova York.
Essas primeiras colunas dela, publicadas em duas edições de O Jornal, rendem nove
páginas de Todas as Crônicas, que exclui dois textos: "O manifesto da cidade e A rosa branca", publicados em 2 de fevereiro de 1947. Como assim, excluir dois contos da estreia da colunista Clarice? Pois é.
Está aí, no final de 1946, o
início do título "Children´s corner", uma marca de Clarice. Três anos
depois, ela começou colaboração no Diário Carioca e a coluna de estreia (2
julho 1950) saiu sem título. Na edição seguinte vinha a errata: "àquelas
anotações diversas se deu o nome de "Children´s Corner"." No final dos anos
50, Clarice retomou "Children´s corner", para nomear sua seção na revista Senhor.
Foi na Senhor que Clarice se tornou mais "conhecida" e foi lida pelo
garoto Caetano Veloso, que depois iniciaria a irmã Maria Bethânia nos mistérios
de Clarice, mas essa é outra história.
JÓIA
Os escritos para a Jóia,
revista mensal feminina da editora Bloch, estão aqui em 36 páginas. São de 1968/69,
quando ela já escrevia todo sábado no JB. "Tati Moraes e eu traduzimos uma
peça de Lilian Hellman para Tonia Carrero levar": assim começa "Traduzir procurando não trair", a primeira das "crônicas" na Jóia, sobre suas
experiências com tradução. Interessante, mas que peça foi? Clarice não conta e
Todas as Crônicas, que dispensa as notas de rodapé, também não desvenda. Trata-se de Os
Corruptos, montada por Tônia em 1967. Inéditas em livro, essas crônicas da Jóia, as mais numerosas depois das do JB,, trazem bastante informações para quem quiser conhecer mais do cotidiano
de Clarice - idas ao teatro, encontros com os amigos.
As seis crônicas de A Última
Hora valem por serem as derradeiras de Clarice. Como várias já haviam saído em
outros jornais e livros, não foram incluídas em Todas as Crônicas. A última em
UH, o posfácio informa, é "Tempestade mental", na edição de 5 e 6 de novembro de
1977, "na semana em que faleceu", informa erradamente o prefácio. Clarice
morreu um mês depois, em 9 de dezembro.
Segue o posfácio: "Todavia, esse texto nada mais era que "Brain storm", editado no Jornal do Brasil em 22 de novembro de 1969. Era sim e voltou também em 1º setembro de 71 como o título de "Tempestade de almas", isso não informam. Enfim, "Tempestade mental" não foi incluída em Todas as Crônicas, porque está em Todos os Contos e com esse título. Confuso? É. E bastante. Um emaranhado, mas que poderia ter sido resolvido em uma edição mais cuidadosa.
Segue o posfácio: "Todavia, esse texto nada mais era que "Brain storm", editado no Jornal do Brasil em 22 de novembro de 1969. Era sim e voltou também em 1º setembro de 71 como o título de "Tempestade de almas", isso não informam. Enfim, "Tempestade mental" não foi incluída em Todas as Crônicas, porque está em Todos os Contos e com esse título. Confuso? É. E bastante. Um emaranhado, mas que poderia ter sido resolvido em uma edição mais cuidadosa.
O Cruzeiro |
Os quinze textos do livro
Para Não Esquecer formam a terceira e última parte desse Todas as Crônicas, sem
informação de quando foram escritos e nem de onde foram publicados. Parecem estar aqui apenas para justificar o "Todas" do título. De dois deles consegui a origem: "Berna" e "Um homem espanhol" saíram na revista O Cruzeiro, com os títulos de "Instante alpino" e "Pepe, el guia" (ao lado), em
setembro de 1949 e fevereiro de 1950, respectivamente. E na prestigiada página três,
que abrigava crônicas escritas por mulheres. Todas as Crônicas omite essa
origem e nem fala nas colaborações de Clarice Lispector em O Cruzeiro,
a revista mais prestigiada daquela época.
Todas as Crônicas não é
livro que vá interessar aos não-iniciados na obra de Clarice Lispector. E essas
"falhas" servem para diminuir o prazer da leitura para os iniciados. E
não, o título exagera, ali não estão "todas as crônicas" escritas por
Clarice. Um "Quase" caberia muito bem no lugar de "Todas". Uma parte dois pode vir a nascer tranquilamente. E A Descoberta do
Mundo, que não inclui todas as colunas do Jornal do Brasil, segue sendo o melhor livro editado com elas. Foi a coluna no JB que começou a levar o verbo de Clarice Lispector a um público maior. E esse público aumentaria com Maria Bethânia declamando seus textos em shows. Essa também é outra história. E até já escrevi um pouco sobre isso. (Link abaixo)
http://viledesm.blogspot.com/2017/12/a-mulher-que-popularizou-clarice.html
http://viledesm.blogspot.com/2017/12/a-mulher-que-popularizou-clarice.html
Um comentário:
O "Apenas um cisco no olho" não ficou de fora do livro. Ele está lá, embora sem o trecho final que você citou, sob outro nome: "Potência e fragilidade".a
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