Contracapa do encarte do CD Rosa Amarela |
Está lá o texto, letrinhas
miúdas, em duas páginas do encarte de Rosa
Amarela, o disco que Miúcha gravou para o Japão e foi lançado aqui em 1999.
Seria a apresentação do CD, que ela inventou de escrever numa máquina elétrica
e acabou saindo muito mais, cheio de revelações sobre ela, os cantos da infância, a primeira vez no Japão, sobre a Música
brasileira a cada linha. E que fica mais revelador ainda após a morte dela,
ontem, 27 de dezembro, aos 81 anos. A partir de agora é tudo de Miúcha, foi ela quem escreveu.
Gostei tanto desse disco que
está sendo difícil me desprender dele. Deve ser por isso que há mais de um mês
venho tentando inutilmente encontrar as palavras exatas para essa apresentação,
essa despedida, sei lá. É mais um filho que vai morar fora. Fiquei de mandar
esse texto até amanhã, acho que vou desistir e telefono para Paulo César
Pinheiro, amigo e poeta, na esperança de que ele assuma por mim essa tarefa que
eu mesma inventei. Mas ele está dormindo e eu volto à máquina elétrica -
acreditam? - batendo na porta fechada de qualquer inspiração. Afinal, um disco
não se explica, se escuta, se sente.
Mas certamente ele não
existiria sem a colaboração de vários pais, de um lado e de outro do oceano.
Surpreendentemente, foi uma gravadora japonesa, a Omagatoki, que me dando total
liberdade na escolha do repertório, abriu caminho para um disco tão brasileiro.
Para isso contei também com a sensibilidade de Kazuo Yoshida, meu produtor, com
quem acabei desenvolvendo uma perfeita sintonia telepática, um clima de
confiança e respeiro mútuos. Com Monica Ramos no elenco de apoio, ele convocou
músicos maravilhosos como Maurício Carrilho e Jota Moraes para escrever os
arranjos. Também reuniu, mais uma vez, o "Buffalo Trio" (Luiz Claudio
Ramos, Franklin da flauta e eu) em Santo
Amaro, parceria dos dois com Aldir Blanc. Gosto tanto desse choro que
apesar de já ter gravado em 1980, achei que agora poderíamos interpretá-lo
melhor, como lembrança de nossa primeira viagem ao Japão, em 1996, onde e
quando tudo começou.
No Sabbath, Tóquio, em setembro 1996 |
Nesse ponto do texto que não
sei se consigo escrever, aparece a figura de Keiko. Já tinham me convidado
algumas vezes para ir ao Japão, mas foi Keiko quem me levou pela primeira vez,
para uma temporada em seu "Sabbath", em Tóquio e em Kobe (no final, link para esse show). A gentileza
de Keiko, Taichi, sua família e equipe, somada ao imenso carinho que recebi do
público japonês, fizeram dessa viagem uma das melhores experiências dos últimos
anos. Não poderia imaginar que a essa altura da vida, num país aparentemente
tão diferente, eu ainda fosse fazer tantos amigos. Eles me ensinaram o
inesperado senso de humor dos japoneses, seu jeito de ser. Sua comida, sua
religião, sua arte. A língua, me desculpem, é difícil demais, mas continuo me
esforçando. Essa experiência toda foi tão poderosa, que em menos de seis meses
depois de minha estréia em Tóquio, o disco estava pronto no Brasil. Acho que
foi a melhor maneira que encontrei para agradecer tudo de bom que recebi.
P.S. Paulinho Pinheiro não
acorda e eu, que não conseguia escrever nada, continuo cheia de assunto,
batucando essa máquina elétrica - já acreditaram? - talvez para ganhar tempo,
para ficar viajando nessas lembranças todas que o disco traz. Não foi bem assim
que tudo começou. Lembro que me fiz bem séria, me compenetrei muito e comecei a
pensar em vários projetos, alguns bem interessantes. Mas, pairava uma sensação
de estar forçando a barra, de querer moldar alguma coisa diferente, um antiprojeto,
talvez. E tratei de ficar muito quieta, tentando sintonizar aquela atenção
desligada que nos faz perceber melhor as coisas mais sutis, e comecei a ouvir
algumas canções que já tinham vida própria dentro de mim, que eu já tinha cantado
muito, mas por algum motivo não tinha gravado.
Lembrei dos ensaios com Tom
Jobim, das tardes douradas na beira do piano, deixando surgir como pássaros, as
belíssimas canções de Custódio Mesquita, Bororó, Ary Barroso. De Ary gravei
agora Por Causa Desta Cabocla, que me
faz pensar em Rafael Rabello e no disco que planejávamos gravar e que nunca
aconteceu. Eram noites inteiras de ensaio, então. Noites estreladas, nos
cantando, Rafael tocando e os dois chorando copiosamente. Wai-wai. Essas
músicas, essas coisas todas ainda me fazem chorar, Rafa.
A
Mesma Rosa Amarela tem um caso antigo comigo. Não sei quando e
onde nos conhecemos, acho que ela sempre me encantou e eu sempre a cantei. Há
muitos anos, me apresentando em Olinda, tive a alegria de reconhecer Capiba,
seu autor, na plateia. Galante, me autografou carinhos em seus discos e
garantiu que ninguém interpretava A Mesma
Rosa Amarela como eu. Fiquei toda prosa e feliz e adorei gravar essa música
tão simples e tão terna, que permaneceu fresca e perfumada dentro de mim para
florescer agora e dar nome a esse disco.
Quem já conhece um pouco de
música brasileira vai notar que, com exceção de De Você Eu Gosto, do Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, cuja gravação
de Silvinha Telles num velho vinil do começo dos anos 60 guardo até hoje, não
gravei nenhum clássico do repertório da bossa-nova, que tem sido tão bem
difundido por seus próprios criadores. Procurei dar um abraço maior nessa
amplidão que é a nossa música popular, dos anos 30 até agora, com a recentíssima
Assentamento, de Chico Buarque,
dedicada ao Movimento dos Sem-Terra.
Entre as músicas já cantadas
e amadas, inclui também nesse disco João
e Maria (Sivuca - Chico), Choro
Bandido (Edu Lobo - Chico Buarque) e Só
o Tempo (Paulinho da Viola).
Pressentimento
(Elton Medeiros - Hermínio Bello de Carvalho) me faz lembrar de Babá, das
cantorias na rua Buri, meus irmãos e eu, ainda crianças, imitando as vozes das
pastoras de Ataulfo Alves. Valsa de Uma
Cidade me faz sonhar com um Rio de Janeiro mais tranquilo e feliz, leve
como uma música da Metro.Doce de Coco (Jacob
do Bandolim - Hermínio Bello de Carvalho)
é paixão antiga, namoro recente. Paixão recente (e fulminante) foi minha
irmã Cristina quem captou antes: Cabrochinha,
de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro (está na hora de ligar de novo para
a casa dele, tomara que já tenha acordado e possa escrever um texto, esse
texto, enfim, o que eu prometi entregar até amanhã). Mas como eu ia dizendo, em
Cabrochinha sobra um humor muito
carioca na melodia, na letra e nos maravilhosos arranjos de sopros, vários
instrumentos diferentes, que um só músico, Paulo Sérgio Santos executa com
tanta precisão e esperteza. Agradeço a todos os músicos que deram o melhor de
si para fazer esta festa acontecer. Foi uma comemoração, e vai ver é por isso
que eu não estava conseguindo escrever, descrever nada. É impossível explicar
essa mágica que às vezes a música faz acontecer. Não tem explicação nem
controle, aparece quando quer e eu fico muito feliz em sentir sua presença e
saber que ela nos guiou.
Antonio Carlos Jobim dedicou
o primeiro disco que gravamos juntos a Radamés Gnatalli, outro grande maestro
brasileiro. E escreveu na contracapa do disco: "O Brazyl não conhece o
Brasil." Mauricio Tapajós e Aldir Blanc usaram essa frase como refrão e
inspiração para Querelas do Brasil,
que encerra esse nosso CD. O Brazyl não conhece o Brasil, Mas espero que o
Japão fique conhecendo um pouco melhor, E, recitando também meu Maestro
Soberano, gostaria de dizer:
Esse disco é dedicado a
Antonio Carlos Jobim, pelos incansáveis, vastos e imensos prestados à Música
Brasileira.
No encarte do disco Rosa Amarela, lançado aqui em 1999.
Aqui, Miúcha no show do Sabbath, Tóquio, em setembro de 1996
E aqui, Miúcha canta a "recentíssima Assentamento, de Chico Buarque, dedicada ao Movimento dos Sem-Terra"
Um comentário:
Tinha visto o e-mail quando chegou. No corre-corre, leio depois, pensei, e acabei lendo somente agora, nesta manhã de sábado 29 de dezembro.
Deve ter sido postado no TT, claro, mas também comi barriga por lá: tenho entrado pouco e perdido muito com isso.
Do que li sobre a partida de Miúcha, seguramente esta lembrança do Vilmar foi a que mais me comoveu.
Lembrou-me já ter lido à época, o que releio com o mesmo encantamento: que prosa boa a de Miúcha! E nem sabia se sabia escrever...
A postagem toda é uma beleza, da apresentação aos vídeos que nos mostraram, mais uma vez, que Miúcha era muito maior do que pudemos perceber esse tempo todo.
Valeu, Miúcha!
Obrigado, Vilmar.
cid
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