sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Véspera e dia de Natal de 1958 por Carolina Maria de Jesus


 24 de dezembro

Hoje estou com sorte. Tem muitos papéis na rua. (...) As 5 horas comecei vestir-me para eu ir no Centro Espírita Divino Mestre receber os donativos natalinos. Preparei os filhos e saí. (...) Eu ouvi vozes:
- Estão dando cartões!
Corri para ver. Vi os favelados rodeando um carro. E o povo correndo para ganhar cartões. No carro estava apenas o motorista. E o povo pedia:
- Dá um para mim. Dá um para mim!
O motorista dizia:
- Vocês sujam o carro!
Perguntei-lhe:
- O que é que o senhor está distribuindo?
- Eu vim aqui para trazer um homem. Nem sei o que este povo está pedindo.
- É que na época de Natal, quando vem um automóvel aqui, eles pensam que vieram dar presentes.
- Nunca mais hei de vir aqui no Natal - disse o motorista nos olhando com repugnância.
Havia tantas pessoas ao redor do automóvel que não pude anotar a placa.

...No Centro Espírita a fila já estava enorme quando nós chegamos. (...) Os 10 filhos de uma nortista estavam pedindo pão. A Dona Maria Preta deu 15 cruzeiros para ela. Ela foi comprar pão.
O Senhor Pinheiro, digníssimo presidente do Centro Espírita, saiu para conversar com os indigentes. (...) Passou um senhor, parou e nos olhou. E disse perceptível:

- Será que este povo é deste mundo?
Eu achei graça e respondi:
- Nós somos feios e mal vestidos, mas somos deste mundo.

Passei a olhar naquele povo para ver se apresentava aspecto humano ou aspecto de fantasma. O homem seguiu sorrindo. E eu fiquei analisando. Quando penetramos para receber os premios, o meu era número 90. Eu e os demais ganhamos presentes e generos:  roupa, chá mate, batatas, arroz e feijão. O Senhor Pinheiro convidou-me para eu ir ao Centro.

Era 9 e meia quando nós chegamos no ponto do bonde e fomos ver um presepio que fizeram na garagem que está vaga. Havia uma placa onde se lia: Entrada gratis. Mas no presépio tinha uma bandeja com cédulas de 1 a 100. Quando saí elogiei o presepio. Unica coisa que eu posso fazer.
Quando cheguei na favela encontrei a porta aberta. O luar está maravilhoso.

25 de dezembro

O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio.

Não sei porque é que esses comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer

Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer.

          Do livro Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Torturas de Natal por Caio Fernando Abreu

 

Natal de 1956: Os irmãos Cláudio e Caio (o mais alto) 

                                               Torturas de Natal

Cada vez que olho esta fotografia tenho uma espécie de susto, e penso obviedades do tipo: "Meu Deus, o tempo existe!". Tirada no Natal de 1956, ela tem – cruzes! – 34 anos.

Todo Natal, era sagrado, minha mãe emperiquitava a mim e a meu irmão Cláudio com modelinhos de linho branco e odiosas meias soquete, com elásticos eternamente frouxos, que acabavam escorregando patéticos pelas canelas finas – e chamava o fotógrafo. Não era nada simples chamar um fotógrafo naquele tempo, ainda mais o "Seo Fininho".

"Seo Fininho" era magro como um aspargo, branco como a polpa das peras que começavam a amadurecer no quintal. Além disso, tinha a alma delicada e era o único fotógrafo de Santiago do Boqueirão. Tão requisitado que, dizem, às vezes era chamado até para fazer fotos na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Por isso mesmo, era preciso chamá-lo às três da tarde para que aparecesse lá pelas cinco ou seis. Durante todo esse tempo, interminável para Gremlins de sete, oito anos de idade como nós – eu e Cláudio ficávamos enfatiotados e absolutamente proibidos de tocar nos brinquedos colocados ao pé da árvore. Era horrível. Sim, porque no 25 de dezembro à tarde simplesmente toda a molecada estava deitando e rolando pelas ruas da cidade com os brinquedos ganhos na véspera. E nós ali, presos naquelas armaduras de linho branco, com golas abotoadas até o pescoço.

Embora – ou por isso mesmo – tivesse apenas sete ou oito anos de idade, eu já era capaz de ódios profundos. O suor escorria por baixo do paletó (a gente dizia trajo), as meias escorregavam canelas abaixo e o ódio pelo pobre "Seo Fininho" fervia n'alma, assim mesmo com apóstrofe. Só que, fazer malcriação, nem pensar: éramos filhos de Dona Nair, a primeira das dez mais elegantes da cidade, do seu Zaél, orador oficial do Clube União Santiaguense e, como se não bastasse, netos do ex-prefeito Manuel Abreu e de Dona Zaira, diretora do Grupo Escolar Apolinário Alegre, leitora voraz de Machado de Assis. Ou seja, para nossa desgraça, tínhamos que ser finíssimos, exemplo de educação, elegância e bom-comportamento para toda a cidade. Não entendo como, mas ninguém suspeitava de nossa bandidagem, capaz de loucuras como soltar uma galinha do mezanino no Cine Imperial, em pleno suspense do seriado na matinê de domingo. O mocinho amarrado nos trilhos do trem e aquele cá-cá-cá de penas voando em todas as direções, enquanto nosso primo Beto gritava "Fogo! Fogo!'.

Nesse Natal – e olhando a foto, percebo que a árvore não era dessas de plástico de hoje, mas de pinheiro autêntico –, quando "Seo Fininho" chegou, nem eu nem Cláudio aguentávamos mais esperar. Hirtos, obedecendo às ordens de "olha o passarinho! agora, sem se mexer! não pisca, guri!” o jeito que encontrei de expressar o mau- humor foi arregalar os olhos. Meu irmão deixou cair os ombros de tanto rir. Tarde demais: "Seo Fininho" já tinha nos gravado para a posteridade.

Fico olhando os brinquedos a nossos pés. Engraçado, não lembro de quase nada, à exceção do carrinho de madeira com que transportei muita terra, fazendo cidades de areia no fundo do quintal e bonecos de barro que rachavam irremediavelmente quando colocados ao sol para secar. Na verdade, eu nem ligava muito para brinquedos. Já andava escrevendo algumas histórias, lendo Érico Veríssimo escondido, e tenho certeza que lembrava ainda do acontecido impressionante de dois anos antes. Foi no dia em que Getúlio Vargas suicidou-se, e eu perguntei a vovó, que chorava sem parar: "Vovó, o que é mesmo um presidente?" Ela respondeu: "É assim como uma espécie de pai de todo mundo”.  Até hoje, fiquei com isso na cabeça. A sensação de traição, naturalmente, tem sido medonha nos últimos 36 anos...

Mas, por trás das desilusões políticas, ficaram as fotos dos Natais, o presépio com casinha de papel, os galhos verdadeiros dos pinheiros, a certeza de que, naquela tarde, havia sol lá fora, e uma pergunta inquietante: o que será que a vida fez com o pobre do "Seo Fininho"?
                                                             
                                            Revista AZ – dezembro de 1990

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Três natais por Lucio Cardoso

A Noite - Rio, 23 de dezembro de 1952

O NATAL DE CADA UM

Acabo de vir do Recife, e lá, como aqui, encontro expostos nas casas de comércio, nas ruas e nas fisionomias dos transeuntes, os primórdios do Natal. Evidentemente trata-se de um Natal particular para cada um, e o Norte, com seus aspectos característicos, participa um pouco de vários natais diferentes: é o típico, da cidade com seus anúncios de Papai Noel recortado em cartão e colado na "marquise" das grandes casas comerciais, com árvores cobertas de neve de algodão e frutas estrangeiras, é claro, a preços astronômicos - é o Natal do próprio Recife, um pouco aglomerado para as bancas do Mercado, com frutas do próprio Norte, isto é, cajus, mangas, abacaxis e graviolas, com suas sandálias de couro, seus cantadores de feiras e, mais do que isto, nas estradas cobertas de pó e iluminadas por uma luz incerta de candieiro a querosene, os mamelungos e os reisados, as pastorinhas, e mil outros pequenos costumes que emprestam tanta vida ao folclore nordestino. Tudo isto, misturado, faz um pouco os primórdios do Natal que se aproxima - e cumpre dizer que me pareceu o mais natural, e mais autêntico, aquele em que as pastorinhas se dividem numa hipotética batalha do vermelho e do azul (eu sou azul) e cantam e dançam de um modo tão ingênuo, rodeando um anjo cor de rosa, e todas com estrelas de prata que chacoalham nas mãos. Este Natal é sem dúvida o mais belo, pois não há nele o vil interesse de comércio, nem Mercúrio se mistura aos festejos do Menino-Deus - mas cumpre lembrar que é também o Natal de uma gente triste e angustiada, que se encolhe à beira de estradas poeirentas, há muito não visitadas pelas chuvas, e que levantam um canto triste, dolorido, em homenagem a uma entidade divina que há muito parece tê-los esquecidos, e que eles teimam em lembrar, à sombra dos seus mocambos miseráveis, e onde cresce o Brasil mais triste e mais anônimo que já vi em minha vida..
º
Isto evidentemente me faz lembrar o Natal de minha terra, que é num outro quadrado do mapa, em Minas Gerais. Meu Deus do céu, como o Brasil é grande. Também os Natais se misturam em Minas, e com as fachadas adornadas comercialmente, há um cheiro bom de jambo e de presépio, que compõe o Natal do menino que todos nós fomos.

Lembro-me bem: durante dias e dias preparávamos o presépio, com suas enormes serras de papelão cobertas de carvão, areia e malacacheta, e que cintilavam tão bem ao sol, imitando a vasta cordilheira azul da Piedade... E havia antes os passeios pela serra, à procura de musgo e plantas que adornassem de cores vivas a homenagem - coroas de frades e brincos da rainha - ah, como tudo isto se acha presente à minha memória, com suas areias escolhidas no fundo do rio, o arroz plantado dias e dias antes, e que agora cresce verde e fino sobre velhas latas de goiabada, e jambos, e mangas, e barbas de boi pendurados em todos os cantos, com a grande estrela anunciadora brilhando num lance mais agudo da serra, muito ao longe, os reis magos que se aproximam, que se aproximam, e que demorarão até fevereiro para se colocarem, definitivamente, à entrada da gruta onde as imagens celestes contemplam o divino menino que acaba de nascer...
Este era o meu Natal, e havia ainda maçãs e nozes, e os doces da grande noite, enquanto, desde cedo, conduzidos por mãos ansiosas, os sapatos descansavam atrás das portas, à espera do grande milagre, da mais bela das farsas, a que faria amanhecê-los cobertos de presentes, como se realmente o mundo fosse uma seara de milagres, e as estrelas caminhassem, e os reis chegassem de longe, e a poesia, finalmente, fosse possível num mundo sem maldade.
Mas isto são coisas de antigamente, que já não existem mais.
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Existe ainda um outro Natal, e este é o nosso, o Natal dos tempos que correm, o Natal no Rio. Pouca coisa da tradição, muito pouca de poesia, nem pastorinhas nem reisados, nem presépios, nem milagres. O Natal que vivemos é duro, feito de aço, um natal da era atômica. As casas comerciais gritam e se iluminam, as vitrinas transbordam de presentes e objetos raros. Mas há uma tristeza nos olhares e esta gente que compra apressada, quase furtivamente, traz uma melancolia expressa no olhar, e procura, e reprocura, nas vitrinas e nos balcões, não à cata do melhor, mais do mais barato, do pior. É a triste gente de hoje que vive em luta contra o quotidiano sem horizontes, tendo o abono como limite, a esperança, um pouco massacrada, como alimento de todos os dias, e um desejo de chegar depressa, de acabar qualquer coisa e de passar, como imagina que os outros passem, um Natal sem alegria e sem tradição.
É um Natal sem caráter, o Natal do carioca. Também, coitado, criaram para ele o mais cético dos apelidos: Barnabé. Consola-nos saber que é hoje o mais autênticos dos Natais dos brasileiros, pois a verdade é que nos convertemos numa vasta República de Barnabés. Seria esta a definição ideal de barnabé: um homem sem tradição, um homem sem Natal. Não há para ele senão o postulado da pressa e da discussão sobre o aumento - e consola-se sem dúvida, durante o seu sono, em recordar que houve Natal antigamente, e que decerto não mudou, como sugeriu o escritor, mas que rosnou* para longe, para muito distante, onde os homens são menos utilitaristas desta estranha* e vaga que se chama infância, e sem a qual a vida nada é mais senão um jogo atroz de carências e mortes repisadas.

* palavras meio que adivinhadas e praticamente inelegíveis)

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

10 coisas que a gata Nina ama

 

Ficar de pé feito humano: ama, ficou fora da lista

Era bebê abandonado nas ruas de Guarulhos  e foi resgatada pela santa e linda Rute, que a cuidou e deu carinho. Por essa época, cálculos humanos, Nina tem dois anos completados há pouco. É a dona da casa desde que aqui chegou com pouco mais de dois meses. E em homenagem aos dois anos de Nina, uma lista de coisas que ela ama. São muitas, tive que cortar algumas. A lista é secreta, pois Nina preza sua intimidade.

                                     10 COISAS QUE A GATA NINA AMA

1 - Água corrente direto da torneira. E sim, mia pra abrir a torneira pra ela, o que os humanos a seu dispor fazem com o maior prazer.

2 - Ser escovada. De manhã e pós banho dos humanos, fica a postos na bancada do banheiro.  Tem uma quedinha quando a escova trafega pelas  bochechas e um esgar satifeito de dentes confirma a preferência.

3 - Cheirar a comida dos humanos. Só come ração, mas fica louquinha pra cheirar a comida no prato e depois dá uma lambidinha nos beiços.

Nina: minhas caixas, minha casa

4 - Caixas. Há muitas espalhadas pela casa, ama se refugiar nelas com uma cara sapeca.

5 - Abrir porta de armários. Aprendeu sozinha e a fechá-las com as patinhas inquietas também. E dá umas olhadas satisfeita  quando as fecha.

6 - Bolas, jogar bolas, que podem ser de ping pong e de papel enrolado. Essas são as preferidas atuais, principalmente as formadas por vários papeis de bolas dadinho. Já foram as de bombom, mas a danada as destrói e o medo de que engula pedaços trouxe a substituição por balas dadinho.

Qual folhinha eu vou comer?

7 - Comer plantas. Não todas, só a escolhidas, folhas e principalmente as secas.

8 - Janela, ficar na janela, atenta aos humanos que passam lá longe, na rua. Para ela devem ser semelhantes a formiguinhas, imagino. E ama o cantar dos passarinhos, de um sabiá vizinho principalmente.

9 - Corridas pela casa feito relâmpago e principalmente com um humano atrás dela. Não é chegada em colo de humanos,  exceto quando eles estão na cama.

Colo só deitado

10 - Ir para baixo das cobertas, mas só quando está friozinho, 18 graus ou menos. Chega toda meiga no peito do humano deitado, lança uns olhares e quando as cobertas são levantadas, escala aquele menos de um palmo como se um abismo fosse. Daí se esgueira por baixo das cobertas em busca do melhor lugar. Geralmente bem coladinha na perna de um humano pra transmitir a quentura.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Clarice 100 anos: Uma ilustração rara, Drummond e autógrafos

 

É uma bela ilustração e não lembro de tê-la visto em nenhum dos livros sobre Clarice Lispector.  Nem na bela e completa Clarice Fotobiografia de Nádia Battela Gotlib, publicada pela Imprensa Oficial SP em 2007.

A ilustração não é assinada, foi publicada na edição de março/abril de 1946 da revista A Casa no artigo As Palavras de Clarice, assinado por Guilherme Figueiredo. Clarice acabara de lançar O Lustre, seu segundo livro que saiu pela Editora Agir. "Leio essa misteriosa, diáfana Clarice Lispector, para quem as palavras não limitam objetos, e que escreve romances numa atmosfera de sensações menos comunicadas através da linguagem do que reconduzidas aos nervos do leitor", assim começa o texto de Figueiredo.


Revista A Casa, março/abril 1946

Clarice / 
veio de um mistério, partiu para outro: Primeiro verso do poema Visão de Clarice, de Carlos Drummond de Andrade, que saiu na capa do caderno B do Jornal do Brasil com a notícia da morte da escritora.


E no dia do centenário da escritora, duas fotos de sessões de autógrafo, ambas do início dos anos 60. Adoro o olhar de Rubem Braga para a amiga e sempre fico atento a Clarice no fundo da segunda foto: ela parece assustada diante do burburinho. Em que estaria pensando Clarice Lispector?





quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Clarice 100 anos: As empregadas e a patroa Clarice Lispector


São ótimas as histórias das empregadas de Clarice Lispector. E nem falo da ficção, só as que existiram e que ela transformou em personagens de suas crônicas. E descobri mais algumas que vieram via Paulo Mendes Campos, que foi amigo de Clarice e, anos depois que ele escreveu sobre as empregadas dela, viveram um romance. 

Abaixo, Paulo Mendes Campos apresenta ROSA, a italiana que trabalhou com Clarice quando ela morava na Suiça nos anos 40.

Da coluna de Paulo Mendes Campos na revista Manchete, em 1952

Seis anos depois, em 1958, na coluna com o título Minhas Empregadas, Paulo Mendes Campos volta a falar das que trabalharam para a amiga e observa: "A meu ver, em língua portuguesa, ninguém exprimiu mais concretamente do que a romancista Clarice Lispector certas finuras de reações psicológicas". E conta sobre três empregadas de Clarice.

"a alma roída por um mal desconhecido"

E antes que alguém venha com exploração de classes, é bom ouvir Clarice e o que ela escreveu na crônica Por Trás da Devoção, publicada no JB em 2 de dezembro de 1967.

"Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e exploradora, piorei muito depois que assisti à peça As Criadas, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal. Em As Criadas, de Jean Genet, as duas sabem que a patroa tem de morrer. Mas a escravidão aos donos é arcaica demais para poder ser vencida. E, em vez de envenenar a terrível patroa, uma delas toma o veneno que lhe destinava, e a outra criada dedica o resto da vida a sofrer.

Às vezes o ódio não é declarado, toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais." 

Érico Freitas e Carlos Vereza em As Criadas, na montagem citada por Clarice

Aqui, seis das empregadas de Clarice, saídas de crônicas publicadas no Jornal do Brasil no fim de 1967, o ano em que ela começou a publicar suas semanalmente no jornal. Tem a mineira calada, a cozinheira forte e vidente, a argentina bajuladora e com passado de vedete, a que fazia análise duas vezes por semana....

ANINHA
É "A Mineira Calada". Raramente fala e "quando fala, vem aquela voz abafada."

Um dia de manhã, arrumando um canto da sala, Aninha perguntou: "A senhora escreve livros?". Meio surpresa, Clarice respondeu que sim e "sem parar de arrumar e sem altear a voz" perguntou se ela podia emprestar um. Franca, Clarice lhe disse que ela não ia gostar porque seus livros eram "um pouco complicados".
A resposta de Aninha é uma maravilha: "Foi então que, continuando a arrumar, e com a voz ainda mais abafada, respondeu: "Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açucar."

Algumas semanas depois, Clarice voltou a falar de Aninha em outra crônica. "Pois bem, ela se transformou. Como se desenvolveu aqui em casa! Até puxa conversa, e a voz agora é muito mais clara."

JANDIRA
É "A Vidente". É cozinheira. "Mas esta é forte. Tão forte que é vidente."

"Uma de minhas irmãs estava visitando-me. Jandira entrou na sala, olhou sério para ela e subitamente disse: "A viagem que a senhora pretende fazer vai se realizar, e a senhora está atravessando um período muito feliz na vida."

E Jandira saiu da sala. Encabulada, Clarice disse "É que ela é vidente". A irmã respondeu tranquila: "Bom. Cada um tem a empregada que merece."

A hora do pagamento do salário e com o aumento prometido é o assunto de Agradecimento?, na mesma data. "ficou contando o dinheiro e eu parada, esperando para ver se estava certo. Quando acabou de contar, não disse uma palavra, inclinou-se e beijou meu ombro esquero. Eu, hein!"

Jandira, a vidente, retorna em outra crônica, Por Trás da Devoção, inclusive "ajudando" Clarice a resolver um problema com Aninha, a quem a patroa costumava chamar de Aparecida.

IVONE
A protagonista de "A Coisa", essa ex-empregada.
Clarice a chamava e nada, chamava de novo e igualmente nada, até que depois de muitos chamados, "Ela se virava de um só golpe e dava um verdadeiro berro: "Chega!!!"

O tempo passando, "a coisa" se repetindo até o dia em que a patroa deu um basta: "Hoje quem diz chega sou eu. Quero que você arrume um outro emprego e seja muito feliz na nova casa.
"Ao que ela respondeu inesperadamente com voz bem fininha, a mais melosa, humilde, e enjoativa que se possa imaginar: "Sim, Senhora."
E depois desse dia, conta Clarice, Ivone já lhe telefonou várias vezes e "outras vem pessoalmente visitar-me"

MARIA DEL CARMEN
Argentina, extremamente vaidosa, usava cílios postiços e "parecia ter olhos de bonecas rígidas". A Del Carmen "pseudamente" a adorava e bajulava demais. Foi empregada sem referências e antes trabalhara arrumando camas de "hotéis suspeitos" e também já tinha trabalhado em teatro. 
Tônia Carrero, a quem serviu um café, decifrou a charada: devia ser uma das contratadas de Valter Pinto para o teatro rebolado. "Terminou indo embora sem sequer me avisar.

SEM NOME
Foi com Clarice para os Estados Unidos, ficou por lá para casar-se com um engenheiro inglês, morava em Washington. Em 1963, Clarice foi fazer uma palestra no Texas, ligou, ouviu que ela falava com sotaque americanizado e queria que fosse visitá-la. Disse que não tinha dinheiro. A ex-empregada se ofereceu pra pagar. "Claro que não aceitei, além de que nem tempo tinha."

SEM NOME 2
"E a empregada que tive e não posso dar seu nome por uma questão de segredo profissional?"

É que ela fazia análise duas vezes por semana e, nos momentos de angústias telefonava para a Dra Neide. No começo, escondeu que frequentava o divã. 

"Quando ela não estava bem, o que acontecia com frequência, era malcriada demais, revoltada demais, embora depois caísse em si e pedisse desculpas. Só trabalhava com rádio de pilha ligado ao máximo, e acompanhado pelo seu canto de voz aguda e altíssima. Se eu, já infernizada, pedia-lhe que fizesse menos barulho, aí é que aumentava o rádio e alteava a voz. Suportei, até que não suportei mais. Despedi-a com muito cuidado."


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Clarice 100 anos: um selo e a frase impressa nele

"E tudo aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima: são as verdadeiras cores."

Foi a frase escolhida para o selo com Clarice Lispector lançado em 1998 pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Era a série América 98 - Mulheres, criada pela artista plástica Martha Poppe, que faleceu em 2019 e desenhou a história dos Correios e a arte filatélica no Brasil. 

Feita em papel couchê gomado e com cores fluorescentes nas margens, a série homenageava Clarice, as cantoras Elis Regina e Clementina de Jesus e a atriz Dulcina de Moraes.

A frase no selo é trecho de carta enviada para Lucio Cardoso, 1944 "escrita em meados de setembro; já é 5 de outubro e ainda nao tenho portador." Está nos livros Correspondências e no recente Todas as Crônicas e o segundo livro dela, O Lustre, ainda não havia saído - a primeira publicação foi em 1946. Recém chegada na Europa, Clarice escreve de Nápoles - "aqui tudo tem cor esmaecida".


Trechos da bela carta 

"Depois fui a Casablanca, como correio diplomático, passei lá um dia e uma noite e fui para Argel, onde fiquei 12 dias. As coisas são iguais em toda parte - eis o suspiro de uma mulherzinha viajada. Os cinemas do mundo inteiro se chamam Odeon, Capitólio, Império, Rex, Olímpia; as mulheres usam sapato Carmen Miranda, mesmo quando usam véu no rosto. A verdade continua igual: o principal é a gente mesmo e só a gente não usa Sapatos Carmen Miranda."

"Às vezes eu me sinto ótima; às vezes simplesmente não vejo nada, não sinto nada. Estou lendo em italiano porque é o jeito. A palavra mais bonita da língua italiana é gioia, embora alegria também seja bonito."

"Meu livro se chamará O LUSTRE. Está terminado, só que falta nele o que eu não posso dizer. Tenho também a impressão de que ele já estava terminado quando eu saí do Brasil; e que eu não o considerava completo como uma mãe que olha para a filha enorme e diz: vê-se que ainda não pode casar. Mas é preciso que ela case e que eu fique sozinha olhando flores e passarinhos, sem uma palavra."

"Está chovendo e está frio. São 10 horas da manhã, quinta-feira. Meu quarto é independente dos outros e eu desarrumo ele a vontade. Meu quarto dá para o mar. O mediterrâneo é azul, azul.



quinta-feira, 19 de novembro de 2020

E lá se vai Jonas Mello, ator brasileiro

 


Leio sobre a morte de Jonas Mello. Ele tinha 83 anos, faleceu na tarde de ontem, de causas naturais em seu apartamento no bairro paulistano de Santana. Logo me veio uma tarde na primeira década do século, quando conversamos para Disciplina e Liberdade, a biografia de Geraldo Vietri que escrevia para a Coleção Aplauso.

Foi no teatro amador em sua Santos natal os primeiros passos do ator Jonas Mello. E antes de engrenar na profissão, deu duro por lá: foi feirante, estivador e trabalhou no pronto socorro.

"Ensinaram-me que enchendo a boca de pedras a gente melhorava a dicção. Não tive dúvidas, todo dia ia até a praia e treinava, começando a falar alto.Quando o tempo estava bom, o pessoal me olhava como se eu fosse maluco. Acredito que esse recurso é que me ajudou a vencer o concurso em São Paulo para ator, onde me inscrevi com mais de cem pessoas. Ali comecei profissionalmente, atuando na peça Lisístrata, ao lado de Ruth Escobar e Isabel Cristina", Jonas contou ao repórter Rogaciano de Freitas em uma matéria da revista Amiga, em 1976, quando já era ator consagrado.

Desde Lisístrata (1967) foram muitas peças.  Só para citar algumas atuações em clássicos: o Jasão de Medéia (1970)  com Cleyde Yaconis , Leonardo, o ex que reaparece em Bodas de Sangue (1973), com Maria Della Costa e o Teseu de Fedra (1986) na montagem com Fernanda Montenegro.

Jonas e Maria Della Costa em Bodas de Sangue

Na TV, atuava em Os Inocentes, quando Geraldo Vietri o viu nos corredores da Tupi. O autor e diretor buscava o intérprete para o papel título de Meu Rico Português (1975), Jonas usava um bigodão e Vietri deve ter achado que ele tinha o tipo ideal para sua personagem e o chamou para teste. Resultado: foi o protagonista e também das duas próximas e últimas de Vietri na Tupi e as três com Márcia Maria como par romântico.

Jonas Mello e Marcia Maria em Meu Rico Português

Em Os Apóstolos de Judas (1976), Vietri aproveitou detalhes da vida do ator, os seus tempos de feirante, quando vendia brincos e bijuterias na barraca do pai. Em João Brasileiro, o Bom Baiano (1978)  era um jornalista de Salvador em fuga de seu passado e que vem parar numa pensão de São Paulo.

Com Sandra Bréa, Bambolê
Foram muitas novelas, o IMDB lista mais de 30 e em todas as emissoras de Televisão. Sol Amarelo e Os Deuses Estão Mortos, ambas de 1971,  na Record, são das primeiras. Após o fim da Tupi, estreou na Globo com Os Gigantes (79) e esteve em várias - Coração Alado (1980), Baila Comigo (1981), Terras do Sem Fim (1981), Bambolê (1988)  Barriga de Aluguel (1990) são marcantes -  e as últimas foram participações em Salve Jorge (2012) e Flor do Caribe (2013). Dona Beija (1986)  foi na TV Manchete, Antônio dos Milagres e Irmã Catarina, ambas em 1996, na CNT, Canavial de Paixões (2003)  no SBT e Escrava Isaura (2004) na Record.


E no cinema, Jonas começou no udigrudi do fim dos 60 - Hitler 3º Mundo (1968), de José Agripino de Paula. Alguns dos filmes que tiveram Jonas Mello no elenco: Um Anjo Mau (1971), de Roberto Santos, Que Estranha Forma de Amar (1977), de Geraldo Vietri e Um Céu de Estrelas (1996), de Tata Amaral.

Jonas e Adriana Prieto no fime Um Anjo Mau

Quando entrei em contato com Jonas para o livro do Vietri, ele foi extremamente solícito, fez questão de uma conversa longa e veio até minha casa. Passamos uma tarde de muitas histórias. Por vezes olhava aquele homem que então andava pelos 70 anos e me parecia estar conversando com Marlon Brando. Pode ter sido viagem minha, claro, mas havia algo (o porte, a voz marcante) de Brando em Jonas Mello. Alguns anos depois, em 2010, Jonas Mello esteve no lançamento do livro.


segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Amor Estranho Amor, o ex-proibidão de Xuxa

A equipe de Amor Estranho Amor. Fotos de Mituo Shiguihara/Manchete

"Eu não transei, aquilo é ficção": É Xuxa, nas manchetes após a entrevista de ontem no Fantástico.. Ela se refere ao filme Amor, Estranho Amor e a declaração soa ridícula como se o primeiro filme que fez fosse um pornô. Amor Estranho Amor é dirigido por Walter Hugo Khouri (1929-2003), um dos mais celebrados diretores brasileiros e célebre por lançar atrizes - Lilian Lemmertz, por exemplo - e dirigí-las como raros. 
Era 1981. Vera Fischer, saída há pouco da novela Brilhante e com cabelo ainda curto também estreava sob a direção de Khouri, estrelando o filme ao lado de Tarcisio Meira. Xuxa, 18 anos, era uma modelo em início de carreira, namorava Pelé, e marcava um gol com sua estréia cinematográfica: ser dirigida pelo requintado Khouri. 

"Quando estive em Nova York e na Europa, vi que as modelos de lá têm um pique incrível. Fazem tudo - TV, rádio, cinema e fotos - tudo ao mesmo tempo. Eu quero me testar também. Já tinha recebido dezenas de propostas para fazer cinema, mas só esta do Khouri me interessou. Acho que estou começando bem.", ela declarou em matéria de capa da revista Manchete, em matéria de capa da revista Manchete, em maio de 1982, quando do lançamento do filme. 

E Khouri, como via a modelo que, segundo a matéria, conheceu nos bastidores de um programa de TV e agora lançava no cinema, sem a necessidade de testes, apenas uma conversa: "As pessoas me cobraram muito esse convite que fiz a ela, porque ainda confundem a vida de manequim com debilidade total. Mas foi uma intuição minha. Nada acontece por acaso. Se alguém aparece tanto como a Xuxa deve ter um it todo especial. E acertei. Ela é uma grande revelação." 

O final de "O Estranho amor de Xuxa e Vera Fischer", a matéria assinada por Celso Arnaldo Araujo, é bem interessante. "Toca o telefone no andar térreo da mansão (onde estavam filmando). Massaini (o produtor) vai atender. É Pele, querendo notícias sobre sua amizade colorida. Ele estava louco para saber como a menina ia se saindo na nova atividade. E recebeu ótimas referências. "Fica tranquilo, Pelé. A garota vai longe"." 

 E Xuxa foi longe, tão longe que, dez anos depois quando "rainha dos baixinhos" poderosa, usou a força da grana para manter Amor Estranho Amor longe do público por 30 anos. Agora diz que quem não viu veja. Deveria é pedir desculpas por interditar o trabalho de um grande cineasta e de seus colegas atores, Vera Fischer e Tarcisio Meira, que eram os astros do filme. 

O menino que contracenou com Xuxa em Amor Estranho Amor. Marcelo Ribeiro também era lançamento Walter Hugo Khouri. Estava em seu segundo filme com o diretor e no anterior, Eros, O Deus do Amor, tinha uma cena altamente erótica (ao lado) com a personagem de Kate Lyra, mas essa sem "polêmicas" e nem interdição do filme. "O diretor põe muita fé no garoto. Brincando, o chama de pestinha e comenta que aos 13 anos e com dois filmes ele já pode escrever suas memórias.", diz a matéria da Manchete.

A matéria da revista Manchete no lançamento de Amor Estranho Amor


terça-feira, 27 de outubro de 2020

História da Canções: "Será", a que virou nome de operação policial

 

Foto de Mauricio Valladares, de"edição comemorativa Legião Urbana 30 anos", lançado em 2016


Na loucura dos tempos, o primeiro e dos maiores sucessos da Legião Urbana, a canção que abre o primeiro disco lançado em 1984, virou nome de operação policial atrás de possíveis músicas inéditas e a pedido do filho de Renato Russo. E doideira total, os alvos de batidas policiais atrás de inéditas pra faturar mais com o roqueiro morto são fãs da Legião que municiam seus sites na internet. O alvo mais recente da "Operação Será" é o produtor Marcelo Fróes que, nos anos 90, foi editor e diretor do International Magazine. Em janeiro de 1995, Renato Russo foi o primeiro entrevistado do jornal de música "e a partir de então tornou-se um dos nossos principais entusiastas, opinando sobre as entrevistas", diz a introdução de livro lançado em 1997 com as entrevistas do International. Foi pro International Magazine e para Marcelo Fróes que Renato Russo deu sua última entrevista, três meses antes de morrer e para falar de Tempestade, o último disco da Legião lançado quando ele ainda vivia. 

Em janeiro de 1995, Renato Russo foi o primeiro entrevistado do jornal de música "e a partir de então tornou-se um dos nossos principais entusiastas, opinando sobre as entrevistas", diz a introdução de livro lançado em 1997 (ao lado) com as entrevistas do International. Foi pro International Magazine e para Marcelo Fróes que Renato Russo deu sua última entrevista, três meses antes de morrer e para falar de Tempestade, o último disco da Legião lançado quando ele ainda vivia.

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Bom, mas e Será? É sobre a banda e o verso "Tire suas mãos de mim" é um recadinho para as gravadoras, Renato conta pra Leoni em Letra, Música e Outras Conversas, ótimo livro de entrevistas com o pessoal do rock 90 dos 80 (Herbert Vianna, Marina, Lobão) e alguns que vieram depois (Adriana Calcanhotto, Samuel Rosa).

Leoni pergunta: Será, para você, fala de quê?

"Deixa eu me lembrar. Ah, é sobre a banda. É sobre o lance da gente ser de Brasília. Foi a última música composta para o primeiro disco, tirando "Por Enquanto". (...) Pelo que me lembro, a letra falava de uma coisa específica, mas dando o maior número de interpretações possível. Não sei nem se é o caso, porque o tempo vai passando, a música vai crescendo e vou me lembrando de certas coisas. Às vezes eu acho que era, às vezes que não era. Mas pela época a gente ainda compunha as músicas de um jeito normal: pegava o violão e fazia. Essa foi das primeiras porque a gente ia gravar o disco. Aí eu, com as minhas tradições rock´roll, tinha que ter um single, tinha que ter a faixa de abertura do disco. Geralmente a gente trabalha montando o disco todo, já sabendo da ordem e tal. O Dado tinha esse riff que a gente achava legal. Pelo que eu me lembro é algo assim: nós da banda contra o mundo. Então tinha recadinhos para a gravadora: "Tire suas mãos de mim".

 

 


domingo, 25 de outubro de 2020

O programa de Elis que era a live de Teresa Cristina dos anos 60

 


Era a metade de 1966 e O Fino da Bossa, que então já se chamava somente O Fino, completara um ano em maio, O programa apresentado por Elis Regina, 21 anos e há pouco mais de dois anos chegada do Rio Grande do Sul, reunia várias gerações da música brasileira. Dos veteranos Ciro Monteiro, Lupicinio Rodrigues, Dorival Caymmi a Roberto Carlos e a turma da jovem guarda e os que chegavam Chico Buarque, Nara Leão, Gilberto Gil, Simonal, Jorge Ben... Enfim, era a live da Teresa Cristina daqueles tempos de TV Record ainda preto e branco. E o sorriso de Elis reinava no cenário.

As fotos abaixo são de "Elis é o elo entre duas gerações", matéria de oito páginas e chamada de capa da revista Cruzeiro, em 29 de junho de 1966. A reportagem é assinada por Oswaldo Amorim e as fotos não estão creditadas. As legendas são as publicadas pela revista.

Aqui, o parágrafo final: "Elis é um elo entre as escolas musicais populares, não resta dúvida. Para isso não lhe falta ecumenismo. Com ela tem vez a Velha Guarda, a Bossa nova, o Afro, o Sambalanço e o Yé-yé-yé´da Jovem Guarda. Por último, o "protest song" de grande popularidade nos Estados Unidos -, onde visa, de preferência, como temática, à guerra do Vietname, e que já deu seu prefixo em nossa terra, encontrou nela uma adepta: "Acho que a gente tem de protestar. Afinal, está tudo errado mesmo..."

O repertório eclético de Elis Regina inclui composição de seu consagrado conterrâneo Lupicínio Rodrigues (que a vê cantar, na foto), autor de sucessos como "Vingança"

Ao lado, o próprio Bidu! (nota: Bidu era o apelido de Roberto Carlos)

Hebe Camargo, outro estilo em "O Fino"

Caymmi compareceu ao horário de Elis, levando a Bahia em sua voz e em seu violão

As novas gerações têm sempre vez no programa de Elis (Nota: É, claro, Chico Buarque)


Wilson Simonal e Nara Leão - presença da Bossa Nova no programa "O Fino", de Elis

Ciro Monteiro, da Velha Guarda, faz dupla com Elis, em um samba de telecoteco

Escoltada por Wilson Simonal e Jair Rodrigues, Elis Regina reúne todas as "Guardas" em torno dela (nota: O de branco à direita é Lennie Dale)


Agnaldo Rayol, que deve seu sucesso à interpretação de canções românticas foi um dos convidados ao 1º aniversário do programa


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

As sessões de terapia de Odete Lara e Nara Leão


Revista O Cruzeiro, 1963. A Foto de Antonio Rudge está inteira abaixo


Nara e Odete com Baden Powell 
Rio, final dos anos 50. Sala de espera do consultório de um psicanalista. "Vamp" do cinema esconde o rosto por trás de uma revista sempre que percebe que a porta vai se abrir e de lá sair uma moça "bem", discreta, bem vestida e com uma franja cobrindo a testa. Elas tinham treze anos de diferença - a da franja, morena, ainda não completara vinte e a vamp, loira, uma mulher de quase trinta. 

Corte para um tempo depois. As duas se cruzam em uma feijoada do povo da bossa nova. Daí vem aulas de violão e as duas ficam amigas. As duas mulheres são Odete Lara (1929-2015) e Nara Leão (1942-1989). E quem conta a história é Odete em Minha Jornada Interior (1990), o segundo livro de memórias dela escrito dez anos depois de Eu Nua (1976), uma das primeiras autobiografias de uma estrela brasileira, "numa tentativa de dissecar o processo neurótico que me levou à beira da demência e do suicídio", nas palavras da autora. Ambos são excelentes. Abaixo o texto, que abre o capítulo intitulado "Com Vinicius, Nara e Baden"


 Nara por Odete: "Ela era reservada, observadora e retraída, como eu. Tocava violão, mas só atendia aos pedidos para cantar quando a insistência passava dos limites. Sua voz saía contida, quase inaudível" 


"Benê Nunes, cupincha e pianista preferido de Juscelino Kubitscheck, e Dulce, sua mulher, costumavam abrir seu apartamento da Gávea todos os sábados para o pessoal da bossa nova, com uma feijoada que se estendia até o domingo à noite. Além de compositores, músicos, intelectuais e artistas, lá se revezava uma constante variação de visitas esporádicas. 

Uma tarde, para minha surpresa,encontro entre os demais a moça que eu via todos os dias saindo do consultório do psicanalista. Eu ficava na sala de espera folheando uma revista atrás da qual entreescondia o rosto sempre que percebia que a porta ia se abrir para dar passagem àquela moça discreta, bem vestida, com vasta franja cobrindo a testa. 

Intrigada, ao vê-la essa tarde dedilhando um violão, perguntei a um músico quem era. "É Nara Leão, o pessoal se reúne muito na casa dela também."

Os livros de memórias de Odete Lara
Fiquei observando-a, querendo descobrir o que é que podia fazê-la ir ao psicanalista se aparentemente era normal. Mas aparentemente eu também não era normal? Ela era reservada, observadora e retraída, como eu. Tocava violão, mas só atendia aos pedidos para cantar quando a insistência passava dos limites. Sua voz saía contida, quase inaudível. 

Algum tempo depois a vi de novo numa reunião em torno de um piano de cauda na Avenida Atlântica. Era seu apartamento. Voltei lá várias vezes, e ainda que tivéssemos trocado algumas palavras, continuávamos distantes, observando-nos. 


Mais tarde, quando soube que ela dava aulas de violão, passei a ser sua aluna, e só aí, com o contato quase diário, nos tornamos amigas. Quando a confiança permitiu, nos divertíamos às gargalhadas, confessando uma à outra as fantasias que fazíamos quando nos cruzávamos no consultório. 

"Quem problema pode ter uma vamp de cinema diante de quem os homens devem tombar? Aposto que ela vai usar um negligé de cetim bem decotado para seduzir meu namorado se um dia ele for entrevistá-la para o jornal onde trabalha. Na certa o dr. Ivan quer se ver logo livre de mim para atendê-la..."

 "Que problema pode ter uma filhinha de mamãe como essa, a quem nada deve faltar? Deve fazer psicanálise porque não tem como preencher o tempo. Na certa, o dr. Ivan prefere dar mais atenção a ela, que é moça "bem", de família, do que a mim, uma bastarda...""

Um perfil escrito por Antônio Maria para celebrar o dia dos 110 anos de Aracy de Almeida

19 de agosto: o dia que seria o dos 110 anos de Aracy de Almeida. E Aracy é uma paixão: as canções, o jeitão, as tiradas, as histórias. Esse...