A Noite - Rio, 23 de dezembro de 1952 |
O NATAL DE CADA UM
Acabo de vir do Recife, e lá, como aqui, encontro expostos nas casas de comércio, nas ruas e nas fisionomias dos transeuntes, os primórdios do Natal. Evidentemente trata-se de um Natal particular para cada um, e o Norte, com seus aspectos característicos, participa um pouco de vários natais diferentes: é o típico, da cidade com seus anúncios de Papai Noel recortado em cartão e colado na "marquise" das grandes casas comerciais, com árvores cobertas de neve de algodão e frutas estrangeiras, é claro, a preços astronômicos - é o Natal do próprio Recife, um pouco aglomerado para as bancas do Mercado, com frutas do próprio Norte, isto é, cajus, mangas, abacaxis e graviolas, com suas sandálias de couro, seus cantadores de feiras e, mais do que isto, nas estradas cobertas de pó e iluminadas por uma luz incerta de candieiro a querosene, os mamelungos e os reisados, as pastorinhas, e mil outros pequenos costumes que emprestam tanta vida ao folclore nordestino. Tudo isto, misturado, faz um pouco os primórdios do Natal que se aproxima - e cumpre dizer que me pareceu o mais natural, e mais autêntico, aquele em que as pastorinhas se dividem numa hipotética batalha do vermelho e do azul (eu sou azul) e cantam e dançam de um modo tão ingênuo, rodeando um anjo cor de rosa, e todas com estrelas de prata que chacoalham nas mãos. Este Natal é sem dúvida o mais belo, pois não há nele o vil interesse de comércio, nem Mercúrio se mistura aos festejos do Menino-Deus - mas cumpre lembrar que é também o Natal de uma gente triste e angustiada, que se encolhe à beira de estradas poeirentas, há muito não visitadas pelas chuvas, e que levantam um canto triste, dolorido, em homenagem a uma entidade divina que há muito parece tê-los esquecidos, e que eles teimam em lembrar, à sombra dos seus mocambos miseráveis, e onde cresce o Brasil mais triste e mais anônimo que já vi em minha vida..
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Isto evidentemente me faz lembrar o Natal de minha terra, que é num outro quadrado do mapa, em Minas Gerais. Meu Deus do céu, como o Brasil é grande. Também os Natais se misturam em Minas, e com as fachadas adornadas comercialmente, há um cheiro bom de jambo e de presépio, que compõe o Natal do menino que todos nós fomos.
Lembro-me bem: durante dias e dias preparávamos o presépio, com suas enormes serras de papelão cobertas de carvão, areia e malacacheta, e que cintilavam tão bem ao sol, imitando a vasta cordilheira azul da Piedade... E havia antes os passeios pela serra, à procura de musgo e plantas que adornassem de cores vivas a homenagem - coroas de frades e brincos da rainha - ah, como tudo isto se acha presente à minha memória, com suas areias escolhidas no fundo do rio, o arroz plantado dias e dias antes, e que agora cresce verde e fino sobre velhas latas de goiabada, e jambos, e mangas, e barbas de boi pendurados em todos os cantos, com a grande estrela anunciadora brilhando num lance mais agudo da serra, muito ao longe, os reis magos que se aproximam, que se aproximam, e que demorarão até fevereiro para se colocarem, definitivamente, à entrada da gruta onde as imagens celestes contemplam o divino menino que acaba de nascer...
Este era o meu Natal, e havia ainda maçãs e nozes, e os doces da grande noite, enquanto, desde cedo, conduzidos por mãos ansiosas, os sapatos descansavam atrás das portas, à espera do grande milagre, da mais bela das farsas, a que faria amanhecê-los cobertos de presentes, como se realmente o mundo fosse uma seara de milagres, e as estrelas caminhassem, e os reis chegassem de longe, e a poesia, finalmente, fosse possível num mundo sem maldade.
Mas isto são coisas de antigamente, que já não existem mais.
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Existe ainda um outro Natal, e este é o nosso, o Natal dos tempos que correm, o Natal no Rio. Pouca coisa da tradição, muito pouca de poesia, nem pastorinhas nem reisados, nem presépios, nem milagres. O Natal que vivemos é duro, feito de aço, um natal da era atômica. As casas comerciais gritam e se iluminam, as vitrinas transbordam de presentes e objetos raros. Mas há uma tristeza nos olhares e esta gente que compra apressada, quase furtivamente, traz uma melancolia expressa no olhar, e procura, e reprocura, nas vitrinas e nos balcões, não à cata do melhor, mais do mais barato, do pior. É a triste gente de hoje que vive em luta contra o quotidiano sem horizontes, tendo o abono como limite, a esperança, um pouco massacrada, como alimento de todos os dias, e um desejo de chegar depressa, de acabar qualquer coisa e de passar, como imagina que os outros passem, um Natal sem alegria e sem tradição.
É um Natal sem caráter, o Natal do carioca. Também, coitado, criaram para ele o mais cético dos apelidos: Barnabé. Consola-nos saber que é hoje o mais autênticos dos Natais dos brasileiros, pois a verdade é que nos convertemos numa vasta República de Barnabés. Seria esta a definição ideal de barnabé: um homem sem tradição, um homem sem Natal. Não há para ele senão o postulado da pressa e da discussão sobre o aumento - e consola-se sem dúvida, durante o seu sono, em recordar que houve Natal antigamente, e que decerto não mudou, como sugeriu o escritor, mas que rosnou* para longe, para muito distante, onde os homens são menos utilitaristas desta estranha* e vaga que se chama infância, e sem a qual a vida nada é mais senão um jogo atroz de carências e mortes repisadas.
* palavras meio que adivinhadas e praticamente inelegíveis)
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