São ótimas as histórias das empregadas de Clarice Lispector. E nem falo da ficção, só as que existiram e que ela transformou em personagens de suas crônicas. E descobri mais algumas que vieram via Paulo Mendes Campos, que foi amigo de Clarice e, anos depois que ele escreveu sobre as empregadas dela, viveram um romance.
Abaixo, Paulo Mendes Campos apresenta ROSA, a italiana que trabalhou com Clarice
quando ela morava na Suiça nos anos 40.
Da coluna de Paulo Mendes Campos na revista Manchete, em 1952 |
Seis anos
depois, em 1958, na coluna com o título Minhas Empregadas, Paulo Mendes Campos
volta a falar das que trabalharam para a amiga e observa: "A
meu ver, em língua portuguesa, ninguém exprimiu mais concretamente do que a
romancista Clarice Lispector certas finuras de reações psicológicas". E
conta sobre três empregadas de Clarice.
"a alma roída por um mal desconhecido" |
E antes que alguém venha com exploração de classes, é bom ouvir Clarice e o que ela escreveu na crônica Por Trás da Devoção, publicada no JB em 2 de dezembro de 1967.
"Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e
exploradora, piorei muito depois que assisti à peça As Criadas, dirigida pelo
ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem
por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio
mortal. Em As Criadas, de Jean Genet, as duas sabem que a patroa tem de morrer. Mas a escravidão aos donos é
arcaica demais para poder ser vencida. E, em vez de envenenar a terrível
patroa, uma delas toma o veneno que lhe destinava, e a outra criada dedica o
resto da vida a sofrer.
Às vezes o ódio não é declarado, toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais."
Érico Freitas e Carlos Vereza em As Criadas, na montagem citada por Clarice |
Aqui, seis das empregadas de Clarice, saídas de crônicas publicadas no Jornal do Brasil no fim de 1967, o ano em que ela começou a publicar suas semanalmente no jornal. Tem a mineira calada, a cozinheira forte e vidente, a argentina bajuladora e com passado de vedete, a que fazia análise duas vezes por semana....
ANINHA
É "A Mineira Calada". Raramente fala e "quando fala, vem aquela
voz abafada."
Um dia de manhã, arrumando
um canto da sala, Aninha perguntou: "A senhora escreve livros?". Meio
surpresa, Clarice respondeu que sim e "sem parar de arrumar e sem altear a
voz" perguntou se ela podia emprestar um. Franca, Clarice lhe disse que
ela não ia gostar porque seus livros eram "um pouco complicados".
A resposta de Aninha é uma maravilha: "Foi então que, continuando a
arrumar, e com a voz ainda mais abafada, respondeu: "Gosto de coisas
complicadas. Não gosto de água com açucar."
Algumas semanas depois, Clarice voltou a falar de Aninha em outra crônica. "Pois bem, ela se transformou. Como se desenvolveu aqui em casa! Até puxa conversa, e a voz agora é muito mais clara."
JANDIRA
É "A Vidente". É
cozinheira. "Mas esta é forte. Tão forte que é vidente."
"Uma de minhas irmãs estava visitando-me. Jandira entrou na sala, olhou sério
para ela e subitamente disse: "A viagem que a senhora pretende fazer vai
se realizar, e a senhora está atravessando um período muito feliz na
vida."
E Jandira saiu da sala.
Encabulada, Clarice disse "É que ela é vidente". A irmã respondeu
tranquila: "Bom. Cada um tem a empregada que merece."
A hora do pagamento do
salário e com o aumento prometido é o assunto de Agradecimento?, na mesma data.
"ficou contando o dinheiro e eu parada, esperando para ver se estava
certo. Quando acabou de contar, não disse uma palavra, inclinou-se e beijou meu
ombro esquero. Eu, hein!"
Jandira, a vidente, retorna
em outra crônica, Por Trás da Devoção, inclusive "ajudando" Clarice a
resolver um problema com Aninha, a quem a patroa costumava chamar de Aparecida.
IVONE
A protagonista de "A Coisa", essa ex-empregada.
Clarice a chamava e nada, chamava de novo e igualmente nada, até que depois de
muitos chamados, "Ela se virava de um só golpe e dava um verdadeiro berro:
"Chega!!!"
O tempo passando, "a
coisa" se repetindo até o dia em que a patroa deu um basta: "Hoje
quem diz chega sou eu. Quero que você arrume um outro emprego e seja muito
feliz na nova casa.
"Ao que ela respondeu inesperadamente com voz bem fininha, a mais melosa,
humilde, e enjoativa que se possa imaginar: "Sim, Senhora."
E depois desse dia, conta Clarice, Ivone já lhe telefonou várias vezes e
"outras vem pessoalmente visitar-me"
MARIA DEL CARMEN
Argentina, extremamente vaidosa, usava cílios postiços e "parecia
ter olhos de bonecas rígidas". A Del Carmen "pseudamente" a
adorava e bajulava demais. Foi empregada sem referências e antes trabalhara
arrumando camas de "hotéis suspeitos" e também já tinha trabalhado em
teatro.
Tônia Carrero, a quem serviu um café, decifrou a charada: devia ser uma
das contratadas de Valter Pinto para o teatro rebolado. "Terminou indo
embora sem sequer me avisar.
SEM NOME
Foi com Clarice para os Estados Unidos, ficou por lá para casar-se com
um engenheiro inglês, morava em Washington. Em 1963, Clarice foi fazer uma
palestra no Texas, ligou, ouviu que ela falava com sotaque americanizado e
queria que fosse visitá-la. Disse que não tinha dinheiro. A ex-empregada se
ofereceu pra pagar. "Claro que não aceitei, além de que nem tempo tinha."
SEM NOME 2
"E a empregada que tive e não posso dar seu nome por uma questão de
segredo profissional?"
É que ela fazia análise duas vezes por semana e, nos momentos de angústias telefonava para a Dra Neide. No começo, escondeu que frequentava o divã.
"Quando ela não estava bem, o que acontecia com frequência, era malcriada demais, revoltada demais, embora depois caísse em si e pedisse desculpas. Só trabalhava com rádio de pilha ligado ao máximo, e acompanhado pelo seu canto de voz aguda e altíssima. Se eu, já infernizada, pedia-lhe que fizesse menos barulho, aí é que aumentava o rádio e alteava a voz. Suportei, até que não suportei mais. Despedi-a com muito cuidado."
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