24 de dezembro
Hoje estou com sorte. Tem muitos papéis na rua. (...) As
5 horas comecei vestir-me para eu ir no Centro Espírita Divino Mestre receber
os donativos natalinos. Preparei os filhos e saí. (...) Eu ouvi vozes:
- Estão dando cartões!
Corri para ver. Vi os favelados rodeando um carro. E o povo correndo para
ganhar cartões. No carro estava apenas o motorista. E o povo pedia:
- Dá um para mim. Dá um para mim!
O motorista dizia:
- Vocês sujam o carro!
Perguntei-lhe:
- O que é que o senhor está distribuindo?
- Eu vim aqui para trazer um homem. Nem sei o que este povo está pedindo.
- É que na época de Natal, quando vem um automóvel aqui, eles pensam que vieram
dar presentes.
- Nunca mais hei de vir aqui no Natal - disse o motorista nos olhando com
repugnância.
Havia tantas pessoas ao redor do automóvel que não pude anotar a placa.
...No Centro Espírita a fila já estava enorme quando nós chegamos. (...) Os 10
filhos de uma nortista estavam pedindo pão. A Dona Maria Preta deu 15 cruzeiros
para ela. Ela foi comprar pão.
O Senhor Pinheiro, digníssimo presidente do Centro Espírita, saiu para
conversar com os indigentes. (...) Passou um senhor, parou e nos olhou. E disse
perceptível:
- Será que este povo é deste mundo?
Eu achei graça e respondi:
- Nós somos feios e mal vestidos, mas somos deste mundo.
Passei a olhar naquele povo para ver se apresentava
aspecto humano ou aspecto de fantasma. O homem seguiu sorrindo. E eu fiquei
analisando. Quando penetramos para receber os premios, o meu era número 90. Eu
e os demais ganhamos presentes e generos: roupa, chá mate, batatas, arroz e feijão. O
Senhor Pinheiro convidou-me para eu ir ao Centro.
Era 9 e meia quando nós chegamos no ponto do bonde e
fomos ver um presepio que fizeram na garagem que está vaga. Havia uma placa
onde se lia: Entrada gratis. Mas no presépio tinha uma bandeja com cédulas de 1
a 100. Quando saí elogiei o presepio. Unica coisa que eu posso fazer.
Quando cheguei na favela encontrei a porta aberta. O luar
está maravilhoso.
25 de dezembro
O João entrou dizendo que estava com dor de barriga. Percebi que foi por ele ter comido melancia deturpada. Hoje jogaram um caminhão de melancia perto do rio.
Não sei porque é que esses comerciantes inconscientes vem jogar seus produtos deteriorados aqui perto da favela, para as crianças ver e comer
Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se
divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o
Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela
fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar
a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer.
Do livro Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus
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