terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Conto natalino de Erico Verissimo inédito em livro

Há dois anos topei com um conto de natalino de Erico Verissimo, publicado na revista O Cruzeiro, em 1939. Erico faz um passeio pelos bairros da Porto Alegre de então - Floresta, Bonfim, Cidade Baixa...O texto, descobri, nunca havia saído em livro. Bom, acabou sendo publicado no jornal Zero Hora naquele ano (link no final). Abaixo, o conto e com a grafia fim anos 30 



                                   Noite de Natal em Porto Alegre
                                               
    Erico Verissimo


As estrelas caíram no Guaíba. Piscam luzes nas ilhas escuras. O motor duma lancha bate surdo e alto como um enorme coração medroso. Junto do caes ha uma floresta desgalhada de mastros. A àgua marulha, molle, bate no costado dos barcos adormecidos. Na prôa de um navio alemão que veiu de Hamburgo recorta-se o vulto dum homem. Dou uma estrella pelos seus pensamentos: talvez ganhe, em troca, um lindo poema. Dou duas estrellas... três estrelas... todo o céo... Olhe que vou bater... Todo o céo, meu romântico marinheiro, inclusive a lua, as nuvens e os cherubins... O homem continua immovel. Nada feito. Sigo adiante, passo pelos guindastes que não têm natal. Páro para contemplar um veleiro, vejo luzes lá dentro, ouço vozes, o som duma cordeona. Depois é uma barcaça de carão, uma draga, de novo um navio mercante. Um caíque se aventura rio em fóra, um vulto rema serena, a noite é tão silenciosa ali no caes que julgo ouvir a suave batida dos remos ferindo a água. Decerto aquele homem vae pescar estrellas. É preciso uma grande rede para pescar estrellas. (Quando é que a gente se livra do fantasma de Tagoro?) Jogo o meu cigarro no rio, desejo-lhe um “Feliz Natal!” e sigo para a cidade.


DIÁLOGO
- No Norte, o Natal é diferente.... - dizia meu amigo pernambucano.



- Este enthusiasmo pelo Natal – expliquei – este costume de enfeitar pinheirinhos e fazer que o papae Noel appareça na véspera de Natal, nos foram trazidos pelos immigrantes allemães. Ensinaram-nos também muitas outras coisas. Algumas boas, outras más...

- É curioso. A filha da dona de minha pensão dá a papá Noel um nome exquisito.

- Pelznickel... Era assim que muitas das crianças de meu tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... E não eram só as crianças de sangue allemão que conheciam e usavam esses nomes...

Pausa. Continuamos a andar. Aproximamo-nos da rua dos Andradas. Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros luminosos. A rua está negra de gente. Dos cafés vem o clamor de vozes, risadas, música...

Meu companheiro para debaixo dum grande anuncio a gaz-neom. Por um instante seu rosto fica purpureo e eu penso no conto de Poé “A Máscara da Morte Vermelha”...


BAR ALLEMÃO

Em cima do balcão de marmore, perto da machina registradora, ergue-se uma minuscula árvore de Natal. As velas coloridas estão accesas e os penduricalhos lampejam, reflectindo as luzes da sala.


As mesas acham-se quasi todas occupadas. Sentamo-nos perto do aquario. Um dos peixinhos japonezes encosta o focinho no vidro, á altura de minha cabeça e fica me olhando.



- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.


- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.



Um garçom se aproxima. Pedimos chopps.


Uma victrola arremassa para o salão os compassos duma valsa de Strauss. Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.



Olha em torno. Talvez sejamos os únicos brasileiros puros (puros?) no bar. Só vejo epidermes claras, algumas caras apopléticas, cabelleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo e cor-de-palha até o louro de platina. Um minuto de silêncio em homenagem a Jean Harlow.


- Prosit! – diz meu companheiro.



- Prosit – respondo. E, depois do primeiro gole, ainda com um bigode de espuma, accrescento – Qual! O de que nós dois precisamos é de uma bela nacionalização...


As conversas crescem, sobem como ondas quentes. Faz calor. Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e pregueada. Uma vasta senhora cyclópica, abana-se com um leque, bate com elle nos seios fartos que decerto já amamentaram algum siegfried.

As paredes do bar estão eriçadas de pontas de cervo. Viva a falta de malícia germânica!

Os peixes nadam por entre algas. Faz de conta que elas são as suas arvores-de-natal. Mas... nada de sentimentalismos em torno de peixes.



Strauss retirou-se de scena. Agora saem da victrola os acórdes duma doce melodia conhecida. Há como que um vácuo na sala: um subito buraco de silencio se abre. E de repente, sem o commando dum maestro, todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...” Parece que se sentem felizes. Mas duma felicidade triste. Lembram-se decerto de Vaterland. E no entanto muitos deles são apenas netos de allemães, nunca viram a Allemanha a não ser em cartões postaes.


- Raça... Uma grande coisa, amigo! Mas que perigo!



Pegamos o chopp e saímos.

COMISSÃO JULGADORA
Concurso de arvores de natal instituído por uma grande empresa. Lá vae serenamento dentro dum Lassale a comissão julgadora. Poetas, jornalistas, pintores, esculptores e um senhor do commercio local. Visitam as casas que se inscreveram no concurso. São recebidos com amabilidades, doces e bebidas. Na primeira casa, tudo optimo. Uma linda arvore. Crianças adoraveis. Um casal muito sympathico. Passam para a segunda casa. A mesma scena. Mais bebidas. Já o mundo, para a commissão julgadora, passa a ser um estranho logar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais absoluta e excitante alegria. Terceira casa. “Agora queremos oferecer aos senhores alguma coisinha para beber...”. optima idea. E lá se vae a comissão julgadora. Quarta casa. O presidente da comissão entra na sala, olha a arvore de Natal e depois chama o secretario para um canto e, com voz arrastada e grossa, lhe pergunta:


- Senhor secretario... não acha... não acha... que é um esbanjamento inutil... fazerem... du... duas arvores de Natal?


O secretario, que já não pode com o peso das palpebras, fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:



- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!

NA FLORESTA

Passamos por uma casa de janellas illuminadas. Relanceio os olhos para dentro da sala. Basta aquela visão rapida para eu recompor depois mentalmente a scena. O dono da casa deve se chamar Shultz ou Schmidt. Trabalha numa firma allemã da rua Sete. Tem tres filhos: Willy, Karl e Trude. Estão esperando o Pelznickel... A arvore de Natal vem exercendo suas funcções regularmente há seis annos, desde que Willy nasceu. Frau Shultz ou Schmidt fez uma linda cuca. Há dois barris de chopps na area. Os rapazes da firma vão aparecer. “Que farra!” – antegoza o senhor Shultz ou Schmidt. Cantarão abraçados canções engraçadas. Pelznickel vae trazer uma boneca para Trude, soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.

NA RUA DUQUE
É uma casa alta e antiga, com azulejos. Família tradicional. Grande arvore de Natal na varanda.


O dono da casa é medico. Tem quatro filhos. Os dois primeiros acreditam em papai Noel, os outros dois não.


O radio enche a casa de musica. Vozes alegres se escapam pelas janellas escancaradas.



Dona Maria vae buscar os gelados no refrigerador. Na grande mesa alinham-se pratos com sandwiches, nozes, avelãs, castanhas e passas. Ouve-se o estouro de uma garrafa de champagne que se abre.

Não há canções tradicionaes.



O senhor nacionalista conversa com um tenente do exercito:


- Pois é. Precisamos acabar com esses estrangeirismos. Nada de papá Noel ou de Pelznickel. Vovô índio... É... Vovô índio. Que diabo! Temos neve? Temos pinheiro? Isso é coisa para a Europa.


- A America para os americanos – obtemporou o official.


O senhor nacionalista fica um instante pensativo e depois continua:

- E porque não promovemos o nosso Negrinho do Pastoreio a Papae Noel? Ficava admiravel. Em vez de pinheiro, um umbu... ou outra arvore menor... Bastava acender uma vela para o Negrinho e ficar a pedir um presente...


Ficou sorrindo não para o tenente mas para a propria idéa.

CIDADE BAIXA
Aqui nessa zona de casas melancolicas, pequenas e velhas começou a cidade. Olho indiscretamente para dentro de uma casa de porta e janella e vejo uma arvore de Natal solitaria no centro da pequena sala. Luz amarellada a allumiar meia duzia de caras tristes. Casa decerto de um modesto funcionario publico que não foi contemplado no reajustamento. Elle, a mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que decerto tambem não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida). Estão tristes e graves, parece que a arvore de Natal é uma criança morta e elles estão ali em silencio, velando o anjinho...

NOS NAVEGANTES
Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas na praia dos Navegantes não há Natal.

NOS MOINHOS DE VENTOS

Palacete dum industrialista allemão que ficou rico com a guerra (a primeira). Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras arvores que a escuridao e a falta de conhecimento de botanica me impedem de classificar.

Janelas fechadas. A “fraulein” que cuida da casa saiu com o namorado, um mecanico ruivo e athletico. Decerto a esta hora estão bebendo num bar qualquer.

Os donos da casa foram passar o Natal na Allemanha.

NO BONFIM
O Bonfim é o “ghetto”. Lojas, cafés, dois cinemas, judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça, longas barbas grisalhas ou completamente brancas. Mocinhos e mocinhas a passear nas calçadas. O centro social israelita. Salões de bilhar. Aqui e ali uma casa de família brasileira.


Para esta gente Christo ainda não nasceu.



Mas aquella meninazinha que ali está na calçada, de dedo na boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a arvore de Natal que scintila na casinha da família brasileira.


COLONIA AFRICANA

Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da colonia Africana se misturam. Começamos a ver negros e negras endomingados para festejar o Natal. Alguns deles foram ao “cabellizador” alisar a carapinha, muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que lembra o de doce de batatas.


A rua é de terra batida cor de rosa. A casa, de taboa. A familia é grande e há muitos convidados. A maioria delles se acha no terreiro, debaixo das árvores. Um mulato cabellizado toca um violão. Um preto começa a tocar um samba. O refresco corre a roda (Framboeza, naturalmente). Na sala de visitas há um presepio encardido. E também um pequenissimo e esmirrado pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de iodo vasios, lampadas electricas queimadas, colares de contas coloridas, vidrilhos e flores de papel de seda.



Tudo indica que a festa vae acabar em macumba.

DUVIDA

Nas ruas alguns homens se abraçam e quasi todos parecem alegres. Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar tremendas bebedeiras.


- Eu só queria saber uma coisa...


- Que é? – indagou o companheiro.


- É se essa gente realmente se lembra que hoje se festeja o nascimento de Jesus...



O amigo parou, franziu a testa numa careta de estranheza e exclama:


- Mas é mesmo, rapaz! E eu que nem me lembrava disso!?

NOTA SENTIMENTAL
O Natal do poeta solitario que não tem família nem esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as estrellas?

Oh! Não... Mil vezes não!

                       Revista O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939


Aqui, o conto quando publicado por Zero Hora, há dois anos
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/confira-conto-natalino-de-erico-verissimo-inedito-em-livro-4934187.html

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