quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os natais de Jorge Amado no estrangeiro e os de sua infância em Ilhéus

O escritor Jorge Amado tinha 46 anos quando escreveu essas recordações para a Revista da Semana. Era 1958, o ano em que foi lançado Gabriela, Cravo e Canela. Aqui, ele lembra liricamente os natais passados no estrangeiro - França, Rússia, China, Tchecoeslováquia -, enquanto rememora os distantes natais de sua infância em Ilhéus, tempos de pastorinhas, bumba-meu-boi, presépios nas salas de visita. No final, link para Visita ao Presépio de Quinquina, conto natalino pouco conhecido dele que a revista O Cruzeiro publicou em 1939. Quinquina, 20 anos depois, vira personagem de Gabriela, o presépio também. "Quando reencontrarei o natal de minha infância?": abaixo é tudo Jorge Amado. 



                                                       Natal do viajante
                                         Jorge Amado

Quando reencontrarei o natal de minha infância? Não vinha Papai Noel, figura europeia desconhecida nas terras do sul da Bahia, mas deixávamos crianças nossos sapatos na porta do quarto e nele deviam ser depositados presentes. Não havia Papai Noel mas, em compensação, iniciavam-se os folguedos populares – ternos de pastorinhas, bumba-meu-boi, reizado – estendendo-se até as festas dos Reis em janeiro. E os presépios nas salas de visitas das casas de famílias eram visitados e admirados pelos olhos curiosos dos meninos. Não tinha o natal esse caráter de festa estritamente familiar, acontecendo no interior das casas onde os parentes se reúnem e confraternizam, a neve lá fora caindo em flocos, o frio rondando cidades e campos, o fogo aceso nas lareiras, como na Europa. Ao contrário, as ruas estavam cheias: a caapora, o boi e o vaqueiro, as belas pastorinhas dançavam e cantavam, todo mundo saía de casa, ia-se em romaria aos presépios, esperava-se a missa noturna.

Só homem feito eu iria viver o Natal europeu e adaptar-me a ele, incorporá-lo ao meu calendário. Esse Natal que meus filhos conhecem, tão diferente daquele que encheu minha infância, cuja lembrança carrego dentro de mim, eco de vozes perdidas, visão de cores tropicais, a beleza das pastoras, a poesia dos presépios.

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Paris é a cidade do conhecimento fácil, onde se multiplicam as relações, onde uma parte da população parece em férias permanentes, onde se encontram homens e mulheres dos mais diferentes países. Foi em Paris onde primeiro dei-me conta do significado do Natal europeu, dessa festa de família onde não cabem estranhos. Muitos são os meus amigos franceses, gente de condição diversa e – nem sei mesmo porquê – sempre esperei que pelo Natal afluíssem os convites. Via Paris vestindo-se para a festa, a multiplicação das árvores de Natal, as vitrinas alegres de presentes. Recordava o Natal de Ilhéus, tão diferente: naquela altura do ano estariam as pastorinhas preparando os vestidos, ensaiando as cantigas, as velhas tias armando os presépios.

Tanto nos convidavam em Paris e para tantas coisas... Só para o Natal ninguém nos convidou e no hotel dos estudantes, ao lado do Boulevard Saint- Michel, um grupo de brasileiros nos reunimos mais ou menos tristemente para recordar a Pátria e os parentes distantes.

Foram por acaso diferentes os outros natais passados na Europa? Não creio que houvesse diferença fundamental pois para mim era a noite quando desapareciam todos os amigos, cada qual em sua casa, com seus familiares, na ceia tradicional.

Com Guillen (sentado à direita de Jorge): China, 1952
Passei um natal no transiberiano, viajando para a China. Lá fora era a estepe gelada, o frio de quarenta graus abaixo de zero, aquela paisagem vazia de gente, onde de raro em raro surgia uma casa, a fumaça de uma lareira. Na interminável viagem perdíamos a conta dos dias. Íamos dois casais, o poeta cubano Nicolás Guillen e sua esposa eram nossos companheiros de viagem. Já no fim da tarde, o poeta descobriu ser noite de Natal. Foi um Natal de recordações de infância, eu a contar das festas da zona do cacau, ele a recordar o fim do ano em Cuba. Falávamos de comidas e de canções, lembrávamos pequenos detalhes, sentíamos de repente toda a imensa distância a nos separar de nossas pátrias do outro lado do mundo. Davomo-nos conta subitamente de como estávamos longe, montanhas e oceanos nos separavam de nosso chão, de nossos habitas, de nossa gente. A noite gelada da Sibéria nos cercava. Mas canções de Cuba e do Brasil encheram a cabina do trem.

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A bailarina Ulanova
Em Moscou um ciclo de festas nas ruas e nos clubes se desenrola no fim do ano. O Pai Nicolau ergue-se nas praças junto aos pinheiros carregados de lâmpadas multicolores e lantejoulas. Nos clubes de cultura, nos palácios de pioneiros, nas ruas sobre tablados, dançam moços e velhos. Recordo de ter ido num domingo de fim de ano ao Palácio das Colunas, no centro de Moscou, a uma festa onde eram distribuídos brinquedos para as crianças. Uma enorme árvores de Natal no centro da sala imensa. Os palhaços mais célebres do circo moscovita, Karandachi entre eles, os mais célebres bailarinos, Ulanova entre eles, artistas conhecidos, divertiam a criançada. Festa semelhante assisti em Leningrado numa casa de pioneiros.

Mas o Natal propriamente dito, a noite de Natal, essa era reservada para a família. Lembro-me de como minha intérprete nesse Natal soviético, solicitou-me que a dispensasse naquela noite e pediu-me que lhe emprestasse o automóvel para ela transportar para casa a árvore de Natal (vendiam-se numa praça pinheiros de todos os tamanhos). Também em Moscou, na noite de Natal, cada um está com a sua família, no recesso do seu lar.

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Passei em outros países, em distantes cidades, vários natais. Para mim significavam sempre saudade, lembrança da pátria, evocação de festas do nordeste, de líricas pastores, do bumba-meu-boi nas ruas das prquenas cidades.

De um Natal me recordo, o triste Natal do viajante. Estava na Europa e calculei meu tempo de modo que deveria chegar ao Brasil na véspera de Natal. Já me adaptara ao Natal como festa de família, entre os meus, na alegria dos parentes reunidos. Era um inverno especialmente duro, a noite chegava antes do tempo no meio da tarde, não havia visibilidade nos aeródromos e meus cálculos de viagem arruinaram-se. Dois, três dias, sem sair aviões. Eu estava em Praga. Na véspera de Natal mais uma vez estive quase o dia inteiro na expectativa de saída do avião. Mais uma vez ele falhou. Voltei para o hotel pela tarde. Um cartaz na portaria avisava que naquela noite o hotel não serviria jantar, os hóspedes que o desejassem deviam pedir com o tempo uma ceia fria para a noite. Foi o que fiz e dormi. Acordei pelas nove horas da noite. Vesti-me e saí. Não havia uma pessoas nas ruas cobertas de neve. Estavam todos em suas casas, festejando. No hotel mal iluminado, apenas um empregado. Andei sem rumo pela cidade. Não encontrava ninguém. Tudo fechado. Nem mesmo os vendedores de salsichas assadas, nem mesmo os bebedores de cerveja. O silencia e a neve. Uma tristeza sem fim me envolveu. As janelas iluminadas e lá dentro a festa, a alegria. Eu andava sem rumo e jamais senti tanto o significado do Natal.

                               Revista da Semana, 27 de dezembro de 1958

Abaixo o link para Visita ao Presépio de Quinquina, conto natalino pouco conhecido de Jorge Amado, que saiu na revista O Cruzeiro, em 1939, quando ele tinha 26 anos.




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