domingo, 10 de dezembro de 2017

Sobre o amor, um texto de Luiz Carlos Maciel

Colunas de Luiz Carlos Maciel na Revista Ele & Ela
Por meninice minha, a coluna Underground do Pasquim que Luiz Carlos Maciel escrevia no Pasquim me chegou com alguns anos de atraso. E eu adorava uma coluna que ele mantinha na revista Ele & Ela no final dos anos 70. Sim, naqueles tempos as revistas de “mulher pelada” também eram pra ler e através delas eu, garoto interiorano, fui descobrindo um mundo. As revistas se foram após esses anos todos, as colunas de Maciel não – as páginas arrancadas passaram a habitar os livros dele, que volta e meia voltava a ler. Fiquei em dúvida de qual postar aqui: Sobre o Amor, Carta Sobre o Mistério e A Mentira do Tempo, são as preferidas e não sei se foram publicadas em livro. Optei por Sobre o Amor. Acho que ele gostaria. Ah, éramos amigos no Facebook e quando ele aceitou minha solicitação de amizade foi uma alegria tão grande, como se eu o tivesse conhecido, o que não ocorreu. E hoje, quando soube de sua morte, bateu uma tristeza imensa.


                                              Sobre O Amor
                                            Luiz Carlos Maciel

Maciel, o gato Antonico e sua mulher Maria Claudia nos posters: contracapa do livro Negócio Seguinte (1982)
Meu Amor, resolvi escrever, hoje cedo, quando acordei, uma declaração de amor. Acordei em paz e achei que seria fácil escrever coisas bonitas – pois parece que se escrevem, naturalmente, coisas assim, quando se está em paz. Considerei, com espontâneo bom senso, que, afinal, de contas, não pode existir melhor literatura do que aquela  que puder fazer um bem qualquer, mesmo um momento de alegria ou simples prazer, a nosso semelhante. E quem é meu semelhante? Você, vida, a quem julgo amar, o tempo todo, como a mim mesmo e, em certas circunstâncias, nas quais pareço experimentar, na plenitude, o que chamam de paixão, até mesmo mais do que isso.

Em seguida, porém, pensamentos posteriores, de ordem histórica, lançaram sombras sobre o sol nascente. Não, raciocinei, não vivemos um tempo de declarações de amor, mas de bens, de imposto de renda e, até, de princípios. Declarações de tudo, menos de amor. Eis uma força, sem dúvida real, cantada pelos poetas, venerada pelos religiosos, especulada, quase sempre com susto, pelos filósofos que, no entanto, não é reconhecida pela ordem formal das coisas. O amor nos parece, oficialmente, um acidente mais ou menos marginal, uma perturbação imprevista pelas leis, uma tempestade tão incontrolável quanto qualquer tempestade, e contra a qual – segundo o normal, o socialmente aceitável – é necessário alguma espécie de proteção.

Sim, na ordem social em que vivemos, a magia da paixão é um estado considerado um tanto ou quanto patológico, e nós procuramos, através de feitiçaria disciplinadora de nossos costumes, instituições, preceitos e preconceitos, substituí-la pelo medo e a necessidade de segurança. Amor não dá camisa a ninguém – esta é a conclusão da ideologia dominante, introjetada pela educação e outros meios de coação social em cada um de nós. O amor não dá, ao contrário do cálculo, da representação cotidiana ou do trabalho compulsivo e neurótico que nos acenam com promessas de camisas, calças, sapatos, sobretudos e outras miragens diabólicas. Talvez essa não seja uma maneira muito natural de viver, mas não nos importamos com isso, desde que que resolvemos que o ser humano é aquele cuja natureza, por uma contradição chocante, mas que não nos surpreende, é a de se sobrepor à própria natureza, conquistá-la, dominá-la e, por fim – como é inevitável, por uma questão de automática justiça – assassiná-la dentro de cada um de nós.

Assim são as coisas – e não adianta espernear. E aprender o jogo, segundo as normas vigentes, a dançar conforme a música, parece ser uma condição sine qua non de sobrevivência, num mundo em que a violência também parece crescer, sem impedimentos maiores, a partir da suposição tácita de que a hostilidade mútua, o ódio em todas as suas manifestações, das mais grosseiras às mais sutis, é verdadeiro regulador de nossas relações interpessoais e a base de nossa coexistência. Por isso, até nos sentimos vagamente bem, quando temos raiva de alguém ou alguma coisa, porque tal sentimento nos adapta ao mundo tal como ele funciona, não nos sentimos estrangeiros ou marginais quando ele nos domina mas, pelo contrário, cheios de razões e direitos, enquanto o amor é sempre tingido de culpa pelas ferozes artes do sistema.

A primeira regra do jogo social, observa Alan Watts, é fazer de conta que não se trata de um jogo. Apontar a farsa como farsa, denunciá-la, mostrar que o jogo, ainda que as apostas sejam feitas com o sangue de cada um, é uma audácia que desqualifica o jogador e deve ser devidamente punida. Confesso que já tentei esse lance, meu amor, como muitos de nós tentaram – e sei que sempre é possível tentar de novo, desde que não nos abandonem a imaginação e a coragem – e transgredir algumas de suas regras, na certeza de que um jogo, qualquer que seja, mesmo os que são diabolicamente apresentados em nome de ordem e da justiça humanas, é um jogo e que, portanto, suas regras só podem ter sido feitas para serem mudadas, a qualquer momento sempre que for necessário. Tentei – e não me dei muito bem. Tentei – e posso tentar de novo. Talvez esteja até tentando, sem saber, como se não nos restasse mais nada, senão tentar, e reiterar as tentativas, até que o jogo, por um milagre incalculável – pois só quem pode aspirar a esse momento é o coração, e não a cabeça -, consentisse em nos mostrar a verdadeira face e recuar para seu verdadeiro lugar, que é atrás, e não na frente do amor. Não há mais nada a fazer senão tentar, mesmo não tentando – um truque, aliás, recomendado por muitos sábios, desde Lao Tsé, pelo menos -, pois a aspiração por um mundo melhor parece ser o impulso fundamental  de nossa natureza, o avatar mais amplo e luminoso do próprio amor. Tentar é, por isso, amar ao próximo como a si mesmo, como outro sábio recomendou. E como eu te amo, meu amor. Agora, amor, coloque-se no lugar do amor, e veja o que você faria num quadro desses em que toda espontaneidade é suspeita e toda maquinação cultuada como um deus. É possível que você simplesmente silenciasse e abrisse, no vazio desse silêncio, o espaço para uma carinhosa estratégia. É isso, me parece, que o amor faz, está fazendo, o tempo todo, diante dos dentes cegos da repressão. Ele se cala e, no silêncio, alimenta as próprias energias, em calma, em paz. Em silêncio.

Desmentir as regras do jogo é deixar que elas, simplesmente, se desmintam como com efeito o fazem – para quem vê bem – todos os dias, a todo instante. A vida, filha do amor, o auxilia sem descanso nessa tarefa desmistificadora e também silenciosamente cria suas surpresas, seu terror e sua maravilha. Por isso, como dizia ainda o velho Lao Tsé, não sabe aquele que fala e cala aquele que sabe.

Tudo, não apenas o resto, é silêncio, desde que o amor, fonte da vida, é silêncio. Não precisamos misturar declarações de amor com as de bens, rendas ou princípios. Basta-nos olhar. Assim, nos olhos. Basta-nos sorrir. Basta-nos dar as mãos. Basta-nos o silêncio.

Mostrar que o jogo é um jogo, tentar, é não tentar: abrir um espaço, abraçar o vazio, para que, atrás ou na frente, fique quem deve estar lá. Não vamos deixar que o mundo, as exigências, e repressões do mundo usurpem o lugar de nosso amor e substituam com sua feitiçaria, tão cheia de promessas quanto de traições, a magia primordial que é a origem desta nossa ilusória existência. Calemo-nos. Vamos amar em silêncio. Que o carinho anteceda o discurso, que a compreensão silencie o argumento e a sensação acalme o pensamento enlouquecido que manipula o grande jogo do mundo. Não há nada a discutir, não há nada a dizer. Não há nada a pensar.

O amor, deixe que eu repita, é o silêncio.


                  Publicado na revista Ele & Ela, março de 1978

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