MPB
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Fotos: Frederico Mendes, revista Cruzeiro, 1971 |
Logo após a morte de Clementina de Jesus, em 19 de julho
de 1987, Hermínio Bello de Carvalho distribuiu um manifesto pra imprensa. Aqui,
como foi publicado na revista Amiga (e com chamada de capa: "O desabafo de um poeta na morte de Clementina de Jesus) no começo de agosto
daquele ano. Hermínio fala da desconsideração com que ela foi tratada no fim da
vida por rádios e gravadoras. O texto apareceu dia desses e vale como uma
biografia de Clementina de Jesus. Abaixo:
Morte de Clementina de Jesus
provoca o desabafo de seu descobridor
Por Hermínio Bello de
Carvalho
"Nega velha não é
palhaça não, meu filho" O desabafo pelo telefone foi um soco no estômago.
O que, afinal, teria magoado assim desse jeito uma pessoa que desconhecia ira,
mágoa, inveja? Sem atinar com a causa, insisti muito e só aí ela me contou que
a chamaram para gravar um novo disco. Durante três meses, apoiada numa bengala
e sofrendo as consequências de uma trombose que a fazia arrastar-se com
sacrifício pela tão decantada vida de artista, lá ia Mãe Quelé cumprir uma
perigrinação inútil para saber quando sairia a gravação que ela não pedira para
fazer. Que voltasse "na semana que vem", e toda semana ela voltava e
recebia a mesma hipócrita recomendação. "Eu não pedi para fazer disco
nenhum, meu filho. Por que é que eles estão brincando assim com a nega véia?"
A resposta que tinha engatilhada na ponta da língua era por demais cruel, e não
seria eu que iria amargurar ainda mais aquela negra de alma negra, aquele ser
em tudo semelhante a um baobá, árvore
africana de largo tronco e cuja folhagem rendilha sombras estranhas,
expurgatórias talvez do banzo que sofrem os negros, banzo que há algum tempo eu
vi espelhado nos olhos da grande Mãe Brasileira, quando fui visitá-la na
companhia de nosso amigo, o fotógrafo Walter Firmo. Não conhecia a casa onde
agora morava, muito diferente daquela da rua Itaú onde vivia com Albino Pé
Grande: um quartinho que se ligava a uma sala estreita semigeminada a alguma
coisa que se assemelhava a um banheiro-cozinha. A de hoje é fruto da
solidariedade de alguns artistas plásticos (Cildo Meireles, Ana Letícia,
Henfil, Glauco Rodrigues, Nássara, Serpa Coutinho, Ziraldo, Chico Caruso,
Urian, Caymmi, Germano Blum e tantos outros que agora não me ocorrem, que,
convidados por mim, fizeram uma série de retratos e cartuns de Mãe Quelé. Era 1980,
e ela estava comemorando presumíveis 80 anos - mais ainda sem um teto que fosse
seu.Levei a ideia ao Banerj: que comprasse a edição de um álbum editado pela
Funarte e comprasse diretamente um imóvel em nome da Casa dos Artistas (nada
mais justo) em usufruto de Clementina. O que foi feito.
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A página da Amiga |
Volta e meia amigos meus
vinham me revelar o que há muito já sabia. A preço de banana, vendiam os shows
de Clementina e a faziam rodar pelas madrugadas de São Paulo, onde se
apresentava nos lugares mais mulambentos. E não raras vezes saía do Rio de
ônibus, porque as leis selvagens do mercado são insensíveis quando se deparam
com uma presa fácil e generosa igual a Quelé. Profissional, jamais alegou
cansaço para fazer seu trabalho.
Aos seus ganhos agregava uma
pensão magérrima do INPS, obtida por outro filho querido que não me autoriza a
divulgar seu nome, guardado com muito carinho na gratidão de Clementina. Ele
ganhou um festival com Paulinho da Viola e Elton Medeiros e reverteu os dois
prêmios no pagamento de contribuições que permitiu a Mãe Quelé usufruir de uma
aposentadoria que, embora magra e incompatível com sua importância, para alguma
coisa lhe servia.
Mais recentemente, fui
procurado pelo Marcus Villaça, presidente da LBA. A exemplo do que a
instituição fizera com Henriete Morineau, entendia que Clementina era
merecedora de igual apoio. Apenas ressaltei: que essa ajuda financeira
ensejasse também um trabalho cultural. Sugeri que uma equipe de jovens
pesquisadores fosse contratada para levantar a incompleta biografia de
Clementina. Tive o cuidado, tão logo a conheci, de gravar seu depoimento,
levantar de forma ametodológica (já que não sou um pesquisador) um pouco de sua
grande vida. Mas era um trabalho que exigia um fôlego que a mim faltava. Um
posterior depoimento ao Museu da Imagem e do Som complementou em parte o
trabalho que fiz. Mas se fazia necessário levar Quelé até Valença, resgatar sua
história, saber sua verdadeira idade, fazer uma pesquisa de campo detalhada.
Esse trabalho, e Villaça assinou convênio com a Funarte, ganharia seu natural
escoamento: um livro de cunho didático-cultural que a LBA editaria, para
ensinar o Brasil aos brasileiros, como sempre recomendou Mario de Andrade.
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João da Baiana, Pixinguinha, Donga e Clementina de Jesus |
O acervo discográfico de
Clementina é pequeno diante do seu universo, que é absolutamente
incomensurável. Jongos, corimas, lundus, cantos de reisado e de folias,
batucadas, partido-alto, rezas - tudo que aprendera com a mãe, que por sua vez
herdara cantorias que vinham passando de geração em geração, o que me permitiu
recompor uma acervo que fatalmente se perderia se parte dele não tivesse sido
registrada fonograficamente. A Miton Miranda, ex-diretor da Odeon, deve-se o
convite para registro dos LPs do Rosa de
Ouro (1965), do primeiro LP individual de Clementina (também editado na França
pela Pathé Marconi) e dos outros que produzi: o Fala Mangueira, ela e Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça e
Odete Amaral; o Gente da Antiga,
Quelé ao lado de Pixinguinha e João da Baiana; o Mudando de Conversa, gravado ao vivo com Ciro Monteiro e Nora Ney,
e alguns mais que deveriam estar em catálogo. Participações especiais fez
inúmeras em discos de outros artistas, como Milton Nascimento. Existe ainda um
LP gravado para o Museu da Imagem e do Som de grande valor histórico. A má
qualidade técnica do disco poderia, agora, ser atenuada pelos modernos sistemas
da indústria fonográfica - essa que tão prosaica quanto descriteriosamente
utiliza o slogan "disco é cultura". É uma impostura que dá margem à
próspera fabricação de mitos descartáveis, ensejando a boa parte das gravadoras
nacionais e multinacionais desovarem um lixo que em tudo desserve a nossa
cultura, desamparada também por um Código de Telecomunicações que beneficia o
culto ao inútil e desampara uma produção cultural ainda perseguida por artistas
dignos que não se vergaram às conveniências mercadológicas de gravadoras que, como
relatei no início deste artigo, humilharam Clementina no final de sua vida. É
claro que toda essa impostura é mascarada quando a desgraça cai sobre um mito
igual a Quelé ou tantos outros artistas que recentemente abasteceram o
noticiário da imprensa. Entidades pseudamente representantes dos artistas logo
se apressam a custear funerais, enviar coroas e até eventualmente pagar custos
hospitalares, se a contrapartida promocional for interessante.
Dessa novela já sei o
enredo. Lembro aos desmemoriados que Pixinguinha morreu na pobreza, com um baú
entulhado de obras geniais condenadas ao ineditismo. Em seus últimos dez anos
de vida só entrou nos estúdios graças a essa obsessão que até hoje me acompanha
e a doce cumplicidade que felizmente ainda encontrei em pessoas sensíveis à
genialidade do Santo. Meu trabalho na área cultural não é mais amplo exatamente
por força de um sistema mafioso que trata o disco didático-cultural com
absoluto desprezo, obstruindo quase todos os caminhos alternativos que tento
percorrer. A própria televisão que faço já esteve sob patrulhamento estético,
claro sinônimo de censura. Clementina é um exemplo vivo dessa ótica vesga e
preconceituosa, que a tratava apenas como a preta velha alforriada pelos
brancos bondosos que a encarceram numa senzala menos desconfortável. Não
contarei aqui os absurdos que ouvi de pessoas incapacitadas até para a guarda
de uma mictório público, mas que militam na área cultural em postos graduados.
Tudo que teria a dizer sobre
Clementina de Jesus já despejei no recital que em 7/dez/64 a revelou para o
público no show Rosa de Ouro, que em
1965 a consagrou, e nos discos que para ela produzi. Resumindo: ela é meu
melhor poema, meu melhor livro, minha melhor letra de música. Tudo que fiz na
vida tem significado inferior a sua descoberta. A milionésima parte que sempre
desejei ser de Mario de Andrade acho que consegui no dia em que a conheci na
Taberna da Glória, em 1963.
Clementina de Jesus é
símbolo dessa cultura multifacetada em etnias e credos, baobá que a todos nos
protege com a estranha divindade que a fez resistir ao processo liquidificador
que insiste em atomizar figuras que, iguais a ela, nos ensinaram o significado
de, além da pátria, sermos sobretudo uma nação.
Acho que o reconhecimento
dos seus méritos por toda comunidade artística responsável do Brasil é também
um atestado mais do que eloquente de sua arte transcendental. Para mim ela se
iguala em importância a Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Oscar
Niemeyer, Mario de Andrade, Portinari. O crítico Ary Vasconcellos tem sobre ela
um pensamento que reproduzo, e que me parece simplesmente definitivo:

"A descoberta de
Clementina de Jesus teve para a música brasileira uma importância que presumo
corresponder, na antropologia, à do achado de um elo perdido. Estávamos em
meados da década de sessenta, já bem distante de nossas raízes africanas. A
escola de canto que prevalecia era a europeia, principalmente a italiana: nossos
cantores e cantoras apresentavam-se com a voz polida, seja por estudos
técnicos, que os transformavam em autênticos tenores (líricos ou dramáticos),
barítonos, sopranos, etc..., seja por uma colocação mais espontânea, mas sempre
refinada, civilizada. Predominava sempre a voz, senão forte e imponente, pelo
menos bonita, isto
Revista Amiga, 05 de agosto
de 1987