terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Clarice Lispector: Meu Natal



Clarice Lispector com o marido e filhos no Natal de 1956, EUA. Do livro Fotobiografia

Esta crônica natalina encerra a coluna de Clarice Lispector no JB em 23 dezembro de 1968

                                                    Meu Natal
Como as crianças eram pequenas e não conseguiriam se manter acordadas para uma ceia, ficou como hábito que o Natal seria comemorado não à meia-noite, mas sim no almoço do dia seguinte. Depois os meninos cresceram mas o hábito ficou. É no dia 25 pela manhã que vêm os presentes.

Pelo fato da ceia de Natal ser no dia 25, eu fiquei sempre livre na noite de 24 de dezembro. Mas há três ou quatro anos tenho um compromisso sagrado para noite de 24.

É que, falando com uma moça que ainda não era minha amiga mas hoje é, e muito cara, perguntei-lhe o que iria fazer na noite de Natal, com quem ia passar. Ela respondeu simplesmente: o que tenho feito todos os anos: tomo umas pílulas que me fazem dormir 48 horas. Surpreendi-me, assustada, perguntei-lhe por quê. É que o tempo de Natal lhe era muito doloroso, pois perdera pai e mãe, se não me engano perto de um Natal e não suportava passá-lo sem eles. Fiz-lhe antes ver o perigo de tais pílulas: podia, em vez de 48 horas, dormir para sempre.

E tive uma ideia: daquele Natal em diante, nós passaríamos parte da noite de 24 juntas, jantando num restaurante. Encontrar-nos-íamos às oito e pouca da noite, ela veria como os restaurantes estão cheio de pessoas que não têm lar ou ambiente de lar para passar o Natal e o celebram alegremente na rua. Depois do jantar, ela me deixa em casa com o seu carro, e vai para casa buscar a tia para irem à Misssa do Galo. Nós combinamos que cada uma paga a sua parte no jantar e que trocaremos presentes: o presente é a presença de uma para a outra.

Mas houve um Natal em que minha amiga quebrou a combinação e, sabendo-me não religiosa, deu-me um missal. Abri-o, e nele ela escrevera: reze por mim.

No ano seguinte, em setembro, houve o incêndio em meu quarto, incêndio que me atingiu tão gravemente que fiquei alguns dias entre vida e morte. Meu quarto foi inteiramente queimado: o estuque das paredes e do teto caiu, os móveis foram reduzidos a pó, e os livros também.

Não tenho explicar o que aconteceu: tudo se queimou, mas o missal ficou intato, apenas com um leve chamuscado na capa.
                              Jornal do Brasil, 21 de dezembro de 1968

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Sombras de Clarice Lispector no dia de seus 99 anos




Hoje, 10 de dezembro, seria o dia dos 99 anos de Clarice Lispector. E ontem completou 42 de sua morte. Fui procurar uma foto dela não tão conhecida para postar, encontrei várias, mas uma permaneceu comigo, justo a mais "obscura" delas. É essa aí, repleta de sombras e escuros que mais escondem do que revelam, bem como a vida da escritora permanece tantos anos e biografias depois. Sim, é Clarice com quase 21 anos, terceiranista de direito com quatro de seus colegas de faculdade na foto publicada em outubro de 1941.

"Saia xadrezinha, blusa gola rolê e manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço": foi assim que descrevi quando encontrei a foto. Foi lá por 2002 quando passava tardes e tardes nas Biblioteca Mario de Andrade, às voltas com pesquisas que inventava e topei com uma coleção de exemplares de Diretrizes, jornal de Samuel Wainer lá no final dos anos 1930, começo dos 40.
Os exemplares amarelados e amarrados com barbante não deixavam dúvidas: há muito tempo não eram folheados e, quando abertos, se desfaziam nas dobraduras, deixando lascas de papel sobre a mesa. Eu usava luvas plásticas, não podia xerocar e só copiar a lápis. Máquina digital ainda era coisa rara, pelo menos pra mim.

Bom, certo dia topei com a matéria “Os Estudantes Brasileiros e a Literatura Universal” (http://viledesm.blogspot.com/2011/12/clarice-uma-arqueologia-2-primeira.html) e, para minha surpresa, uma das entrevistadas era Clarice Lispector  - é considerada uma de suas primeiras entrevistas publicadas. E essa foto estava lá. Só a revi desse jeito nada revelador quando a coleção digitalizada de Diretrizes entrou na hemeroteca da Biblioteca Nacional. Fico olhando o retrato e imaginando de acordo com minha descrição: "Saia xadrezinha, blusa gola rolê e manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço":

E aqui, conto com mais detalhes como foi a "descoberta" da entrevista e foto



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Os bastidores de uma capa histórica

Capa: Rubinho do Zimbo Trio, Jair Rodrigues, Nara Leão, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Gilberto Gil, Toquinho, Caetano Veloso e Magro do MPB4.
Na segunda, Elis Regina com o grupo
Fotos: David Drew Zingg
É uma bela capa essa da edição oito, novembro 1966, da revista Realidade. Tem a assinatura de David Drew Zingg e foi tirada no dia seguinte da final do Festival da Record. Nara Leão é a única mulher entre oito varões, todos promessas da música brasileira (Os Novos Donos do Samba). E por que Elis Regina não está na capa? Nada de rivalidade entre ela e Nara: Elis simplesmente chegou alguns minutos depois de Zingg fazer o clique. Ela aparece na reportagem sim em uma bela foto com várias cantoras: Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Maria Bethânia... E num retrato raro publicado na recente fotobiografia de Chico Buarque (Revela-te, Chico) há outra versão da foto de grupo, com Elis e sem Nara. Abaixo, os bastidores da capa histórica, a partir de uma matéria na edição de primeiro aniversário da revista com a "História das doze capas

                                      Elis Regina dormiu demais
Marcar encontro com artista é mais ou menos assim:
- Te espero amanhã entre 4 ou 5 horas, está bem?, diz o fotógrafo.
O artista concorda e chega às 7.
Para a capa de novembro, dois fotógrafos repórteres e o fotógrafo David Drew Zingg manobraram durante dois dias para convencer dez artistas da música popular brasileira a se encontrarem, na mesma hora, no estúdio fotográfico da revista. E a hora, para um dos artistas, principalmente, era das mais ingratas: 11 da manhã. Das 11 e 30 em diante eles começaram a chegar, um por um. As duas da tarde a foto foi batida. Era o último dia para se mandar a capa para a gráfica e o filme foi imediatamente revelado. Minutos depois das 14 horas chegou Elis Regina: tinha perdido a hora e a desculpa era muito boa, pois na véspera tinha participado do Festival de Música Popular Brasileira da Televisão Record. Na foto da capa, que saiu em 485.700 exemplares, de Realidade de novembro, pode-se ver, de cigarro na mão direita, Chico Buarque de Holanda, com cara de quem não estava gostando da brincadeira. Chico - um dos grandes vencedores do Festival da véspera - ainda não havia dormido. Um detalhe: Pelé quase foi a capa de novo em novembro"

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Jorge Fernando: Eu sou o show



Releio a entrevista que fiz e da qual guardo ótimas lembranças, na primavera de 1994, com Jorge Fernando. Foi na revista Video News), era um perfil cinematográfico. Ele se preparava para começar a dirigir A Próxima Vítima e recebeu a mim e ao fotógrafo Hamilton Penna na casa dele, em Copacabana. Foi uma delícia de entrevista e ao final ele falava de um filme que pretendia dirigir: A Noite do Oscar, baseado em peça de Vicente Pereira. Abaixo alguns trechos:

A cobertura na Avenida Atlântica, em Copacabana, é a cara de Jorge Fernando. Logo na entrada da sala ampla, um painel cheio de fotos de amigos. O ambiente é repleto de cartazes de musicais da Broadway nas paredes (O Fantasma da Ópera e Miss Saigon, entre eles), sua assinatura em neon, estantes cheias de fitas de vídeo, videolaser, CDs, livros de cinema e teatro. Os semideuses James Dean e Marilyn Monroe reinam soberanos em tamanho natural, na parte reservada para o móvel com a imensa TV Mitsubishi e a aparelhagem de som. Em outra parede, o destaque é para um "herege" poster da versão hollywoodiana da Santa Ceia, com Marilyn ao centro, cercada por ícones como Clark Gable, James Dean e O Gordo e o Magro.

É no cinema mesmo que se mantém em dia com as novidades. Quase ritual: toda sexta, ele está na primeira sessão e quase sempre sozinho. Deixa o vídeo para a madrugada, horário em que chega em casa elétrico: "É para esquecer da agitação e relaxar mesmo", avisa.

Começa a assistir na sala, às vezes interrompe para comer alguma coisa, passa para o quarto, adormece e recomeça do mesmo ponto no dia seguinte. "Sempre durmo vendo um filme", conta

"Sou muito cafona. Meus gostos sempre foram considerados bregas, mas nos últimos tempos virei cult", debocha o admirador de Cher. Lembra que pagou 400 dólares para assistir a um show da estrela de Feitiço da Lua e ela simplesmente estava nos dias de Tim Maia e não apareceu.
Outra de suas preferidas - ele avisa que não tem ídolos - é Barbra Streisand, inclusive dirigindo: "Ela deve ser tão chata, pois os filmes são tão perfeitos", diz às gargalhadas. Bette Midler, Julie Andrews ("adoro A Noviça Rebelde") e Susan Sarandon também merecem elogios, junto com Liza Minnelli. Até já dublou la Minnelli cantando Cabaret em um musical colagem.

Anda doido para estrear como diretor de cinema e o projeto de seus sonhos é A Noite do Oscar, peça de Vicente Pereira que roteirizou e já decupou. A trama acontece durante a última transmissão do Oscar, minutos antes de a terra acabar e Jorge Fernando criou os cinco filmes concorrentes, todos com histórias curtas e completas e cada um de um gênero: musical, policial, comédia, terror. "É assim tipo a volta do musical, da chanchada, tipo Watson Macedo está voltando", diz o chanchadeiro de carteirinha.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Mestre da boemia, Lupicínio Rodrigues explica "O que é um boêmio"


No dia que seria o do seus 105 anos, Lupicínio Rodrigues é doodle, a homenagem do Google. E suas canções seguem vivas. Adriana Calcanhotto e Arrigo Barnabé, por exemplo, revisitaram a obra do mestre em shows que viraram CD e DVD.
Aqui uma crônica sobre boêmio e boemia para comemorar os 105 anos do gênio da música brasileira. Foi a primeira da coluna que Lupicínio manteve no jornal Última Hora de Porto Alegre, entre 9 de fevereiro de 1963 e 29 de fevereiro de 1964. Era a entrada de Lupicínio nos 50 anos - ele nasceu em 16 de setembro de 1914. Essas crônicas estão no livro Foi Assim (L&PM, 1995), organizado por Lupicínio Rodrigues Filho. Lupicínio Rodrigues morreu em 27 de agosto de 1974.

                                               O QUE É UM BOÊMIO

Caro leitor, ao iniciar esta série de crônicas, quero primeiramente agradecer à direção de Última Hora, por me haver dado oportunidade para falar um pouco de nossa cidade, da nossa música, dos nossos boêmios... E por falar em boemia, que é a alma de tudo que se refere à noite, acho que há necessidade de desfazer um mal-entendido com respeito a esse vocábulo, pois ele tem sido muito mal interpretado. Quase todo o mundo caracteriza o boêmio como um indivíduo sem caráter, que não trabalhe, que vive a cometer desajustes, ou mais comumente: um vagabundo. Ser boêmio não é nada disso. O boêmio, em princípio, é um notívago, depois um poeta, um amoroso, um admirador das serestas e é realmente um companheiro da lua.

 Poderia citar aqui uma grande relação de nomes de médicos, engenheiros, advogados e outros, que são grandes boêmios e que, como eu, gostam da madrugada.

Quanta gente, meus caros leitores, só conhece a mudança da lua pela folhinha, nunca deu aos seus olhos o prazer de ver uma lua cheia, porque dorme antes da lua sair e acorda depois que ela vai embora.

Os boêmios, quase sempre, são artistas ou pessoas muito sentimentais; digo pessoas, porque existem também mulheres boêmias, mulheres que, igualmente gostam da noite e sabem que é na noite que se faz música, que se diz poesia com mais sentimento e que, enfim, é à noite que o amor é mais amor.

O sol, com excesso de luz, parece não nos inspirar a grandes idílios, o que a lua consegue muito mais graciosamente com sua penumbra.

As mulheres são as flores que enfeitam e a luz que ilumina nossos caminhos, quando nossos olhos já cansados esperam a madrugada. Sem elas, sem a lua e sem as estrelas, nós boêmios não teríamos razão para viver e nem teríamos a noite para nossa companheira.

Espero ter sido entendido por meus amigos e como agradecimento a quem nos aceita assim como somos, apaixonados pela noite, ofereço a letra de uma de minhas últimas composições, a guarânia Contando os Dias. E gostaria de registrar também que esta coluna ficará à disposição dos leitores para solicitarem o que desejarem saber a respeito das minhas músicas e sobre o roteiro deste boêmio, que sairá todos os sábados neste espaço de UH.

CONTANDO OS DIAS*
Estou contando os dias...
O que eu esperava
vai se aproximando...
Estou contando as horas
- Seus apaixonados
vão se retirando -
Quando a mulher tem dono
Todo mundo adora
Todo mundo quer,
Quando ela está sozinha
Não é nada mais
que uma mulher...
Aquela que a meu lado
era uma deusa era uma rainha
Agora igual às outras infiéis
Vai ficando sozinha.
Conselho "pra" mulher
não adianta nada
Ela não sabe quando
a desejam
ou quando realmente
é amada.
E até sábado...

* No youtube só encontrei essa versão de Contando os Dias com Carlos Galhardo (1913-1985),  o que acentua o tom nostalgia da guarânia




sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Adeus, agosto. Alô, setembro

Do G1: Fonte Inpe imagem de satélite em 18/8/2019. Infográfico de 19/8/2019
                                         

               Adeus, agosto. Alô, setembro

Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que vai nos deixar amanhã à meia-noite e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Algo em comum durante todos os dias do mal cantado mês: não houve um em que não surgisse alguma merda da boca maldita do asno que nos governa. E também vazamentos quase diários com as safadezas dos procuradores justiceiros de Curitiba - pra que citar nomes, todos sabem quem são os lazarentos que seguem por aì à espera do que a bandidagem lhes reserva.

E houve uma novidade que nem tão novidade é: Amazônia ardendo em chamas, só que dessa vez instigada/autorizada pelo discurso de ódio do asno que nos governa (melhor não escrever esse nome e nem dizer "presidente" - aqueles truques bobos pra sobreviver). O massacre à floresta foi tamanho que provocou escândalo mundial e só a partir daí houve algum reconhecimento do caos por lá. 

Agosto levou muita gente: Ruth de Souza, João Carlos Barroso e Fernanda Young, tão nova ela. Muito mais gente se foi, cito esses três até pra lembrar que artistas são perseguidos, a cultura virou a Geni desses tempos esquisitos e seguiu xingada durante agosto inteiro. Houve até ataque de grupelho fascista com pedras de gelo e lixo em cima de artistas numa noite fria num festival de cinema lá naquele estranho estado ao sul.

O mais patético: A tarde virou noite em São Paulo, numa certa segunda-feira pra não esquecer. Sim, com ação das fumaças das queimadas combinada com outros fatores fez-se a noite em plena tarde e não clareou mais até que a noite verdadeira viesse e o temor que não amanhecesse no dia seguinte. Nunca antes: na maior cidade da América do Sul, 19 de agosto foi o dia com a noite mais longa. Como assim? Sabe os deuses? Eles são poderosos. E ninguém me tira da cabeça que essa noite que se abateu sobre SP foi ação deles pra chamar atenção sobre a destruição da natureza. Que mistério sempre há de pintar por aí.

Passadas as águas de agosto, domingo é setembro e uma voz insiste em dizer: a primavera vem aí e ela vem linda. Acredito. É preciso acreditar em algo. E Lula Livre, por favor.


* Esse adeus a agosto vem inspirado numa crônica de Caio Fernando Abreu. O título, algumas frases e a ideia são completamente chupados de Caio F. Abaixo, o link pra crônica inspiradora, que segue atualísima.


terça-feira, 27 de agosto de 2019

Elis lá no início e rara

Mesmo nas barcas entre Santos e Guarujá, os "cobras" se exercitam: a legenda da revista
1965 Sem o nome na matéria da revista
Em Guarujá, dias antes da primeira edição do Festival Nacional de Música Brasileira, transmitido pela TV Excelsior, produzido por Solano Ribeiro e realizado de 14 a 20 de fevereiro. O prêmio do festival chamava-se Berimbau de Ouro e foi vencido por Elis Regina defendendo Arrastão (Vinicius de Morais e Edu Lobo), que levou "10 milhões de cruzeiros".

A revista Manchete de 13 de fevereiro promovia o evento e Elis Regina, ainda não conhecida, não tem seu nome (nem os músicos) na reportagem de duas páginas e aparece em duas fotos. "Alguns "cobras" paulistas já estão em Guarujá, em busca de inspiração", encerrava a matéria, Abaixo a foto na abertura



1966 Depois de vencer a primeira edição com Arrastão, Elis Regina inaugura o 2º Festival de Música da Excelsior - o segundo e último.

Na abertura do II Festival da Excelsior
Abaixo, dois shows de Elis Regina, um antes e outro depois de Arrastão

1964 Em julho, últimos ensaios para o primeiro show Sósiforagora, no Bottle´s, Beco das Garrafas, com o Copa Trio: Doum (Bateria), Don Salvador (piano) e Gusmão (baixo)


1966 Berimbau - Show com Baden Powell na Boate Zum Zum. Com direção musical e arranjos de Guerra Peixe





quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Aonde está a floresta espessa de escuridão?: Texto de um chefe indígena americano na metade do século 19


Amazônia em chamas e não me sai da cabeça este texto, que me veio via Maria Bethânia, sempre ela. Era parte do show Estranha Forma de Vida, de 1981. 

É o texto-carta de um chefe índigena americano que, há mais de 150 anos, “antevia toda a salada ecológica que o homem branco começava a preparar”, nas palavras de Fauzi Arap, que dirigiu o show de Bethânia. 

Abaixo o "texto-carta" do chefe indígena americano.



TEXTO DO ÍNDIO

Em 1854, há mais de 120 anos atrás, o presidente dos Estados Unidos fez uma oferta aos índios para a compra de uma grande extensão de suas terras, oferecendo em troca a concessão de uma outra reserva. A resposta do chefe índio, recentemente difundida pelas nações unidas, é considerada um dos mais belos pronunciamentos já feitos em defesa do meio ambiente.

"Como se pode comprar ou vender o firmamento? Essa ideia é desconhecida para nós. Se não somos donos da frescura do ar e do fulgor das águas, como poderão ser comprados? Cada porção dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada brilhante mata de pinheiros, cada grão de areia nas praias, cada gota de orvalho nos escuros bosques, cada colina e até o som de cada inseto, tudo é sagrado ao passado e à memória do meu povo. Os mortos do homem branco esquecem o seu país de origem quando empreendem seus passeios entre as estrelas. Os nossos mortos, no entanto, não podem nunca esquecer essa bondosa terra, pois que ela é a mãe dos pele-vermelhas. Somos parte da terra, assim como ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs, os escarpados penhascos, os úmidos prados, a grande águia, o calor do corpo do cavalo, o homem, todos pertencemos a mesma família.

Por tudo isso, quando o grande chefe de Washington nos envia mensagem de que deseja comprar nossas terras, ele nos está pedindo demasiado. Também nos diz o grande chefe que nos reservará um lugar onde possamos viver confortavelmente entre o nosso povo. Ele se converteria em nosso pai e nós em seus filhos. Por isso consideraremos a oferta para comprar nossas terras, mas se lhes vendermos a terra devem ensinar a seus filhos que são sagradas. Os rios são nossos irmãos e também são seus. Portanto devem tratá-los com a mesma doçura com que se trata um irmão. Mas isso talvez seja porque o índio é um selvagem e não compreende nada. Que o barulho somente parece insultar nossos ouvidos. Depois de que serve a vida se o homem não pode escutar o grito solitário do noite bó? O ar...O ar tem um valor inestimável para um pele-vermelha já que todos compartilham do mesmo alento, a besta, a árvore, o homem: todos respiramos o mesmo ar. 

O homem branco parece não ter consciência do ar que respira, como um moribundo que agoniza durante dias insensível ao fétido odor. Eu vi milhares de búfalos apodrecendo nos prados, mortos a tiros pelo homem branco de um trem em marcha. Eu sou um selvagem e não posso compreender como uma máquina fumegante pode importar mais que um búfalo que nós matamos apenas para sobreviver. O que seria do homem sem os animais? Se todos fossem exterminados o homem também morreria de uma grande solidão espiritual. Porque tudo que suceder aos animais também sucederá ao homem. Tudo está entrelaçado. O homem não teceu a trama da vida, ele é somente um rio. Tudo que ele fizer com a trama ele fará a si mesmo. Tudo está entrelaçado. Tudo que correr à terra ocorrerá aos filhos da terra. Contaminem os seus leitos e uma noite perecerão afogados em seus próprios resíduos. Aonde está a floresta espessa de escuridão? Onde a grande águia nos apareceu termina a vida e começa a sobrevivência." (E Bethânia emenda o texto com Rosa dos Ventos).

O SHOW

Há alguns anos o show Estranha Forma de Vida estava no Youtube, fui procurar agora e não encontrei - só esse trecho:


terça-feira, 13 de agosto de 2019

João Carlos Barroso: os primeiros passos de um ator coadjuvante


A primeira foto é de Homem, Besta e Virtude, peça de 1962

Leio na capa do site: "Morre João Carlos Barroso, de Roque Santeiro e Zorra Total".
 A matéria baseia-se em publicação das sobrinhas dele na internet e começa assim: "O veterano ator João Carlos Barros morreu ontem, aos 69 anos". Veterano? 69 anos? Conta que ele começou aos 11 anos num filme argentino. Que filme? Não revela.

João Carlos Barroso faz parte de minhas lembranças de menino noveleiro, sempre como coadjuvante, o amigo de alguém. Parto para uma busca rápida de seus primeiros passos na carreira. O filme argentino é de 1961, chama-se Pedro e Paulo. Como uma coisa leva a outra, no ano seguinte estava no palco em Homem, Besta e Virtude, de Pirandello, produção do Teatro dos Sete, o célebre grupo de Fernanda Montenegro, Sergio Brito e Ítalo Rossi, que estrelavam a peça, dirigida por Gianni Rato. Por "sua espontaneidade" no papel do pequeno Nonô, o menino ganhou elogios da crítica, prêmio de revelação teatral infantil de 1962 e matéria de jornal (ao lado). Vieram teleteatros: Teatro dos sete, Grande Teatro Tupi e Grande Teatro Infantil, dirigido por Fabio Sabag. Em 1965, aos 15 anos, estava em Rua da Matriz, na Globo, fazendo o filho da família, claro. No ano seguinte, na Excelsior, na "primeira telenovela juvenil", dizia o anúncio de jornal: A Ilha do Tesouro (à direita).

Estúpido Cupido
A transição do ator infantil não costuma ser fácil. A de João Carlos parece não ter fugido à regra. Nos arquivos digitais, o nome dele só volta a aparecer no começo dos anos 70, quando tinha uns 20 anos (nasceu em 28 de fevereiro de 1950) e no teatro - Tudo no Jardim, de Albee, com Maria Della Costa, em 1971 e Peru, vaudeville de Feydeau, um sucesso em 1972. Deve ter sido essa que o levou a TV como filho de Zeca Diabo (Lima Duarte) em O Bem Amado. E a partir daí, atua em várias das novelas mais conhecidas da Globo dos anos 70: Os Ossos do Barão, Pecado Capital, Estúpido Cupido, Locomotivas, O Pulo do Gato, Pecado Rasgado, Marrom Glacê, Chega Mais...



No final dos 70, como praticamente todos os atores da época estrelou uma pornochanchada: Nos Tempos da Vaselina, ao lado de Aldine Muller. Sim, era uma sátira "picante" a Nos Tempos da Brilhantina (Grease), o sucesso de então de John Travolta e Olivia Newton John. A busca poderia continuar, mas eu estava atrás mesmo dos primeiros passos do ator João Carlos Barroso, o rosto conhecido de minha meninice.







Abaixo, a primeira peça e o cartaz do primeiro filme de João Carlos Barroso, ainda menino
Revista Manchete, 1962



domingo, 4 de agosto de 2019

A tal "safra" de mulheres da MPB 1979

Denise Emmer, Angela Ro Ro, Fátima Guedes, Joana, Olivia Byington, Zizi Possi, Thereza Tinoco, Faffy
Era 1979 e uma "safra" de cantoras e compositoras novatas tomou de assalto a música brasileira. A mulherada fazia tanto barulho que gerou o especial Mulher 80, exibido na Globo, em 19 de outubro e que o tempo se encarregou de tornar clássico. Mulher 80 destacava cantoras consagradas, com raras novatas. A revista Manchete foi atrás e na edição de 24 de novembro dedicou 5 páginas à "safra" das que começavam a despontar.


A Hora e Vez das Mulheres era o título da reportagem que as mostrava quebrando tabus do mercado de disco, como "mulher não vende disco" e "mulher não compra disco de mulher". A revista contabilizava 22 nomes e deu destaque com breves perfis a 11: Denise Emmer, Olivia Byington, Elba Ramalho, Diana Pequeno, Joana, Thereza Tinoco, Zizi Possi, Marina Correa Lima, Fátima Guedes, Ângela Ro Ro e Faffy, na ordem em que são citadas.

Na página final, oito delas de mãos dadas em referência à clássica abertura do especial Mulher 80 (só Joana aparece no especial da Globo), Ro Ro faz participação especial com Marina) Abaixo a matéria inteira da Manchete, assinada por Lucia Leme e com fotos de Isabel Garcia. Ah, não foi capa da Manchete - era Alcione Mazzeo.





terça-feira, 30 de julho de 2019

Há 70 anos: Camus assiste Ruth de Souza com o Teatro Experimental do Negro

Com os colegas do TEN, Ruth de Souza conversa com Albert Camus: 26 de julho de 1949, Teatro Ginástico, Rio


Quando morre um artista que eu admiro, costumo mergulhar na trajetória dele, lendo tudo que posso a respeito. É o meu jeito de dizer adeus e agradecer. Com Ruth de Souza foi assim, procurei em revistas antigas, li várias entrevistas e três livros com ela de protagonista (no final). É impressionante a lista de "celebridades" com quem Ruth conviveu, afinal sua carreira artística começou na metade da década de 40. Albert Camus foi um que me chamou atenção e, como uma coisa leva a outra fui atrás.

Ruth o conheceu em 1949, durante a viagem do francês ao Brasil e América Latina. No livro Estrela Negra (Coleção Aplauso), ela conta que guardava uma dedicatória dele: "À minha filha Ruth-Cesônia, de seu pai ocasional com toda a gratitude e agradecimento" (Nota: Cesônia era a personagem de Ruth na peça). No Rio, Camus foi assistir a uma apresentação especial do Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo pioneiro onde Ruth era estrela, no Teatro Ginástico. 

Às pressas e sem dinheiro, Abdias Nascimento (o fundadador do TEN) decidiu montar um ato de Calígula, peça de Camus, para apresentar ao autor. Foi uma só apresentação e o espetáculo não foi fotografado. E junto com Calígula, Camus também assistiu o segundo ato de Aruanda, de Joaquim Ribeiro, uma das primeiras peças a abordar o universo místico do negro brasileiro. Fui atrás de uma foto de Ruth e Camus e encontrei a que está lá em cima, do arquivo de Abdias Nascimento, na Quilombo, revista que ele editou em 1950 e publicada em 2011 na Memorabília da Ilustríssima (Folha).

No livro Diario de Viagem (editora Record), Camus conta da apresentação, sua impressão de Calígula e faz um resumo interessante de Aruanda. Foi há 70 anos, 26 de julho de 1949, ele está de cama, com febre, resultado de uma gripe.

Ruth em Aruanda
"Noite. Alguém vem me buscar. Eu havia esquecido que o grupo negro deveria me mostrar hoje à noite um ato de Calígula. O teatro está reservado, não se pode fazer outra coisa. Agasalho-me como se fosse para o polo Norte e vou de táxi.

Estranho ver esses romanos negros. E depois, o que me parecia um jogo cruel e vivo tornou-se um arrulhar lento e terno, vagamente sensual. Em seguida, desempenham para mim uma peça brasileira curta (nota: é o segundo ato de Aruanda), que me agrada muito e cujo assunto transcrevo:

"Um homem, frequentador assíduo de macumbas, é visitado pelo espírito do amor. Atira-se então sobre sua mulher, que se deixa por ele enlevar e apaixona-se por esse espírito. Com o mesmo canta, provoca a vinda do espírito tantas vezes quanto possível, o que dá ensejo, no palco, a bacanais animadas. Finalmente o marido compreende que ela não está apaixonada por ele, e sim pelo Deus, e mata a mulher. No entanto, ela morre feliz, pois está convencida de que irá se encontrar com o Deus que ama."

Ruth de Souza em livros


Estrela Negra, de Maria Ângela de Jesus - Biografia para a Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial SP. Link: http://aplauso.imprensaoficial.com.br/livro-interna.php?iEdicaoID=42

Álbum de Retratos, por Haroldo Costa. Como explicita o título, uma série de belas fotos, em ordem cronológica

Bastidores, de Simon Khoury. Entrevista longa de Ruth.


sábado, 27 de julho de 2019

Dois livros encantadores sobre gatos

Patricia Highsmith e William Burroughs. Arte by B.

"Tudo me leva a crer que em breve terei um gatinho", ouço de minha amiga Marcia. Ela escreve no Instagram, como comentário a uma foto de Nina, a gata aqui de casa. "Pra se decidir, se ainda não leu, aí vão dois livros", respondo. E são esses os dois livros maravilha que indiquei: Os Gatos, da Patricia Highsmith e O Gato Por Dentro, de William Burroughs. Ambos saíram na série pocket da LPM e são facilmente encontráveis em qualquer banca de revista - e por preços convidativos. Leitura rápida. Quer dizer, leitura rápida a primeira. Já voltei a eles muitas vezes. Gateiros vão se deliciar e quem ainda não os descobriu, pode encontrar um mundo novo.

Quem já se encantou por eles sabe que Highsmith (O Talentoso Ripley, Carol) e Burroughs (Almoço Nu, Junky) não eram o que se pode chamar de escritores convencionais, pessoas "certinhas" - e quem o é?

Os Gatos, o livro de Patricia Highsmith tem três histórias (e que histórias) protagonizadas por felinos, três poemas (e que poemas) e acaba com um ensaio (Sobre Gatos e Estilos de Vida) simples, divertido e elucidativo. Dois trechinhos e um poema.


"Se me pedissem para completar a frase: "Eu gosto de gatos porque...", duvido que ganhasse algum prêmio, mas sei o que gosto neles e por quê. Gosto de gatos porque eles são elegantes e silenciosos, e têm efeito decorativo: uns leõezinhos razoavelmente dóceis andando pela casa."

"Os gatos escondem um senso de travessura por trás da expressão serena. Já vi ambos os meus gatos procurarem o colo de um visitante que é alérgico, ou que detesta gatos abertamente."

O filhote
Tudo no mundo
foi feito para eu brincar:
Gafanhotos, pés de cadeiras, petit-pois,
Sombras, bolas de poeira e meu próprio rabo.
Há tantos cantinhos, portas entreabertas,
E forros de coisas para olhar,
Tantos lugares para ir, que fico doido
De não poder estar em todos eles ao mesmo tempo.
E então me canso.

O Gato Por Dentro, o de William Burroughs, é muito bem resumido no comentário da Harper´s Bazaar estampado na capa: "Um livro sobre o convívio com gatos pôs Burroughs em contato com seu próprio eu." É isso mesmo. E tudo em textos curtos e encantadores de tão intimistas e confessionais. Trechinhos:

"Nos últimos anos, tornei-me um dedicado amante de gatos, e agor reconheço a criatura claramente como um espírito felino, um Familiar."

"O gato não oferece serviços. Ele se oferece. Claro que ele quer carinho e abrigo. O amor não é de graça. Como todas as criaturas puras, os gatos são pragmáticos."

"Há quinze anos sonhei que tinha pego um gato branco com linha e anzol. Por algum motivo, estava prestes a rejeitar a criatura e jogá-la de volta, mas ela começou a se esfregar contra mim e a miar de um jeito comovente."

"Muito mais tarde eu descobriria que fui escalado para o papel do Guardião, para criar e alimentar uma criatura que é parte gato, parte humana e algo ainda imaginável, que pode resultar de uma união que não acontece há milhões de anos."



sexta-feira, 28 de junho de 2019

Caricaturas anos 60 de astros da música brasileira





O Quem é você de Maria Bethânia, 1968
Duas páginas semanais assinadas por José Cândido de Carvalho (1914-1989), jornalista e escritor autor de O Coronel e o Lobisomem. Assim era a seção Quem é Você, da revista O Cruzeiro. Começou em meados de 1967 e durou até praticamente o fim do ano seguinte, 80 edições da revista. São perfis de atores, cantores, escritores, políticos: enfim, os mais destacados daqueles tempos. Os perfis são excelentes, mas o que vai ser destacado aqui são as charges que os acompanhavam. A página dupla ((layout ao lado) abria com uma foto do entrevistado, depois uma charge dele e fotos pequenas das pessoas citadas na conversa. A maioria das charges são assinadas por Appe (1920-2006), que era o ilustrador de O Cruzeiro e algumas não são assinadas.

Aqui a primeira parte, só com os astros da música brasileira em 1967/68. Dos veteranos Vicente Celestino e Pixinguinha aos "novatos" Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia, incluindo Tom Jobim e  Elizeth Cardoso. Há um "Quem é Você" com Edu Lobo, mas sem charge, por isso ficou de fora. E o único "gringo" é o francês Pierre Barrouh, incluído aqui.
E na ordem em quem saíram na seção Quem é Você. No próximo post, só os atores. 


Chico Buarque, 1967

Nara Leão, 1967
Elis Regina, 1967

Vicente Celestino, 1967
Pixinguinha, 1967

Tom Jobim, 1967



Juca Chaves, 1968

Maria Bethânia, 1968

Baden Powell, 1968

Pierre Barrouh, 1968

Rosinha de Valença, 1968

Elizeth Cardoso, 1968





Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...