terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Clarice Lispector: Meu Natal



Clarice Lispector com o marido e filhos no Natal de 1956, EUA. Do livro Fotobiografia

Esta crônica natalina encerra a coluna de Clarice Lispector no JB em 23 dezembro de 1968

                                                    Meu Natal
Como as crianças eram pequenas e não conseguiriam se manter acordadas para uma ceia, ficou como hábito que o Natal seria comemorado não à meia-noite, mas sim no almoço do dia seguinte. Depois os meninos cresceram mas o hábito ficou. É no dia 25 pela manhã que vêm os presentes.

Pelo fato da ceia de Natal ser no dia 25, eu fiquei sempre livre na noite de 24 de dezembro. Mas há três ou quatro anos tenho um compromisso sagrado para noite de 24.

É que, falando com uma moça que ainda não era minha amiga mas hoje é, e muito cara, perguntei-lhe o que iria fazer na noite de Natal, com quem ia passar. Ela respondeu simplesmente: o que tenho feito todos os anos: tomo umas pílulas que me fazem dormir 48 horas. Surpreendi-me, assustada, perguntei-lhe por quê. É que o tempo de Natal lhe era muito doloroso, pois perdera pai e mãe, se não me engano perto de um Natal e não suportava passá-lo sem eles. Fiz-lhe antes ver o perigo de tais pílulas: podia, em vez de 48 horas, dormir para sempre.

E tive uma ideia: daquele Natal em diante, nós passaríamos parte da noite de 24 juntas, jantando num restaurante. Encontrar-nos-íamos às oito e pouca da noite, ela veria como os restaurantes estão cheio de pessoas que não têm lar ou ambiente de lar para passar o Natal e o celebram alegremente na rua. Depois do jantar, ela me deixa em casa com o seu carro, e vai para casa buscar a tia para irem à Misssa do Galo. Nós combinamos que cada uma paga a sua parte no jantar e que trocaremos presentes: o presente é a presença de uma para a outra.

Mas houve um Natal em que minha amiga quebrou a combinação e, sabendo-me não religiosa, deu-me um missal. Abri-o, e nele ela escrevera: reze por mim.

No ano seguinte, em setembro, houve o incêndio em meu quarto, incêndio que me atingiu tão gravemente que fiquei alguns dias entre vida e morte. Meu quarto foi inteiramente queimado: o estuque das paredes e do teto caiu, os móveis foram reduzidos a pó, e os livros também.

Não tenho explicar o que aconteceu: tudo se queimou, mas o missal ficou intato, apenas com um leve chamuscado na capa.
                              Jornal do Brasil, 21 de dezembro de 1968

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Sombras de Clarice Lispector no dia de seus 99 anos




Hoje, 10 de dezembro, seria o dia dos 99 anos de Clarice Lispector. E ontem completou 42 de sua morte. Fui procurar uma foto dela não tão conhecida para postar, encontrei várias, mas uma permaneceu comigo, justo a mais "obscura" delas. É essa aí, repleta de sombras e escuros que mais escondem do que revelam, bem como a vida da escritora permanece tantos anos e biografias depois. Sim, é Clarice com quase 21 anos, terceiranista de direito com quatro de seus colegas de faculdade na foto publicada em outubro de 1941.

"Saia xadrezinha, blusa gola rolê e manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço": foi assim que descrevi quando encontrei a foto. Foi lá por 2002 quando passava tardes e tardes nas Biblioteca Mario de Andrade, às voltas com pesquisas que inventava e topei com uma coleção de exemplares de Diretrizes, jornal de Samuel Wainer lá no final dos anos 1930, começo dos 40.
Os exemplares amarelados e amarrados com barbante não deixavam dúvidas: há muito tempo não eram folheados e, quando abertos, se desfaziam nas dobraduras, deixando lascas de papel sobre a mesa. Eu usava luvas plásticas, não podia xerocar e só copiar a lápis. Máquina digital ainda era coisa rara, pelo menos pra mim.

Bom, certo dia topei com a matéria “Os Estudantes Brasileiros e a Literatura Universal” (http://viledesm.blogspot.com/2011/12/clarice-uma-arqueologia-2-primeira.html) e, para minha surpresa, uma das entrevistadas era Clarice Lispector  - é considerada uma de suas primeiras entrevistas publicadas. E essa foto estava lá. Só a revi desse jeito nada revelador quando a coleção digitalizada de Diretrizes entrou na hemeroteca da Biblioteca Nacional. Fico olhando o retrato e imaginando de acordo com minha descrição: "Saia xadrezinha, blusa gola rolê e manga comprida, bolsa tipo carteira embaixo do braço":

E aqui, conto com mais detalhes como foi a "descoberta" da entrevista e foto



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Os bastidores de uma capa histórica

Capa: Rubinho do Zimbo Trio, Jair Rodrigues, Nara Leão, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Gilberto Gil, Toquinho, Caetano Veloso e Magro do MPB4.
Na segunda, Elis Regina com o grupo
Fotos: David Drew Zingg
É uma bela capa essa da edição oito, novembro 1966, da revista Realidade. Tem a assinatura de David Drew Zingg e foi tirada no dia seguinte da final do Festival da Record. Nara Leão é a única mulher entre oito varões, todos promessas da música brasileira (Os Novos Donos do Samba). E por que Elis Regina não está na capa? Nada de rivalidade entre ela e Nara: Elis simplesmente chegou alguns minutos depois de Zingg fazer o clique. Ela aparece na reportagem sim em uma bela foto com várias cantoras: Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Maria Bethânia... E num retrato raro publicado na recente fotobiografia de Chico Buarque (Revela-te, Chico) há outra versão da foto de grupo, com Elis e sem Nara. Abaixo, os bastidores da capa histórica, a partir de uma matéria na edição de primeiro aniversário da revista com a "História das doze capas

                                      Elis Regina dormiu demais
Marcar encontro com artista é mais ou menos assim:
- Te espero amanhã entre 4 ou 5 horas, está bem?, diz o fotógrafo.
O artista concorda e chega às 7.
Para a capa de novembro, dois fotógrafos repórteres e o fotógrafo David Drew Zingg manobraram durante dois dias para convencer dez artistas da música popular brasileira a se encontrarem, na mesma hora, no estúdio fotográfico da revista. E a hora, para um dos artistas, principalmente, era das mais ingratas: 11 da manhã. Das 11 e 30 em diante eles começaram a chegar, um por um. As duas da tarde a foto foi batida. Era o último dia para se mandar a capa para a gráfica e o filme foi imediatamente revelado. Minutos depois das 14 horas chegou Elis Regina: tinha perdido a hora e a desculpa era muito boa, pois na véspera tinha participado do Festival de Música Popular Brasileira da Televisão Record. Na foto da capa, que saiu em 485.700 exemplares, de Realidade de novembro, pode-se ver, de cigarro na mão direita, Chico Buarque de Holanda, com cara de quem não estava gostando da brincadeira. Chico - um dos grandes vencedores do Festival da véspera - ainda não havia dormido. Um detalhe: Pelé quase foi a capa de novo em novembro"

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...