segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um perfil escrito por Antônio Maria para celebrar o dia dos 110 anos de Aracy de Almeida


19 de agosto: o dia que seria o dos 110 anos de Aracy de Almeida. E Aracy é uma paixão: as canções, o jeitão, as tiradas, as histórias.

Esse perfil escrito por Antônio Maria (1921-1964) retrata Aracy ali pelos 40 anos (ela se foi em 1988). As conversas com os amigos, os bares:  É uma preciosidade e foi publicado na revista Manchete em 1953. Vai aqui como um carinho em Aracy de Almeida. 

Aracy por Antônio Maria

Filha de pastor protestante, sabe de cor alguns trechos da Bíblia. Numa mesa de bar, em pausa de conversa, quando menos se espera, lá vem a tirada: "Vendo, então, Jacob, que havia mantimento, no Egito, disse a seus filhos - "Por que estais olhando uns para os outros?". E reforça para que não duvidem da citação: "Isto é do livro de Gênessis, capítulo 42". Em menina, quando lhe pediram para cantar na igreja, fez apenas esta pergunta: "e dinheirinho, como é?". Gosta imensamente de três coisas: pintura, tango argentino e cinema. Seu pintor preferido é Clóvis Graciano, cujos quadros estão em todas paredes de sua casa, em São Francisco Xavier. Morre de amores por quatro ou cinco amigos e, ao seu lado, sente o maior desprezo pelo resto da humanidade. Se entra num bar e os surpreende com a namorada, a moça pode ser um anjo saído do Sacré Coeur, Aracy fecha a cara e antes do boa noite ou de como vai, grita da porta: "Temos conversado. Enquanto você estiver com essas vigaristas, não fale comigo". Em São Paulo, numa época de ternura com Mauricio Barroso, encontrou-o, certa vez, num bar com uma moça da sociedade. Meio sem jeito, temendo os ciúmes de Aracy, Mauricio disse somente "Alô, Aracy"... naquela hora, num grito do coração, celebrizou esta frase: "Não sou mulher de Alô!". Quando gosta do próximo, é de uma generosidade nunca vista. Este cronista, se não soubesse evitar seus rasgos de prodigalidade, seria dono, hoje, de todos os quadros de sua casa, máquinas de escrever e dezenas de isqueiros. Guarda, porém, algumas de suas fotografias, com dedicatórias assim: "Ao meu poeta, com o bem querer da infeliz Aracy de Almeida". Num chaveiro de ouro, presente de aniversário, mandou gravar: "Maria, se eu morresse amanhã, deixaria esta lembrança para você". Não é bonita, sabe disso e não luta contra isso. Não usa, no rosto, baton, rouge, qualquer coisa que não seja água e sabão. Ultimamente corta o cabelo de um jeito que a torna muito parecida com Castro Alves. Seus vestidos são simples, mas muito de boa qualidade. Orgulha-se da beleza do seu busto, e quando surge qualquer dúvida, não faz a menor questão de exibi-lo, esteja onde estiver. Entende, tanto quanto um cínico, de achaques e doenças. Está a par de todos os remédios e repete fórmulas inteirinhas, com os nomes intrincados das drogas e as dosagens decimais de cada um. Gasta por mês dois mil cruzeiros num exame médico rigorosíssimo. À noite, anuncia na mesa do bar: "A titia, hoje abriu a máquina e fez uma revisão geral. Não está vazando, nem queimando óleo". Bebe uísque puro, com gelo. Depois do segundo, fica muito terna e diz umas coisas de sua alma, que surpreendem pela doçura. Só anda de automóvel, mas não pensa em comprar o seu carro. Serve-se do táxi do Inglês (de São Francisco Xavier), a quem paga de 500 a 600 cruzeiros por dia. É uma verdadeira fábrica de gíria e não conversa meia hora, sem dizer matusquela, mincho, argolo, vivaldina (em relação a ela mesma - pessoa esperta, viva), alancatréa, de araque, etc. É uma esplêndida cozinheira, sendo de sua especialidade um feijão que ela chama de porôto, três maneiras de preparar galinha e umas empadas de camarão, cuja massa é um segredo de morte. Aos domingos, depois do futebol, vou a sua casa, onde me esperam: um banho quente, um jantar, uma cama com um ventilador ligado em cima e uma vitrola tocando tangos. Quando telefonam, ou chega gente, diz que não estou e fica falando "meu Maria, coitado, precisa descansar, porque ele é doido e trabalha muito". Em casa, usa os trajes mais estranhos e engraçados. É comum a gente encontrá-la com um calção e uma camisa sem manga do companheiro, um boné na cabeça, sapatos de tênis.

Atualmente, Aracy está em São Paulo. Deixou o rádio carioca e, sem dar entrevistas (é contra qualquer fantasia publicitária, gostando de valer pelo que é) foi ser exclusiva da Rádio Record. Confessa que está cansada de cantar, embora esteja cantando melhor do que nunca. Faz de cada música um caso pessoal e entrega-se às canções do seu repertório como quem se dá a um destino. Não sabe chorar e não se lembra de quando chorou pela última vez. Mas, a quota de amargura que traz no coração, extravasa nos versos tristes de Noel: "quem é que já sofreu mais do que eu? Quem é que já me viu chorar? Sofrer foi o prazer que Deus me deu"... e vai por aí, sem saber para onde, ao frio da noite, na espera de cada sol, quando o sono chega, dá-lhe a mão e a leva para casa.


Um perfil escrito por Antônio Maria para celebrar o dia dos 110 anos de Aracy de Almeida

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