Autoajuda é algo que não me atrai - tanto que nunca lembro como se escreve, se leva hífen. Adoro ler sobre experiências das pessoas contadas de maneira assim como se aquilo nem tivesse ocorrido com elas e não estivessem querendo passar nada. E quanto mais velhas elas estiverem maior é meu interesse. Hoje me apareceu - no sentido de aparição mesmo - este texto de Somerset Maugham. Ele escreveu dois dos melhores livros que li - Servidão Humana e O Fio da Navalha - e sempre presto atenção quando topo com seu nome. Esse O que a vida me ensinou é divertido e profundo, lê-lo é como se fosse uma visita ao velho escritor. Foi escrito em 1963, quando ele tinha 87 anos, dois anos antes de sua morte, no final de 1965, na Riviera Francesa de que ele fala aqui.
Quando o leitor tiver a
minha idade descobrirá que, das seis horas da tarde em diante, a vida começa a
se tornar um pouco mais difícil. Mas, se você tomar um uísque a esta hora, a
noite será mais fácil de enfrentar.
Escrevi meu primeiro
romance, Liza de Lambeth (O Pecado de Liza), à noite, no período em que frequentava a escola de
medicina. Recomendo vivamente o exercício da medicina como preparação básica à
carreira literária. Quando as pessoas vão ao hospital ficam, em geral, confusas
e temerosas. Podemos vê-las sem suas máscaras. Podemos ver a vida em toda a sua
crueza.
Só estive na Rússia uma vez,
em 1918. Era um agente britânico em Petrogrado e a revolução marchava a passos
largos. Nunca mais voltei, mas há poucos meses, por uma razão misteriosa,
recebi meu primeiro cheque, por direitos autorais, vindo da Rússia. Sei que lá
traduziram minhas obras, juntamente com a de outros autores, durante anos e
anos, sem nunca pagarem os direitos. Subitamente, sem explicações, enviam-me um
cheque, por uma peça teatral que mal me lembro de ter escrito. Os russos são
difíceis de entender.
Recebo muitas visitas em
minha velhice. Jean Cocteau, bom amigo, vem frequentemente. Adlai Stevenson
esteve aqui. Do mesmo modo Cecil
Beaton, Marc Chagall, S. J. Pereleman, Art Buchwald e Christoper Isherwood.
Um dos últimos visitantes
não era famoso, mas causou-me uma grande impressão. Era um marinheiro da Sexta Esquadra
Americana. Aparentava ser um rapaz correto e inteligente. Descobrimos, depois
de ter saído, que levara todas as canetas do meu escritório, enquanto eu
mostrava a casa. Cerca de um mês depois, escreveu-me uma agradável carta,
agradecendo-me a hospitalidade. Terminava, dizendo ter-me escrito com uma das
canetas que levara.
Na minha idade, ninguém se
irrita com um incidente desta natureza. Na realidade, considerei-o de uma
malícia encantadora. Rio sempre ao contar a história. O rapaz tinha um
maravilhoso senso de ironia.
Gosto de viajar, apesar de
velho. A América é muito cansativa para mim. Gosto de ir à Alemanha, a
Baireuth, ouvir o “Anel dos Niebelungen”, de Wagner.
Tenho muita dificuldade em
lidar com jornalistas. Não faz muito tempo, um repórter chegou aqui, vindo de
Londres. Disse que desejava entrevistar-me e que na sua pasta tinha todas as
informações de que precisava, sobre minha formação. Perguntei-lhe se tinha um
exemplar do meu necrológio. Isto causou-lhe espanto. Prometi-lhe, porém, uma
excelente entrevista, se me deixasse ler meu necrológio. Ele o tinha consigo
realmente e deu-mo para ler. Achei-o um pouco frio e indaguei se poderia
dar-lhe um pouco de calor. Quando concordou, concedi-lhe a entrevista.
A vizinhança de Cap Ferrat
mudou completamente. Quando vim para cá só havia 30 casas no Cap. Agora existem
duzentas. A área desenvolveu-se tanto que organizou-se um sindicato de ladrões.
Logo depois da guerra, estes
homens, os ladroões das “villas”, começaram a rondar e avisaram que se desse
uma contribuição anual, minha casa não seria tocada. Pareceu-me razoável a
proposta. Pago-lhes, pois, todos os anos. Contudo, um dos meus vizinhos
expulsou-os quando vieram ter com ele. Nas férias seguintes não só furtaram sua
propriedade, mas, vindo em carroções, limparam-no completamente. Vez por outra,
deixam bilhetes nas estradas, para avisar-me de que estão por perto. Devo dizer
que mantiveram a palavra. Negócio é negócio.
Tenho receio de que o
problema dos jovens, hoje, se prenda ao fato de se tomarem muito a sério. Uma
pessoa com vinte ou trinta anos não deve se levar muito a sério. Aos quarenta
anos, talvez. Mais provavelmente, aos cinquenta. Não estou bem certo. Tenho
oitenta e sete anos e não sei se já me tomei a sério alguma vez na vida.
Quando moços, não podemos
permitir dizer tais coisas. O leitor pode inferir daí que a idade nos traz
muitas vantagens. Na minha juventude nunca toleraria que surrupiassem as
canetas ou que ladrões exigissem remuneração.
Mas, uma atitude serena em face destes aspectos do comportamento humano,
é um dos prazeres da velhice.
Significa muito estar livre
das cadeias do egoísmo: ciúme, inveja, inquietude, sofreguidão, tudo isso que
distorce a visão da realidade. Agora que as opiniões demasiadamente pessoais
estão virtualmente extintas, encontro prazer simplesmente em olhar em torno e
sorrir um pouco da condição humana. Francamente, às vezes fico pensando com
pude viver tanto tempo sem as recompensas de minha idade.
Publicado no jornal Diário Carioca, em 1963
2 comentários:
Que delícia!
maravilhoso
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