quarta-feira, 1 de outubro de 2014

santíssima (família) trindade

Domingo vi no twitter uma foto (ao lado) que o Pedro Alexandre Sanches tirou da Raquel Trindade, 78 anos, no encontro de intelectuais que apoiam a candidatura Dilma. Olha a Raquel, pensei. E fiquei com aquela mulher incrível na cabeça. Eu a conheci há oito anos. Foi uma matéria para o primeiro número da FFW Mag!. Abaixo, a saga de uma família de raízes africanas que faz da paixão pela arte o motor de sua existência, os Trindade. E vai pro saudoso Ailton Pimentel, que também era negro, editava a revista e me chamou para escrever essa matéria que deixou belas lembranças.

                                     santíssima (família) trindade

Poesia, dança, música, artes plásticas e muitas outras formas de expressão compõem, de geração em geração, a saga de uma família de raízes africanas radicada em São Paulo, que faz da paixão pela arte o motor de sua existência.


Raquel entre os netos Manuel e Zinho. Foto Bob Wolfenson
Quando criança, o agora rapper MC Zinho Trindade ficava “zoado” com a quantidade de pessoas entrando e saindo de sua casa. Era um povo alegre que gostava de música, dança e muita festa, algo bem diferente da calmaria nas residências vizinhas. Foi assim que Zinho começou a tomar consciência de que nascera numa família de artistas – e a descobrir, aos poucos, um baú de preciosidades. “Sou negro, meus avós foram queimados pelo sol da África/ minh’alma recebeu o batismo dos tambores atabaques, gonguês e agogôs”. É com orgulho que Solano Trindade, o bisavô de Zinho, deixou registrada em versos sua descendência. Poeta, pintor, teatrólogo, ator e folclorista, ele dedicou a maior parte de sua vida a batalhar pela cultura popular. Nascido em Recife, em 1908, foi um dos maiores animadores culturais de seu tempo, como provou a Frente Negra Pernambucana, fundada por ele em 1930, quando publicou seus primeiros poemas. A militância nunca mais parou e estendeu-se para outros estados nas temporadas em que morou em Belo Horizonte, em Minas, e em Pelotas, no Rio Grande do Sul.

“Papai foi criado ouvindo histórias de mula-sem-cabeça e de saci e da literatura de cordel e assistindo nas ruas ao maracatu e as outras danças populares”, contra outra integrante do clã, Raquel Trindade. Artista plástica, coreógrafa e ialorixá de candomblé, ela herdou de Solano o amor pela cultura negra e pelas tradições populares e é quem mantém o trabalho de resgatar as danças, a religiosidade e os ritmos afro-brasileiros.

Solano Trindade
                                                     DE RECIFE PARA O MUNDO

Na memória de Raquel está bem vivo o dia em que ela e a mãe, Margarida, a irmã e uma amiga deixaram Recife, em plena Segunda Guerra Mundial, quando os navios estavam indo a pique, para encontrar Solano Trindade no Rio de Janeiro. A única pista que tinham era o bar Vermelhinho, famoso na década de 50 por ser ponto de encontro de artistas, políticos e intelectuais da época – e que ele frequentava todos os dias. Ao desembarcar, Margarida deixou as crianças no navio e foi até o bar, onde teve notícias do marido pelo ator Grande Otelo. Logo a família Trindade estava reunida outra vez, morando no subúrbio do Rio, principalmente num barraco improvisado na Gamboa e depois numa casa em Duque de Caxias.

A mãe era presbiteriana; o pai, comunista – e a casa, bem peculiar: “Num caixote de cebolas havia O Capital, de Karl Marx, ao lado da Bíblia”, relembra Raquel. Na casa dos Trindade funcionava a célula Tiradentes do Partido Comunista, sempre com muitos operários e camponeses. “Apesar de presbiteriana, minha mãe servia cafezinho para os comunistas, ensinava dança para eles. Era uma mulher muito inteligente, muito avançada”.
Solano foi preso pelo governo Dutra, e a temporada no cárcere “não diminiuiu em nada seu amor pela arte e pela vida”, conta Raquel. Sem nunca parar de escrever seus poemas, fundou vários grupos de teatro. Um dos principais foi o Teatro Popular Brasileiro, em 1950, que fazia uma leitura nova de danças como maracatu e bumba-meu-boi, com ricas e coloridas coreografias apresentadas por operários e gente do povo.

Raquel faz questão de chamar a atenção para a frase que era chave no trabalho de seu pai: “Pesquisar nas fontes de origem e devolver ao povo em forma de arte”. Em 1955, o grupo viajou para a Europa como atração de um Festival da Juventude, com artistas do mundo todo. A dançarina Raquel tinha então 19 anos e foi com o pai. No navio, conheceu o primeiro marido (depois dele, viriam mais sete), pai de Vitor de Trindade, hoje percussionista em atividade na Alemanha. Raquel tem mais duas filhas: Regina, a única da família que não se dedica às artes, e Dadá, que canta, dança, toca e escreve nos Estados Unidos.


                                                 RITMO E POESIA

Perto de completar 70 anos, Raquel mora no Embu, a cerca de uma hora do centro de São Paulo, numa casa bem simples, repleta de livros e quadros. Ao lado, funciona o Teatro Popular Solano Trindade, que ela fundou em 1975, um ano após a morte do pai. O que no princípio era um barracão está se transformando num prédio amplo, moderno, ainda não totalmente concluído. Durante a semana, o lugar abriga aulas e, no fim de semana, os ensaios do grupo de danças folclóricas, formado por 30 pessoas.

Os netos, Manuel e Zinho, filhos do percussionista Vitor, também são músicos. Zinho, 23 anos, optou pelos caminhos do hip hop. Seu estilo é o freestyle, em que a rima é feita na hora, e o primeiro CD, Zinho Trindade Resgatando as Raízes, vai misturar maracatu, coco e folclore com hip hop. Alguns poemas do bisavô Solano vão entrar na rima – e a atualidade dos versos impressiona o rapper: “Eram muito avançados para a época. Um deles, escrito nos anos 50, já fala nos manos. Tem outro chamado Salve, que é a saudação de hoje em linguagem de ruas. Tudo numa linguagem popular, numa valorização da periferia”. Manuel, 21 anos, começou nas pegadas do pai percussionista, se encantou pela bateria e também mistura ritmos folclóricos em seu trabalho. Ele e o pai preparam um show com os poemas de Solano Trindade, que Vitor vem musicando. No CD Airá Otá, que gravou em parceria com Caçapava em 2001, Vitor já incluiu três: Rio, A Velhinha do Angu e Zumbi.

Para vários críticos, Solano é o criador da poesia assumidamente negra no país. Em versos repletos de musicalidade e ritmo, ele cantava o amor, as mulheres, as cidades onde viveu e o cotidiano da família, mas também falava do negro e das más condições da vida do povo, entre outros temas sociais. “Ainda são versos muito atuais em sua defesa das tradições culturais e em sua luta por um mundo melhor”, diz Raquel. Hoje restrita a um público especializado, a poesia de Solano Trindade ganhou mais exposição nos anos 70, quando foram musicadas Mulher Barriguda e Tem Gente com Fome, gravados pelo grupo Secos e Molhados e por seu líder, Ney Matogrosso, respectivamente.


Tem Gente com Fome: Rev. Semana, 1954


                                                      CONTINUIDADE

A ligação da família Trindade com o Embu começou nos últimos anos da década de 50. A convite do escultor Assis, Solano foi conhecer a cidade e se instalou com seu grupo de 30 pessoas no barracão do amigo. Nos fins de semana, cantavam e dançavam pelas ruas do lugar e começaram a atrair um público cada vez maior. Em 1959, Solano e o grupo participaram de Gimba, peça de Gianfrancesco Guarnieri montada no TBC e estrelada por Maria Della Costa, que fazia o papel de uma mulata. Apaixonado por Embu, Solano instalou-se na cidade em 1961, e sua casa tornou-se um núcleo artístico. Em 1968, Assis e Solano fundaram a feira de artesanato que, com o tempo, se transformou numa espécie de cartão de visitas da cidade.

Separado de Margarida, Solano teve mais duas mulheres. Terapeuta ocupacional, Margarida continuou no Rio de Janeiro e trabalhou 25 anos com a legendária Nise da Silveira, no Museu do Insconsciente, ensinando aos doentes suas danças do Nordeste. Volta e meia vinha visitar a família no Embu. Quando Solano estava doente e em dificuldades financeiras, ela veio buscá-lo e o levou para uma clínica no Rio, onde ele faleceu.
“Minha forma de arte hoje é a pintura”, diz Raquel que, depois de um acidente no qual sofreu muitas queimaduras, descobriu as telas e as tintas. Praticamente na mesma época veio o candomblé. É ialorixá (“a mãe que zela pela energia da cabeça”) e faz palestras sobre sincretismo religioso.

Nos anos 70. Raquel foi carnavalesca. O primeiro desfile foi em 1976 para a paulistana Vai-Vai, sua escola de coração, que homenageou seu pai com o enredo Solano Trindade, Moleque do Recife. Vieram outros carnavais e uma passagem marcante pela Quilombo, escola de samba carioca. Ela fala com entusiasmo desses tempos. Mas o que a deixa mais animada é pressentir a continuação de seu trabalho de valorização da cultura popular por seus filhos e netos. Por isso, não se incomodou nem um pouco quando o neto Zinho enveredou pelos caminhos do hip hop: “É uma maneira de essa juventude se expressar. É arte, é evolução, é o futuro”, diz ela, com um brilho de orgulho nos olhos que já foram pretos e cada vez estão mais claros, uma característica das mulheres de sua família tão especial.
                                       
                                        Revista FFW Mag! nº 1 2006


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