sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O texto que Miúcha não sabia se sabia escrever

Contracapa do encarte do CD Rosa Amarela


Está lá o texto, letrinhas miúdas, em duas páginas do encarte de Rosa Amarela, o disco que Miúcha gravou para o Japão e foi lançado aqui em 1999. Seria a apresentação do CD, que ela inventou de escrever numa máquina elétrica e acabou saindo muito mais, cheio de revelações sobre ela, os cantos da infância, a primeira vez no Japão, sobre a Música brasileira a cada linha. E que fica mais revelador ainda após a morte dela, ontem, 27 de dezembro, aos 81 anos. A partir de agora é tudo de Miúcha, foi ela quem escreveu.


Gostei tanto desse disco que está sendo difícil me desprender dele. Deve ser por isso que há mais de um mês venho tentando inutilmente encontrar as palavras exatas para essa apresentação, essa despedida, sei lá. É mais um filho que vai morar fora. Fiquei de mandar esse texto até amanhã, acho que vou desistir e telefono para Paulo César Pinheiro, amigo e poeta, na esperança de que ele assuma por mim essa tarefa que eu mesma inventei. Mas ele está dormindo e eu volto à máquina elétrica - acreditam? - batendo na porta fechada de qualquer inspiração. Afinal, um disco não se explica, se escuta, se sente.

Mas certamente ele não existiria sem a colaboração de vários pais, de um lado e de outro do oceano. Surpreendentemente, foi uma gravadora japonesa, a Omagatoki, que me dando total liberdade na escolha do repertório, abriu caminho para um disco tão brasileiro. Para isso contei também com a sensibilidade de Kazuo Yoshida, meu produtor, com quem acabei desenvolvendo uma perfeita sintonia telepática, um clima de confiança e respeiro mútuos. Com Monica Ramos no elenco de apoio, ele convocou músicos maravilhosos como Maurício Carrilho e Jota Moraes para escrever os arranjos. Também reuniu, mais uma vez, o "Buffalo Trio" (Luiz Claudio Ramos, Franklin da flauta e eu) em Santo Amaro, parceria dos dois com Aldir Blanc. Gosto tanto desse choro que apesar de já ter gravado em 1980, achei que agora poderíamos interpretá-lo melhor, como lembrança de nossa primeira viagem ao Japão, em 1996, onde e quando tudo começou.

No Sabbath, Tóquio, em setembro 1996
Nesse ponto do texto que não sei se consigo escrever, aparece a figura de Keiko. Já tinham me convidado algumas vezes para ir ao Japão, mas foi Keiko quem me levou pela primeira vez, para uma temporada em seu "Sabbath", em Tóquio e em Kobe (no final, link para esse show). A gentileza de Keiko, Taichi, sua família e equipe, somada ao imenso carinho que recebi do público japonês, fizeram dessa viagem uma das melhores experiências dos últimos anos. Não poderia imaginar que a essa altura da vida, num país aparentemente tão diferente, eu ainda fosse fazer tantos amigos. Eles me ensinaram o inesperado senso de humor dos japoneses, seu jeito de ser. Sua comida, sua religião, sua arte. A língua, me desculpem, é difícil demais, mas continuo me esforçando. Essa experiência toda foi tão poderosa, que em menos de seis meses depois de minha estréia em Tóquio, o disco estava pronto no Brasil. Acho que foi a melhor maneira que encontrei para agradecer tudo de bom que recebi.

P.S. Paulinho Pinheiro não acorda e eu, que não conseguia escrever nada, continuo cheia de assunto, batucando essa máquina elétrica - já acreditaram? - talvez para ganhar tempo, para ficar viajando nessas lembranças todas que o disco traz. Não foi bem assim que tudo começou. Lembro que me fiz bem séria, me compenetrei muito e comecei a pensar em vários projetos, alguns bem interessantes. Mas, pairava uma sensação de estar forçando a barra, de querer moldar alguma coisa diferente, um antiprojeto, talvez. E tratei de ficar muito quieta, tentando sintonizar aquela atenção desligada que nos faz perceber melhor as coisas mais sutis, e comecei a ouvir algumas canções que já tinham vida própria dentro de mim, que eu já tinha cantado muito, mas por algum motivo não tinha gravado.

Lembrei dos ensaios com Tom Jobim, das tardes douradas na beira do piano, deixando surgir como pássaros, as belíssimas canções de Custódio Mesquita, Bororó, Ary Barroso. De Ary gravei agora Por Causa Desta Cabocla, que me faz pensar em Rafael Rabello e no disco que planejávamos gravar e que nunca aconteceu. Eram noites inteiras de ensaio, então. Noites estreladas, nos cantando, Rafael tocando e os dois chorando copiosamente. Wai-wai. Essas músicas, essas coisas todas ainda me fazem chorar, Rafa.

A Mesma Rosa Amarela tem um caso antigo comigo. Não sei quando e onde nos conhecemos, acho que ela sempre me encantou e eu sempre a cantei. Há muitos anos, me apresentando em Olinda, tive a alegria de reconhecer Capiba, seu autor, na plateia. Galante, me autografou carinhos em seus discos e garantiu que ninguém interpretava A Mesma Rosa Amarela como eu. Fiquei toda prosa e feliz e adorei gravar essa música tão simples e tão terna, que permaneceu fresca e perfumada dentro de mim para florescer agora e dar nome a esse disco.

Quem já conhece um pouco de música brasileira vai notar que, com exceção de De Você Eu Gosto, do Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, cuja gravação de Silvinha Telles num velho vinil do começo dos anos 60 guardo até hoje, não gravei nenhum clássico do repertório da bossa-nova, que tem sido tão bem difundido por seus próprios criadores. Procurei dar um abraço maior nessa amplidão que é a nossa música popular, dos anos 30 até agora, com a recentíssima Assentamento, de Chico Buarque, dedicada ao Movimento dos Sem-Terra.
Entre as músicas já cantadas e amadas, inclui também nesse disco João e Maria (Sivuca - Chico), Choro Bandido (Edu Lobo - Chico Buarque) e Só o Tempo (Paulinho da Viola).

Pressentimento (Elton Medeiros - Hermínio Bello de Carvalho) me faz lembrar de Babá, das cantorias na rua Buri, meus irmãos e eu, ainda crianças, imitando as vozes das pastoras de Ataulfo Alves. Valsa de Uma Cidade me faz sonhar com um Rio de Janeiro mais tranquilo e feliz, leve como uma música da Metro.Doce de Coco (Jacob do Bandolim - Hermínio Bello de Carvalho)  é paixão antiga, namoro recente. Paixão recente (e fulminante) foi minha irmã Cristina quem captou antes: Cabrochinha, de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro (está na hora de ligar de novo para a casa dele, tomara que já tenha acordado e possa escrever um texto, esse texto, enfim, o que eu prometi entregar até amanhã). Mas como eu ia dizendo, em Cabrochinha sobra um humor muito carioca na melodia, na letra e nos maravilhosos arranjos de sopros, vários instrumentos diferentes, que um só músico, Paulo Sérgio Santos executa com tanta precisão e esperteza. Agradeço a todos os músicos que deram o melhor de si para fazer esta festa acontecer. Foi uma comemoração, e vai ver é por isso que eu não estava conseguindo escrever, descrever nada. É impossível explicar essa mágica que às vezes a música faz acontecer. Não tem explicação nem controle, aparece quando quer e eu fico muito feliz em sentir sua presença e saber que ela nos guiou.

Antonio Carlos Jobim dedicou o primeiro disco que gravamos juntos a Radamés Gnatalli, outro grande maestro brasileiro. E escreveu na contracapa do disco: "O Brazyl não conhece o Brasil." Mauricio Tapajós e Aldir Blanc usaram essa frase como refrão e inspiração para Querelas do Brasil, que encerra esse nosso CD. O Brazyl não conhece o Brasil, Mas espero que o Japão fique conhecendo um pouco melhor, E, recitando também meu Maestro Soberano, gostaria de dizer:
Esse disco é dedicado a Antonio Carlos Jobim, pelos incansáveis, vastos e imensos prestados à Música Brasileira.

          No encarte do disco Rosa Amarela, lançado aqui em 1999.

Aqui, Miúcha no show do Sabbath, Tóquio, em setembro de 1996




E aqui, Miúcha canta a "recentíssima Assentamento, de Chico Buarque, dedicada ao Movimento dos Sem-Terra"


Um comentário:

cidcancer@gmail.com disse...

Tinha visto o e-mail quando chegou. No corre-corre, leio depois, pensei, e acabei lendo somente agora, nesta manhã de sábado 29 de dezembro.

Deve ter sido postado no TT, claro, mas também comi barriga por lá: tenho entrado pouco e perdido muito com isso.

Do que li sobre a partida de Miúcha, seguramente esta lembrança do Vilmar foi a que mais me comoveu.

Lembrou-me já ter lido à época, o que releio com o mesmo encantamento: que prosa boa a de Miúcha! E nem sabia se sabia escrever...

A postagem toda é uma beleza, da apresentação aos vídeos que nos mostraram, mais uma vez, que Miúcha era muito maior do que pudemos perceber esse tempo todo.

Valeu, Miúcha!

Obrigado, Vilmar.

cid



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