domingo, 2 de dezembro de 2018

Uma declaração de amor aos livros por Clarice Lispector

Na foto, Clarice Lispector com Tonia Carrero

O suplemento do UH

Quando penso em amor aos livros me vem logo esse texto de Clarice Lispector. Só o li muito depois que ela o escreveu, mas é daqueles que permanece. Foi publicado num suplemento de fim de ano do icônico Última Hora, o jornal de Samuel Wainer, em 18 de dezembro de 1968 (faz 50 anos daqui a alguns dias). Nele, Clarice fala de suas primeiras impressões literárias e cita um conto que escreveu depois: o absurdo Felicidade Clandestina, que abre o livro homônimo e é a maior declaração de amor aos livros que pode existir - e tem uma vilã, a menina filha de um dono de livraria. Abaixo, o texto de Clarice Lispector, como publicado em Última Hora. Ah, ela não diz o nome do último livro que cita: é Felicidade (Bliss), livro de contos de Katharine Mansfield, traduzido por Érico Verissimo, que depois viria a se tornar um dos seus grandes amigos.

               O primeiro livro de cada uma das minhas vidas
                                        Clarice Lispector

Busco em minha memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. O livro custava um cruzeiro e cinquenta centavos; estou traduzindo direito? Dizíamos mil e quinhentos. Eu lia e relia as histórias; criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo sabendo quase de cor, relê com uma excitação de primeira vez.

A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou-se o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne - essa história me fez meditar muito e imediatamente identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio, já que eu, no meio das outras crianças, era diferente com minhas pernas compridas demais de menina alta. Eu ficava esperando já com impaciência as primeiras demonstrações de que na verdade eu era um cisne que em pequeno não tem a graça do patinho seguro de si mesmo. E a história de Aladim como sua lâmpada soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível estava ao meu alcance. A idéia de um lâmpada que, esfregada, libertava o seu gênio que dizia a Aladim, ou melhor, a mim: sou teu servo, pede o que quiseres - isso me deixava em devaneio profundo. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: pede o que quiseres. Mas revelava-se que sou daqueles que têm de trabalhar duro para terem o que querem. Quando acontece.

Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado, porque era muito caro: "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato. Já contei em crônica o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei pois o livro grosso que me prometia o mundo pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e feia tornara-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de "amanhã vem em casa que eu empresto". Quando eu ia, literalmente com o coração batendo de alegria, ela me dizia: hoje não posso emprestar, venha amanhã. Ela própria não lera sequer o livro, como vim a descobrir, e este era virgem. Ah, como eu sonhava em tê-lo nas minhas mãos: era um livro caro e grosso e maravilhoso. Depois de cerca de um mês de "venha amanhã", o que eu, embora orgulhosa que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele momento mesmo me fosse emprestasse o livro. Suponho que empalideci ou corei de alegria ao pegar aquele livro. Eu, que andava aos pulos e correndo, andei devagar, segurando com as duas mãos o livro divino contra o peito magrinho de patinho feio. (Não me tornei um belo cisne, nem era patinho feio propriamente: tudo era imaginação minha). Não li o livro de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez, para não "gastar". Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.

O Lobo da Estepe, Herman Hesse
Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca de aluguel que ficava na Rua Rodrigo Silva. Sem guia, eu escolhia os livros pelo nome. E eis que escolhi um dia um livro chamado "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse. O nome me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, mas de aventura interior. E eu, que já escrevia pequenos contos desde os sete anos de idade, fui aos treze germinada por Herman Hesse e comecei em segredo a escreve um longo conto imitando-o: a aventura interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

Katherine Mansfield
Em outra vida que tive, aos quinze anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva numa livraria que me parecia ser o mundo encantado onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo presa ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima e era considerada um dos melhores escritores do mundo: Katherine Mansfield.

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