sábado, 19 de janeiro de 2013

Billie Holiday, lembranças e Murakami

Meu primeiro Billie
Sábado chuvoso. Mexo em guardados e, de repente, meus olhos se fixam em uma página de jornal. Amarelecida sim, mas nem tão velha assim: setembro 2008. E meus olhos se detiveram em um artigo sobre Billie Holiday, escrito por Haruki Murakami. O japonês é dos meus escritores preferidos e lendo (ou relendo, que devo ter lido quando publicado, apesar de não lembrar) encontro o que eu queria dizer de Billie se sobre ela escrevesse. Lembro que meu “primeiro Billie” foi um da série Gigantes do Jazz, comecinho dos 80, comprado numa banca de revistas da avenida Borges Medeiros em Porto Alegre. “A mais comovente cantora de jazz”, escrito abaixo do nome da cantora. Até então, eu conhecia Billie Holiday mais de ler do que de ouvir. Eu era novo, novinho de tudo. Me apaixonei pelo disco? Nada. Era como se ouvisse algo muito antigo que não me dissesse nada. O tempo, sábio e implacável, foi passando e não muitos anos depois me vi apaixonado por aquele disco, por todas as faixas. É que quando ouvira pela primeira vez não estava preparado. Para ser tocado por Billie Holiday é preciso ter passado por algumas dores. Nada de regra geral, mas no meu caso foi assim. E é disso que Murakami fala no texto abaixo, traduzido por Clara Allain e publicado no caderno Mais da Folha de S. Paulo em 21 de setembro de 2008, um domingo.

O Perdão de Billie
Haruki Murakami

Eu ouvia muito Billie Holiday quando era jovem e a achava comovente. Mas só fui apreciar de fato o quanto era maravilhosa mais tarde, quando estava bem mais velho. Acho que isso quer dizer que envelhecer traz, sim, algumas compensações. Nos velhos tempos, eu ouvia a música gravada por Billie na década de 1930 e no início da de 1940.

Naqueles anos, sua voz era jovem e nova, e Billie lançava uma canção após outra, a maioria relançada mais tarde pela Columbia nos EUA.

Essas canções eram repletas de imaginação e voos melódicos acrobáticos. O mundo inteiro dançava no ritmo do suingue de Billie Holiday.

Quero dizer que o planeta se mexia, de fato. Não estou exagerando. Estamos falando de magia, não simplesmente arte. O único outro músico que conheço que possuía virtuosismo tão mágico foi Charlie Parker.

O eu mais jovem não ouviu com tanta atenção as gravações posteriores de Billie Holiday, sua fase na Verve, canções que ela gravou quando as drogas tinham endurecido sua voz e corroído seu corpo.

Ou talvez, quem sabe, eu tenha mantido distância consciente delas. Eu achava suas canções daquela era, especialmente as dos anos 1950, dolorosas, opressivas, patéticas. À medida que fui passando pela casa dos 30 anos e depois dos 40, porém, me vi colocando esses discos na vitrola com frequência cada vez maior.

Sem me dar conta disso, eu estava começando a sentir desejo e necessidade, física e emocional, daquela música.

O que havia nas canções posteriores de Billie Holiday – canções que poderíamos descrever como alquebradas – que eu era cada vez mais capaz de escutar e que eu não escutaria antes? Ando pensando muito sobre isso. Por que essas canções passaram a exercer atração tão poderosa sobre mim?


“Está tudo bem”
Entendi recentemente que a resposta talvez envolva a ideia de “perdão”. Quando ouço as canções posteriores de Billie Holiday, posso senti-la abrindo os braços para abraçar os corações das muitas pessoas que magoei ao longo de minha vida e dos meus escritos, as pessoas que sofreram devido a meus muitos erros, e aproximando-as dela. “Está tudo bem”, ela canta para mim.

Deixe estar. Isso não tem nada a ver com “curar feridas” – não estou sendo curado de modo nenhum. É perdão, puro e simples.

Sei que essa interpretação da música de Billie Holiday é profundamente pessoal. Eu jamais sugeriria que ela se aplica a todos. É por isso que recomendo sua maravilhosa coleção lançada pela Columbia. Se eu tivesse que escolher uma só canção dela, seria sem dúvida alguma “When You´re Smiling”. O solo de Lester Young no meio também é um deleite, um trabalho de gênio.

“Quando você está sorrindo, o mundo inteiro sorri com você”.

E o mundo sorri, de fato. Você pode não acreditar, mas é verdade – ele fica radiante.



E aqui, a luminosa Sometimes I´m Happy, das gravações finais de Billie Holiday



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