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Recorte da capa da edição de hoje do jornal O Dia |
O primeiro tiro veio depois
da ordem de comando e quem o disparou assumiu um certo orgulho de ter iniciado
o tiroteo (em homenagem a uma tia que falava tiroteio assim). O segundo tiro,
com quase um segundo de diferença, acompanhado de um certo "por pouco não fui o
primeiro", do portador do fuzil. O terceiro tiro, assim como o quarto tiro
e o quinto tiro chegaram empatados e diante dos olhares "droga, chegamos
depois" dos que seguravam as armas. Já o sexto tiro, esse veio acompanhado
de cagaço, o primeiro em alvo humanos de um quase garoto que nunca foi muito
bem nas aulas de tiro. O sétimo tiro surgiu pelo mesmo dedo do que disparou o
primeiro, que nem era o melhor nos treinamentos, mas se caracterizava por uma
certa ousadia, pelo sangue frio. O oitavo tiro, o nono tiro e o décimo tiro floresceram
diante de um "que merda é essa" dos fardados disparadores.
O décimo primeiro tiro esse
saiu zunindo e após um "sigam atirando" da voz de comando, invejosa
dos snipers que o governador disse já estarem em ação. O décimo segundo tiro,
segundos depois, teve o sabor de segundo pro quase garoto encagaçado que
disparou o sexto. O décimo terceiro irrompeu sem destaque, quase como ato banal
por um soldado que já havia disparado três vezes. Foram também assim, regidos
pela banalidade, o décimo quarto tiro, o décimo quinto tiro e o décimo sexto
tiro. Enquanto que o décimo sexto tiro teve ecos de 17, o número do presidente
que o disparador votara. O décimo oitavo tiro chegou com gosto quase com um
tédio por ser domingo, estar de plantão e não poder ir ao parque com a namorada.
O décimo nono foi engendrado pelo melhor amigo do que disparou o décimo oitavo
e quase com a mesma intenção, só que o ódio dele pelo plantão dominical era de
não poder ir ao cinema com o namorado assistir ao filme que eles vinham adiando
há semanas. O vigésimo tiro saiu no piloto automático, no puro impulso de
cumprir ordens.
Quando o vigésimo primeiro
tiro atingiu a lataria do carro branco, o garoto por trás da arma percebeu o
buraco que se abrira, quase como uma assinatura dele. O vigésimo segundo tiro
errou o alvo e foi parar na parede atrás do carro. O vigésimo terceiro tiro
atingiu o homem que dirigia e ele soltou um "ai" horrorizado que não
chegou ao soldado que disparou. Era forte o barulho do tiroteio, parecia uma
guerra particular contra um carro branco. O vigésimo quarto tiro, o vigésimo
quinto tiro, o vigésimo sexto tiro, o vigésimo oitavo tiro e o vigésimo nono tiro
foram seguidos pelo barulho de vidros sendo estilhaçados. O trigésimo também,
só que o buraco aberto por esse foi apreciado pelos olhos do dedo que acionou o
gatilho.
O trigésimo primeiro tiro, o
trigésimo segundo tiro, o trigésimo terceiro tiro, o trigésimo quarto tiro, o
trigésimo quinto tiro: todos eles vieram seguidos de gritos, de gritos de
pavor. Antes do trigésimo sexto tiro, a voz de comando ecoou forte
"continuem atirando" e como resposta vieram o trigésimo sétimo tiro, o
trigésimo oitavo tiro e o trigésimo nono tiro. O quadragésimo tiro teve o
estampido semelhante aos outros e o atirador, o mesmo que cometera o segundo
tiro, sabia que era o de número quarenta - uma das manias dele era contar o número
de disparos, era assim nos treinamentos. Ao final dizia o número total para o
sargento e batia sempre. Era uma de suas habilidades.
O quadragésimo primeiro tiro,
o quadragésimo segundo tiro, o quadragésimo terceiro tiro, o quadragésimo
quarto tiro, o quadragésimo quinto tiro e o quadragésimo sexto tiro mal foram
percebidos pelos dedos que apertaram o gatilho. A banalidade da missão começava
a imperar. Já o quadragésimo sétimo tiro, esse foi calculado com precisão: o
atirador era bom de mira, mas para se divertir costumava atirar para o alto e
não no alvo nas aulas de tiro. Ali, diante daquele carro branco, seguiu o mesmo
método: mirava o retrovisor do lado do motorista e pá pá pá. O quadragésimo
oitavo tiro levou a assinatura de um garoto que amava Simone & Simaria e
todas as cantoras sertanejas. Gostava só das cantoras, não prestava atenção em
duplas sertanejas formadas por homens e detestava funkeiros, independente do
sexo. O quadragésimo nono tiro e o quinquagésimo tiro poderiam ter suas
assinaturas questionadas, talvez tivessem vindo pelos mesmos dedos. Talvez.
O problema dos números
ordinais é que depois de uma certa contagem eles ficam quase impronunciáveis,
Quinquagésimo não soa bem, Sexagésimo remete a sexo, septuagésimo parece desvio
de septo nasal, assim por diante. A partir daqui, os tiros serão nomeados pelo
número.
O tiro número 51 soou segundos
antes que o atirador percebesse que a porta do alvo, o carro branco, se abria.
Foi assim com o tiro número 52, com o tiro número 53 e o tiro número 54, que
quase porta já quase aberta. Os olhos do dedo que apertou o gatilho do tiro
número 55 perceberam um vulto se esgueirando pela porta dianteira do lado do
carona. E assim ocorreu também com os olhos assustados do tiro número 56 e do tiro
número 57. Já o que arquitetou o tiro número 58 viu a metade de um vulto que
parecia ser de mulher irromper diante da porta aberta. Titubeou cinco segundos
antes de apertar o gatilho que abriu mais um estilhaço no vidro traseiro do
carro branco. Uma mulher tentava sair do carro e isso perceberam os que
arremessaram o tiro número 59 e o tiro número 60, o tal sexagésimo, que lembra
sexo.
A mulher que saía do carro era
a própria imagem do desespero e com as mos na cabeça, berrava "moço,
socorre meu marido" e por muito pouco o tiro número 61 não a atingiu. O
tiro número 62 foi pro lado da porta do motorista, o segundo que atingiu o
homem. Houve uma pausa pequena nos disparos, não ordenada por voz de comando,
mas pela surpresa dos dez atiradores diante da imagem. Nesse quase minuto,
outro homem no carro foi socorrer o motorista baleado e outro nas proximidades
acercou-se também. Daí veio a ordem clara de continuar o tiroteio. O tiro
número 63 não demorou muito, diante de um certo ar de deboche de seu autor. O
tiro número 64 e o tiro número 65 vieram juntinhos, cada um pra um lado do
carro branco. O tiro número 66 irrompeu fazendo honras ao número da besta e
atingiu as costas do homem que tentava socorrer o motorista. O tiro número 67
também atingiu o alvo - o outro homem que se prestava de socorrista. O tiro
número 69 e o tiro de número 70 foram decorativos estraçalhando os vidros do
carro branco.
Antes do tiro número 71, o
disparador, que era negro, chegou a pensar em uma tia que morrera há muito
tempo, vítima de uma bala perdida. A mão do dedo que apertou o gatilho pra o
tiro número 72 tremelicava e só disparou após uma troca de olhares rapidíssima
com o autor do disparo anterior. O tiro número 73, o tiro número 74, o tiro
número 75 e o tiro número 76 também foram disparados por mãos tremelicantes e
atingiram alvos diversos - dois deles foram parar na porta que se abrira quando
a mulher saiu. O tiro número 77 nasceu sob o signo da perplexidade que merda é
essa em que fui me meter. Errou o alvo carro branco, agora já não imaculado
depois de setenta e sete tiros. Antes de apertar o gatilho pro tiro número 78, o
soldado até pensou em mirar na cabeça da mulher. Era o mais treinado, o mais
experiente do grupo, medalhas em missões de resistência e sobrevivência e não
deixar testemunhas era um dos ensinamentos. O tiro número 79 foi acompanhado
pela sensação de "tá acabando essa merda, maldito plantão de domingo"
do disparador. E daí veio o octagésimo tiro, o tiro de número 80 e não se sabe
quem foi o autor. O soldado que tinha a mania de contar não apenas os tiros que
ele disparava (foram dez ali), mas os alheios também, se perdeu (ele contou
mais de 80 tiros) e não chegou a fazer a contabilidade com o sargento no fim do
fuzilamento, que cessou sem ordem de comando para parar. Assim, como se a
missão estivesse cumprida, os alvos abatidos e logo seria hora de voltar pro
quartel e aproveitar o tédio do plantão de domingo diante da televisão ou no
papo furado com os colegas de farda.