terça-feira, 9 de abril de 2019

Oitenta tiros

Recorte da capa da edição de hoje do jornal O Dia

O primeiro tiro veio depois da ordem de comando e quem o disparou assumiu um certo orgulho de ter iniciado o tiroteo (em homenagem a uma tia que falava tiroteio assim). O segundo tiro, com quase um segundo de diferença, acompanhado de um certo "por pouco não fui o primeiro", do portador do fuzil. O terceiro tiro, assim como o quarto tiro e o quinto tiro chegaram empatados e diante dos olhares "droga, chegamos depois" dos que seguravam as armas. Já o sexto tiro, esse veio acompanhado de cagaço, o primeiro em alvo humanos de um quase garoto que nunca foi muito bem nas aulas de tiro. O sétimo tiro surgiu pelo mesmo dedo do que disparou o primeiro, que nem era o melhor nos treinamentos, mas se caracterizava por uma certa ousadia, pelo sangue frio. O oitavo tiro, o nono tiro e o décimo tiro floresceram diante de um "que merda é essa" dos fardados disparadores.

O décimo primeiro tiro esse saiu zunindo e após um "sigam atirando" da voz de comando, invejosa dos snipers que o governador disse já estarem em ação. O décimo segundo tiro, segundos depois, teve o sabor de segundo pro quase garoto encagaçado que disparou o sexto. O décimo terceiro irrompeu sem destaque, quase como ato banal por um soldado que já havia disparado três vezes. Foram também assim, regidos pela banalidade, o décimo quarto tiro, o décimo quinto tiro e o décimo sexto tiro. Enquanto que o décimo sexto tiro teve ecos de 17, o número do presidente que o disparador votara. O décimo oitavo tiro chegou com gosto quase com um tédio por ser domingo, estar de plantão e não poder ir ao parque com a namorada. O décimo nono foi engendrado pelo melhor amigo do que disparou o décimo oitavo e quase com a mesma intenção, só que o ódio dele pelo plantão dominical era de não poder ir ao cinema com o namorado assistir ao filme que eles vinham adiando há semanas. O vigésimo tiro saiu no piloto automático, no puro impulso de cumprir ordens.

Quando o vigésimo primeiro tiro atingiu a lataria do carro branco, o garoto por trás da arma percebeu o buraco que se abrira, quase como uma assinatura dele. O vigésimo segundo tiro errou o alvo e foi parar na parede atrás do carro. O vigésimo terceiro tiro atingiu o homem que dirigia e ele soltou um "ai" horrorizado que não chegou ao soldado que disparou. Era forte o barulho do tiroteio, parecia uma guerra particular contra um carro branco. O vigésimo quarto tiro, o vigésimo quinto tiro, o vigésimo sexto tiro, o vigésimo oitavo tiro e o vigésimo nono tiro foram seguidos pelo barulho de vidros sendo estilhaçados. O trigésimo também, só que o buraco aberto por esse foi apreciado pelos olhos do dedo que acionou o gatilho.

O trigésimo primeiro tiro, o trigésimo segundo tiro, o trigésimo terceiro tiro, o trigésimo quarto tiro, o trigésimo quinto tiro: todos eles vieram seguidos de gritos, de gritos de pavor. Antes do trigésimo sexto tiro, a voz de comando ecoou forte "continuem atirando" e como resposta vieram o trigésimo sétimo tiro, o trigésimo oitavo tiro e o trigésimo nono tiro. O quadragésimo tiro teve o estampido semelhante aos outros e o atirador, o mesmo que cometera o segundo tiro, sabia que era o de número quarenta - uma das manias dele era contar o número de disparos, era assim nos treinamentos. Ao final dizia o número total para o sargento e batia sempre. Era uma de suas habilidades.

O quadragésimo primeiro tiro, o quadragésimo segundo tiro, o quadragésimo terceiro tiro, o quadragésimo quarto tiro, o quadragésimo quinto tiro e o quadragésimo sexto tiro mal foram percebidos pelos dedos que apertaram o gatilho. A banalidade da missão começava a imperar. Já o quadragésimo sétimo tiro, esse foi calculado com precisão: o atirador era bom de mira, mas para se divertir costumava atirar para o alto e não no alvo nas aulas de tiro. Ali, diante daquele carro branco, seguiu o mesmo método: mirava o retrovisor do lado do motorista e pá pá pá. O quadragésimo oitavo tiro levou a assinatura de um garoto que amava Simone & Simaria e todas as cantoras sertanejas. Gostava só das cantoras, não prestava atenção em duplas sertanejas formadas por homens e detestava funkeiros, independente do sexo. O quadragésimo nono tiro e o quinquagésimo tiro poderiam ter suas assinaturas questionadas, talvez tivessem vindo pelos mesmos dedos. Talvez.

O problema dos números ordinais é que depois de uma certa contagem eles ficam quase impronunciáveis, Quinquagésimo não soa bem, Sexagésimo remete a sexo, septuagésimo parece desvio de septo nasal, assim por diante. A partir daqui, os tiros serão nomeados pelo número.

O tiro número 51 soou segundos antes que o atirador percebesse que a porta do alvo, o carro branco, se abria. Foi assim com o tiro número 52, com o tiro número 53 e o tiro número 54, que quase porta já quase aberta. Os olhos do dedo que apertou o gatilho do tiro número 55 perceberam um vulto se esgueirando pela porta dianteira do lado do carona. E assim ocorreu também com os olhos assustados do tiro número 56 e do tiro número 57. Já o que arquitetou o tiro número 58 viu a metade de um vulto que parecia ser de mulher irromper diante da porta aberta. Titubeou cinco segundos antes de apertar o gatilho que abriu mais um estilhaço no vidro traseiro do carro branco. Uma mulher tentava sair do carro e isso perceberam os que arremessaram o tiro número 59 e o tiro número 60, o tal sexagésimo, que lembra sexo.

A mulher que saía do carro era a própria imagem do desespero e com as mos na cabeça, berrava "moço, socorre meu marido" e por muito pouco o tiro número 61 não a atingiu. O tiro número 62 foi pro lado da porta do motorista, o segundo que atingiu o homem. Houve uma pausa pequena nos disparos, não ordenada por voz de comando, mas pela surpresa dos dez atiradores diante da imagem. Nesse quase minuto, outro homem no carro foi socorrer o motorista baleado e outro nas proximidades acercou-se também. Daí veio a ordem clara de continuar o tiroteio. O tiro número 63 não demorou muito, diante de um certo ar de deboche de seu autor. O tiro número 64 e o tiro número 65 vieram juntinhos, cada um pra um lado do carro branco. O tiro número 66 irrompeu fazendo honras ao número da besta e atingiu as costas do homem que tentava socorrer o motorista. O tiro número 67 também atingiu o alvo - o outro homem que se prestava de socorrista. O tiro número 69 e o tiro de número 70 foram decorativos estraçalhando os vidros do carro branco.

Antes do tiro número 71, o disparador, que era negro, chegou a pensar em uma tia que morrera há muito tempo, vítima de uma bala perdida. A mão do dedo que apertou o gatilho pra o tiro número 72 tremelicava e só disparou após uma troca de olhares rapidíssima com o autor do disparo anterior. O tiro número 73, o tiro número 74, o tiro número 75 e o tiro número 76 também foram disparados por mãos tremelicantes e atingiram alvos diversos - dois deles foram parar na porta que se abrira quando a mulher saiu. O tiro número 77 nasceu sob o signo da perplexidade que merda é essa em que fui me meter. Errou o alvo carro branco, agora já não imaculado depois de setenta e sete tiros. Antes de apertar o gatilho pro tiro número 78, o soldado até pensou em mirar na cabeça da mulher. Era o mais treinado, o mais experiente do grupo, medalhas em missões de resistência e sobrevivência e não deixar testemunhas era um dos ensinamentos. O tiro número 79 foi acompanhado pela sensação de "tá acabando essa merda, maldito plantão de domingo" do disparador. E daí veio o octagésimo tiro, o tiro de número 80 e não se sabe quem foi o autor. O soldado que tinha a mania de contar não apenas os tiros que ele disparava (foram dez ali), mas os alheios também, se perdeu (ele contou mais de 80 tiros) e não chegou a fazer a contabilidade com o sargento no fim do fuzilamento, que cessou sem ordem de comando para parar. Assim, como se a missão estivesse cumprida, os alvos abatidos e logo seria hora de voltar pro quartel e aproveitar o tédio do plantão de domingo diante da televisão ou no papo furado com os colegas de farda. 

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