sexta-feira, 29 de março de 2019

A Nana Caymmi que encontrei no meu baú



Tive a honra de entrevistar Dorival Caymmi por telefone em 1994, pouco antes de ele completar 80 anos. Foi por telefone, tempo marcado - 20 minutos - mas a primeira coisa que ele perguntou foi quanto tempo eu precisava para uma boa entrevista. E a nossa durou uns 40 minutos. Desliguei o telefone emocionado. Era perto do meio-dia, lembro bem.

É das minhas entrevistas inesquecíveis. Saiu em três páginas da revista Áudio News e não houve espaço para um texto da Nana falando sobre o pai. Dia desses, apareceu uma lauda (folha com o logo das publicações e marcação) com esse "depoimento" - a entrevista com Nana foi pessoalmente e não foi a única que fiz com ela, que tem um estilo de falar despejando palavras e com os palavrões usados feito vírgula e sem aquele peso que costuma acompanhá-los em outras bocas ou quando transcritos. O pai Dorival não falava palavrões, a mãe Stella sim, ela disse. E falou de Pequeri, a cidade onde o velho Dorival vivia: "uma merda".

Nana Caymmi, aos 53 anos, fazia sucesso com o disco Boleros (ao lado, essa publicada) que a devolveu ao mercado depois um daqueles longos afastamentos meio comuns em sua carreira.

Abaixo Nana fala de Dorival Caymmi, exatamente como escrevi (e não saiu publicado) em 1994.

"Tenho que botar Dorival Caymmi para trabalhar nas comemorações dos 80 anos e isso é uma missão difícil. Toda vez que tenho que falar com papai, vou primeiro ao banheiro, porque ele não é fácil. Ele fala e tenho que ouvir, senão ele já diz: "Você nunca me ouve, sempre foi assim." Quando começa a falar fica horas e horas.
Uma vez em excursão por Portugal, o show acabou e Danilo sumiu com os músicos me deixando a missão de tomar conta do papai. A fila de cumprimentos era enorme, cheia de autoridades, o Mario Soares tava lá, uma festa. E papai ficava dando a maior atenção para todos, contando histórias, falando de Amália Rodrigues. Era uma da manhã, estávamos em Cascais e nada de ele ir embora. Eu falava: Papai, o pessoal tá querendo fechar o teatro e ele lá na maior tranquilidade, conversando com todos.
Agora, nas comemorações dos 80 anos é minha vez de convencê-lo a fazer shows. O Danilo cobra e me deixa com a missão de convencê-lo.
Ele e a mamãe estão casados há 52 anos e desde pequena ou ele ameaça de ir pro hotel e ela de ir embora.
Papai é contido. Não falava palavrão, só mamãe. Ela já foi internada várias vezes para desentupir as artérias. Tá sempre reclamando e brigando com a mulher do Dori, aliás com qualquer mulher que se aproxime do Dori. Dori é a vida da mamãe.
São Pedro do Pequeri, a cidade mineira que mamãe nasceu é uma merda e papai adora. Não dá para entender como o homem que fala do mar no lugar que não corre um córrego.
Não tem nada por lá. Nada: cinema, teatro, nada. Eles só falam de comida e futebol. Ano passado, papai  fez uma grande pesquisa para escolher o artista que eles queriam ouvir. Venceu Elba Ramalho. O show dela foi um acontecimento e até hoje as pessoas falam disso."

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