quinta-feira, 28 de março de 2019

A velhice segundo Clarice Lispector


Clarice Lispector não conheceu a velhice. A morte a alcançou na véspera do dia em que completaria 57 anos, 9 de dezembro de 1977. Ela escreve sobre velhice e sobre as quatro velhas que criou nesta que é uma de suas últimas crônicas na famosa coluna do Jornal do Brasil - foi publicada em 8 de dezembro de 1973 e ela foi demitida três colunas depois, nos últimos dias daquele ano. Dureza Necessária ficou fora de A Descoberta do Mundo e do recente Todas as Crônicas, os livros que cobrem a fase cronista da escritora. É muito interessante lê-la 46 anos depois, quando a aposentadoria está ameaçada.

PS: Clarice começa falando de A Procura de uma Dignidade, publicado em quatro partes na coluna, durante todo o mês de julho de 1973. Em livro, o conto A Procura de Uma Dignidade abriu Onde Estivestes de Noite, lançado em abril de 1974.



                                   Dureza Necessária
                                         Clarice Lispector

Escrevi um conto de umas 10 páginas sobre um senhora de quase 70 anos. Esta senhora passa por situações difíceis, embaraçosas, pela perplexidade, pela vergonha. Dou-me ela o tempo todo, e eu tinha o impulso de interromper para dizer: coitada de minha filha. Mas não podia. Eu tinha que ser neutra e fingir de dura.

E por que não tirá-la das situações difíceis, já que eu mesma as inventei? Por que não melhorar a sua sorte? Foi impossível pois estas eram as suas realidades e eu não posso mentir. Quando minto sobre a verdade de um personagem, não estou sendo honesta. Há que haver uma ética a observar.

Que seja dito de passagem que o conto, chamado de A Procura de uma Dignidade, não é inspirado em nenhum fato real acontecido: tudo é inventado, assim como o nome da senhora.

Pergunto-me eu agora: inventado? Inventa-se? O que a gente inventa já existe de algum modo. Eu devo ter captado expressões sutilíssimas de algumas senhoras e calculei o resto. Será isto que sucedeu? Resposta: mistério.

Também tenho começado um outro conto sobre uma senhora sentada no trem. Ainda não sei para onde vai esse trem. Tenho pena também: ela precisaria de companhia, de um guia, de uma segurança: Interrompi o conto porque no momento não me interessou mais. Provavelmente ou o recomeçarei de novo.

Já tenho quatro velhas descritas ao longo do meu percurso.

O mais curioso é que essas quatro velhas são tão diferentes uma das outras e de tal modo diferem seus acontecimentos e temperamentos que elas não teriam possibilidade de diálogo. Seriam estranhas uma para a outra. E tem a questão do nome, que acho muito importante. A velha de Feliz Aniversário é chamada por mim de velha, por outros de vovó, por uma vizinha de Dona Anita. A de Passeio a Petrópolis chama-se Margarida, mas tem o apelido de Mocinha. A de A Procura de uma Dignidade chama-se Sra. Jorge B. Xavier. É como se ela não tivesse identidade própria. A velha do trem não terá a oportunidade de dizer seu nome: é apenas uma velha senhora no trem.

O problema da velhice não foi resolvido pelos humanos. Raras vezes se vê pessoa de idade com uma harmonia interna e com vida externa correspondente. Materialmente muito se poderia fazer pelas pessoas idosas, dando-lhes o conforto possível, deixando-as serem úteis, não as afastando como a um ser de outra espécie.

É. Mas não resolve não. É um dos sofrimentos humanos.

                 Jornal do Brasil, Sábado, 8 de Dezembro de 1973


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