Clarice Lispector não
conheceu a velhice. A morte a alcançou na véspera do dia em que completaria 57
anos, 9 de dezembro de 1977. Ela escreve sobre velhice e sobre as quatro velhas
que criou nesta que é uma de suas últimas crônicas na famosa coluna do Jornal
do Brasil - foi publicada em 8 de dezembro de 1973 e ela foi demitida três
colunas depois, nos últimos dias daquele ano. Dureza Necessária ficou fora de A Descoberta do Mundo e do recente Todas as Crônicas, os livros que cobrem a fase cronista da
escritora. É muito interessante lê-la 46 anos depois, quando a aposentadoria
está ameaçada.
PS: Clarice começa falando de A Procura de uma Dignidade, publicado em quatro partes na coluna, durante
todo o mês de julho de 1973. Em livro, o conto A Procura de Uma Dignidade abriu Onde
Estivestes de Noite, lançado em abril de 1974.
Dureza Necessária
Clarice Lispector
Escrevi um conto de umas 10
páginas sobre um senhora de quase 70 anos. Esta senhora passa por situações
difíceis, embaraçosas, pela perplexidade, pela vergonha. Dou-me ela o tempo
todo, e eu tinha o impulso de interromper para dizer: coitada de minha filha.
Mas não podia. Eu tinha que ser neutra e fingir de dura.
E por que não tirá-la das
situações difíceis, já que eu mesma as inventei? Por que não melhorar a sua
sorte? Foi impossível pois estas eram as suas realidades e eu não posso mentir.
Quando minto sobre a verdade de um personagem, não estou sendo honesta. Há que
haver uma ética a observar.
Que seja dito de passagem
que o conto, chamado de A Procura de uma Dignidade, não é inspirado em nenhum
fato real acontecido: tudo é inventado, assim como o nome da senhora.
Pergunto-me eu agora:
inventado? Inventa-se? O que a gente inventa já existe de algum modo. Eu devo
ter captado expressões sutilíssimas de algumas senhoras e calculei o resto. Será
isto que sucedeu? Resposta: mistério.
Também tenho começado um
outro conto sobre uma senhora sentada no trem. Ainda não sei para onde vai esse
trem. Tenho pena também: ela precisaria de companhia, de um guia, de uma
segurança: Interrompi o conto porque no momento não me interessou mais. Provavelmente
ou o recomeçarei de novo.
Já tenho quatro velhas
descritas ao longo do meu percurso.
O mais curioso é que essas
quatro velhas são tão diferentes uma das outras e de tal modo diferem seus acontecimentos
e temperamentos que elas não teriam possibilidade de diálogo. Seriam estranhas
uma para a outra. E tem a questão do nome, que acho muito importante. A velha
de Feliz Aniversário é chamada por mim de velha, por outros de vovó, por uma
vizinha de Dona Anita. A de Passeio a Petrópolis chama-se Margarida, mas tem o
apelido de Mocinha. A de A Procura de uma Dignidade chama-se Sra. Jorge B.
Xavier. É como se ela não tivesse identidade própria. A velha do trem não terá
a oportunidade de dizer seu nome: é apenas uma velha senhora no trem.
O problema da velhice não
foi resolvido pelos humanos. Raras vezes se vê pessoa de idade com uma harmonia
interna e com vida externa correspondente. Materialmente muito se poderia fazer
pelas pessoas idosas, dando-lhes o conforto possível, deixando-as serem úteis,
não as afastando como a um ser de outra espécie.
É. Mas não resolve não. É um
dos sofrimentos humanos.
Jornal do Brasil, Sábado, 8
de Dezembro de 1973
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