quarta-feira, 9 de setembro de 2020

As ousadias que Marina Lima trouxe pra MPB





Foi a primeira cantora (e compositora, né) que acompanhei desde o surgimento. Por uma questão de idade cheguei tarde em Maria Bethânia e Gal Costa e até na Rita Lee dos Mutantes e dos três primeiros solos. Marina não, ouvi a primeira a tocar no rádio (não lembro se Transas de Amor ou Tão Fácil), comprei no lançamento o primeiro disco e vi o primeiro show - um projeto Pixinguinha com Zezé Motta e Luiz Melodia e ela de novidade.

Dia desses fiz algo que vinha ensaiando (Ensaios de Amor é título de canção dela em parceria com Ana Terra) há tempos: Ouvir os álbuns na ordem em que foram lançados e em LP. Tenho todos em CD e em LP do primeiro, Simples Como Fogo até Próxima Parada: os dez primeiros anos, de 1979 a 1989. O aparecimento, o estouro a partir do quinto disco (Fullgás, 84) e o último, meio que transição pro próximo sucessão. E tudo na fase transição de LP pra CD. Uma mudança importante viria no próximo: a incorporação do sobrenome ao nome em Marina Lima (91) - Ela usava o nome completo na assinatura das canções desde o primeiro disco.

O Manifesto de Fullgás
E ouvindo os álbuns me vieram ousadias que Marina trouxe pra música brasileira junto com Antônio Cícero, irmão parceiro e poeta, hoje na Academia Brasileira de Letras. São muitas. Abaixo, algumas. Outra "redescoberta" o manifesto (ao lado) dos irmãos que vinha com o disco Fullgás, o do estouro. É um papel branco, bem menor que o encarte que vinha junto com o LP e assinado pelos dois. "Como a música é a expressão mais viva da cultura no Brasil, é justamente a ela que os caretas tentam impor a sua "ordem". E a ordem dos caretas é e sempre foi a da fidelidade às tais "raízes" ou "purezas" ou sabemos lá o quê..."

E abaixo as ousadias, dez delas  que a lista é enorme. E no fim, o link pras dez canções citadas.


1 - Palavra vetada pela censura
Alma Caiada, da parceria Marina e Cícero, seria a primeira canção dos dois gravada - e por Bethânia - se a tesoura da censura não tivesse agido. A marca da censura ficou em Mais Uma Vez (Lulu Santos - Nelson Motta, a penúltima do de Fullgás, quando a abertura política já acenava. E não era proibição de tocar no rádio, era disco riscado mesmo, pulando a palavra censurada. E qual era a palavra? Não sei até hoje, imagino que "tesão", que era perseguidíssima. Será? A letra da canção aparece assim no encarte: "O que eu amo é o amor / Eu desejo o desejo / E quero sempre, sempre mais querer / Um amor, um... (palavra vetada pela censura) / Ou razão ou motivo / Pro riso, isso é o que eu quero mais". E "a palavra censurada" segue mistério mesmo em tempos de plataformas digitais.

2 - Gay, a palavra
Foi em Quem É Esse Rapaz (Marina Lima - Antônio Cícero) que ouvi pela primeira vez "gay" e deve ter sido a vez primeira que, com o sentido de homossexual, aparece na música brasileira. Tá, pode o de "alegre" da palavra inglesa, mas basta ouvir pra perceber que é não. "Eu o vejo perto, longe e gay / E vou prová-lo quente e carinhoso": dizem os últimos versos da segunda de Certos Acordes (81), o terceiro disco. Anos depois, no final dos 80, a canção seguia embalando pistas de boates gays.

3- Comê-la
Difícil (Marina Lima - Antônio Cícero) abre Todas (85) e tem o verso "Então pensei: ela é bela / Porque não com ela / Sexo é bom." Todas ao Vivo (86), o álbum seguinte, é a gravação do show e ali Marina escancara o que muita gente já cantava e o "Porque não com ela" vira "Porque não comê-la" na repetição do verso ao final. Uma mulher cantando isso era ousadia das ousadias. E falando "sexo é bom" também. E "sexo é bom" bem poderia ser o subtítulo de Difícil.

4 - Dama / Homem - Ricardos / Solanges
Não Estou Bem Certa (Pedro Pimentel - Marina Lima) é versão de Sign Your Name, de Terence Trent D'Arby que aponta pra dubiedade sexual e está em Marina Lima (91), o de Criança e Grávida. "Tudo que eu pensei ser pra sempre / Eu já nem sei se é mais / Penso na menina e fico atenta aos braços do rapaz." O refrão: "Será que você será a dama que me completa? / Será que você será o homem que me desperta?" E quase no final: "Procurar Ricardos em Solanges nunca me fez mal."

5 - Nirvana
Everyone is Gay é verso de All Apologies, uma das mais tocantes canções do Nirvana. Marina, sempre esteve atenta em Kurt Cobain e o verso é chave em Na Minha Mão, parceria com Alvin L e faixa de Pierrot do Brasil (98). "O fato é que eu já comecei / A olhar em outra direção / Se todo mundo é mesmo gay / O mundo está na minha mão"

6 - Sauna Gay
Anna Bella (Marina Lima - Antonio Cícero) é mais recente, a terceira  de Lá Nos Primórdios (2006). Foi composta pra artista plástica Anna Bella Geiger, que hoje tem 87 anos. "Já que é assim me pergunto / Uma coisa que pensei / Por que as mulheres também não podem ter a sua sauna gay?" Já se passaram 14 anos e a pergunta continua na bela canção que é bem menos conhecida do que deveria.

7 - Bundinhas
Uma Noite e 1/2 (Renato Rocketh) virou uma espécie de hino do verão, desde que apareceu no disco Virgem e tem participação do autor nos vocais e no baixo. Era 87 e "bundinha" não era palavra que frequentasse a música brasileira e nem top-less. "Não demora muito agora, / Todas de bundinha de fora, / Top-less na areia, / Virando sereia." E o refrão não fica atrás em deliciosas ousadias: "Essa noite eu quero te ter / Toda se ardendo só pra mim / Essa noite eu quero te ter, / Te envolver, te seduzir."

8 - Pátrias, famílias, religiões e preconceitos
Pra Começar (Marina Lima - Antônio Cícero) abre o Todas ao Vivo (86) e foi tema de abertura da novela Roda de Fogo. "Pátrias, Famílias, religiões e preconceitos, quebrou não tem mais jeito",  provavelmente um dos temas de novela mais libertários. É daquelas que Marina voltou a cantar, regravou e não costuma faltar nos shows.

9 - Francisca
É o subtítulo de Me Diga (Marina Lima - Antonio Cícero), faixa de Setembro (2001). A "ousadia" aqui é pela abordagem social de uma nordestina há muitos anos no Rio (veio "no tempo em que eu não era nascida), algo não corriqueiro na parceria dos dois irmãos. E a canção tem trechos recitados por Marina e Cícero. "Entre o nordeste que deixou na infância/ E o sul que nunca pareceu real / A Francisca tem saudade de uns lugares / Que passam a existir quando ela os pinta: / São mares turquesados e espumantes em frente a uns casarões abandonados que, não sei bem por que, nos desamparam / no meio de algum lugar tão distante."

10 - Coxinhas
O funk Só os Coxinhas (Marina Lima - Antônio Cícero) é do ótimo e recente Novas Famílias (2018) repleto de novos parceiros e ótimas canções, como a faixa título, Árvores Alheias (só dela), Mãe Gentil (Arthur Kunz - Marina Lima -Leticia Novaes) e Do Mercosul (Silva / Marina Lima / Dustin Galan).
"Nunca me senti tão envolvida com o Brasil. (...) Aqui está a minha trilha para o Brasil de agora. Realista, crítica, porém cheia de amor pra dar": ela escreve em texto no disco. Só os Coxinhas veio no auge (em um dos auges) da polarização política e provocou barulho. Como assim, o acadêmico Antonio Cícero fazendo letra de funk e usando o termo coxinha? Bobagens, meu filho, bobagens, apenas mais uma das ousadias de Marina Lima, sempre inquieta, graças aos deuses.

As dez canções citadas



Mais Uma Vez


Quem é esse rapaz



Difícil

Não Estou Bem Certa

Na Minha Mão

Anna Bella


Uma noite e 1/2 


Pra Começar

Francisca


Só os Coxinhas







Um comentário:

Betha Medeiros disse...

Coisa boa de ler!!
Sempre achei e ainda acho, que a obra dela ainda merece ser mais, muito mais reconhecida! Eu falo que, se Marina fosse homem, ela seria super valorizada como Cazuza e Renato Russo. Não estou comparando, apenas relatando o machismo presente em tudo.
Fico muito Puta da cara quando ao falar nela, as pessoas SEMPRE citem sua beleza física, o quento ela está linda, continua mesmo com o passar do tempo... ai que cansaço!!!
Ah, a palavra é 'tesão' mesmo. Lembro de Chico cantando em Bye Bye Brasil: "eu tenho 'pressão' é no mar..."
Beijo!!! ß

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