terça-feira, 1 de setembro de 2020

A mulher na música brasileira


Nada de ensaio. É uma matéria de jornal, uma saborosa página inteira do Jornal do Brasil em agosto de 1972. Pauta: a mulher na música brasileira. Entrevistados: Mario Lago, Vinicius de Moraes e Chico Buarque. Veteranos, Mario (então com 61 anos) fala de Amélia, o hino da mulher submissa que compôs em 42 e Vinicius, 59 anos ali e tinha acabado de parir Samba da Gesse para a amada, lembra da bossa nova e de outras canções sobre a mulher. O novato Chico Buarque, 28 anos, fizera há pouco Cotidiano e fala de outras mulheres de suas canções: Carolina, Januária, Com Açúcar Com Afeto e Teresa, uma de suas primeiras e não gravada até então.
A matéria é assinada por Maria Lucia Rangel, que guarda boas lembranças dela. Foi a sua  primeira no Jornal do Brasil e feita "em experiência", a pedido de Alberto Dines, o editor do Caderno B. A jovem repórter entrevistou até o pai Lucio Rangel (1914-1979), jornalista, crítico, escritor, historiador e íntimo da música brasileira.
Abaixo a matéria:

                                   A Letra marca a mulher que passa
Para Mario Lago, autor de Amélia "a mulher de verdade", feita em 1942, a imagem da mulher na música popular brasileira não se modificou através dos anos, continuando com "os mesmos elementos de amor e beleza." Já o poeta Vinicius de Moraes vê esta imagem bem diferente de alguns anos atrás, mais sofisticada e um pouco assexuada "porque os caras não curtem mais aquela dor de cotovelo de antigamente e também pelo deslocamento do nível cultural dos compositores." Chico Buarque de Holanda preocupa-se em fazer uma crítica à mulher da Zona Norte e do interior. "a típica mulher de classe média brasileira", que fica na janela e não entra na realidade da vida. "Minhas músicas têm todas o mesmo tipo de recado, uma espécie de apelo para que a mulher venha brigar com a gente." Mas todos são unânimes em afirmar que o grande tema da música popular brasileira é a mulher.
O grande tema da música popular brasileira sempre foi a mulher. Quando não é ela, é a dor de cotovelo. A não ser em músicas folclóricas e de contestação. A mulher foi cantada de todas as maneiras e não há compositor que não tenha uma obra dedicada à ela. Sua imagem passou por diversas fases. Enquanto que antigamente era a chamada mulher da pesada, a companheira que gostava de apanhar, hoje em dia ela é vista sob um ponto de vista mais sofisticado, até "mais assexuada", segundo Vinicius de Moraes. Enquanto Noel Rosa fez a apologia da mulher da Lapa, Chico Buarque confessa que suas músicas são para a mulher do subúrbio e do interior, numa espécie de apelo para tirá-la da janela e jogá-la na realidade da vida
AS DEUSAS DA MÚSICA
Ary Barroso
De uma maneira geral, os compositores sempre endeusaram a mulher, como Ary Barroso e Luis Peixoto em sua Maria, feita em 31 com o nome de Bahia, mas que ficou famosa em 32, quando teve sua letra trocada, falando na mulher: "Maria, o teu nome principia / Na palma da minha mão / E cabe bem direitinho / Dentro do meu coração..."

Também Lauro Maia e Humberto Teixeira mostram em Deus Me Perdoe uma intensa dor de cotovelo: "Deus me perdoe / Mas levar esta vida que eu levo / É Melhor morrer! / Relembrando a fingida mulher / Que me abandonou / Mais aumenta a saudade / Que tanto me faz sofrer..."
Já Kid Pepe, Germano Augusto e Guará fazem o "reverso da medalha", em As Lágrimas Rolavam, mostrando a mulher sofredora, em situação inferior: "As lágrimas rolavam / na face da mulher/ Que eu mais amava e deixei / Aos meus pés ajoelhada / Ela me implorava / Implorava / Perdoa! Perdoa!"
Nássara já era caricaturista famoso quando, em 1933, chegou ao Café Nice com uma música pronta. Foi gravada por Mario Reis e Francisco Alves e foi a primeira Formosa da música brasileira: "Foi Deus quem te fez formosa / Formosa, oi, formosa / Porém este mundo te tornou / Presunçosa, presunçosa..."
Trinta anos depois, no Natal de 1963 em Paris, Vinicius de Moraes e Baden Powell faziam a sua Formosa para presentear os amigos durante a ceia: "Formosa, não faz assim / Carinho não é ruim / Mulher que nega / Não sabe não / Tem uma coisa de menos / No seu coração..."
Mas a mulher também foi motivo de brigas e disputas e seus diferentes tipos cantados cada ano. Em 1932, Lamartine Babo adaptava Teu Cabelo Não Nega, originalmente dos Irmãos Valença: "O teu cabelo não nega mulata / Porque é mulata na cor..." Endeusada a mulata neste carnaval, Lamartine foi acusado de plagiário e no ano seguinte fez sozinho Linda Morena: "Linda morena, morena / Morena que me faz penar / A lua cheia / Que tanto Brilha / Não brilha tanto quanto teu olhar..."
É lógico que depois da mulata e da morena, as louras estavam se  sentindo rejeitadas, e João de Barro, o Braguinha, não perdeu tempo e lançou com sucesso Lourinha: "Lourinha, Lourinha / Dos olhos claros de cristal / Dessa vez em vez da moreninha / Serás a rainha do meu carnaval."



MARIA, A MAIS POPULAR
É difícil um nome de mulher que não tenha sido cantado no samba. Maria é o mais popular e o que melhor caracteriza a brasileira e a portuguesa. Depois da Maria de Ary Barroso, Nássara fez Maria Rosa, sobre a qual foram escritos diversos artigos, tal a zombaria da letra: "Cadê Maria Rosa / Tipo acabado de mulher fatal / Que tem como sinal uma cicatriz / Dois olhos muito grandes, uma boca e um nariz."
Enquanto o funcionário público é chamado de barnabé e é a imagem do homem sacrificado, em 1952 quando houve uma verdadeira invasão de mulheres nos Ministérios, elas foram imediatamente criticadas por Armando Cavalcanti e Klecius Caldas na conhecida marchinha Maria Candelária. Era outra vez a Maria simbolizando a mulher, só que desta vez causando indignação e protestos: "Maria Candelária / É alta funcionária / Saltou de para-quedas / Caiu na letra o, o, o, o / Começa meio dia / Coitada da Maria / Trabalha, trabalha / Trabalha de fazer dó..."
A Maria do morro, a trabalhadora, que não espera nada da vida, também foi imortalizada por Luis Antonio e J. Junior em Lata D'agua: "Lata d'água na cabeça / Lá vai Maria, lá vai Maria / Sobe o morro e não se cansa / Pela mão leva a criança / Lá vai Maria."
Os nomes cantados são infinitos. Dorival Caymmi tem duas obras primas dedicadas à mulher, as duas com nomes próprios e falando da mulher cabocla, do Norte: Dora, "Dora, rainha do frevo e do maracatu / Dora, rainha cafuza de um maracatu..." e Marina, que consta como o primeiro samba-canção feito no Brasil: "Marina, morena / Marina você me pintou / Marina você faça tudo / Mas faça um favor / Não pinte este rosto que eu gosto / Que eu gosto e que é só meu / Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu..."
Mas foi talvez Orestes Barbosa quem mais endeusou a mulher na música. Em Serenata ele mostra sua adoração pelo sexo fraco: "Dorme junto a teus pés o meu ciúme / Enjeitado e faminto como um cão..."
Noel Rosa
Noel Rosa só acertou com mulher na hora de casar. Foi sempre uma vítima de moçãs não muito recomendáveis e deixa claro seu sofrimento em Julieta, feita em 31 de parceria com Eratóstenes Frazão: "Julieta, não és um anjo de bondade / Como outrora sonhava o teu Romeu / Julieta, tens a volúpia da infidelidade / E quem te paga as dívidas sou eu." Sua idolatria por mulheres da Lapa também é mostrada em várias composições, como A Dama do Cabaré: "Foi num cabaré da Lapa / Que eu conheci você / Fumando cigarro / Derramando champanha no seu soiré."
Cartola

No começo do cinema falado, o filme
Divina Dama, fez muito sucesso e sua música inspirou Cartola, que baseado na mulata brasileira, e não na loira de olhos azuis protagonista do filme, fez sua Divina Dama: "Tudo acabado e o baile encerrado / Atordoado, fiquei / Eu dancei com você, divina Dama / Com o coração queimado em chamas."
Mas existe também o sambista que não conta nada de suas mulheres e dores, dizendo que o segredo "é pro fundo das redes." É como diz Herivelto Martins: "Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber / O que houve entre nós dois..."
A febre da operação plástica foi gozada em algumas marchinhas. Monsueto em Doutor Pitangui parece não estar satisfeito com a nova invenção e faz sua crítica à mulher: "Levei a Marieta ao Pitangui / Quando voltou não a reconheci / Cortaram lá, cortaram cá / Agora ela vive a reclamar / Que a sua cara  tem Vontade / De sentar pra descansar."
A MULHER DE VERDADE
Em 42, surgiu Amélia, que virou adjetivo de mulher submissa e foi um estouro nos padrões musicais da época. Mario Lago confessa que fez a letra de brincadeira, por causa do Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que dizia sempre: "Amélia passava, cozinhava, o dinheiro que ganhava a gente levava." Mario achava que isso dava letra de samba e não bobeou.
- Na minha opinião - diz ele - Amélia funcionou porque é o tipo de mulher que fica ao lado do homem em qualquer situação e as outras músicas da época ainda não exploravam o tema. Mas ela era calhorda também, porque ao mesmo tempo que era o símbolo da fidelidade, era igualmente o do conformismo. Para mim, a verdadeira Amélia é a que encoraja o homem nas lutas por reivindicações. A grande curiosidade é que fiz a letra sem saber que em 1751 Henry Fielding, autor de Tom Jones, escreveu seu último romance intitulado Amélia, onde a personagem central oferece um autêntico modelo de abnegação feminina. Sem saber também que Amélia é nome de origem germânica, Amalberga, composto de Amal (trabalho) e Berga (amparo, proteção). É como na música: "Às vezes passava fome ao meu lado / E achava bonito não ter o que comer / Quando me via contrariado / Dizia - Meu filho o que se há de fazer? / Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia é que era a mulher de verdade."
Mas Mário Lago não acha que a imagem da mulher na música tenha sido modificada com o tempo. Continua com os mesmo elementos de amor e de beleza.
Como símbolo de mulher sofredora, no mesmo ano de Amélia surgiu Emília, de Wilson Batista e Haroldo Lobo: "Quero uma mulher / Que saiba lavar e cozinhar / E de manhã cedo / Me acorde na hora de trabalhar..."
Para o poera Vinicius de Moraes a visão da mulher na música mudou muito com o nível cultural dos compositores:
- Já na década de 50 começa a aparecer a mulher sofisticada, de boate,imortalizada nas músicas de Antonio Maria, Fernando Lobo e Paulinho Soledade. Mesmo as nossas mulheres, a partir da bossa nova, já têm um outro gabarito social. Surge a mulher ingênua, a Garota Zona Sul de Garota de Ipanema: "Olha que coisa mais linda / Mais cheia de graça / É ela menina / Que vem e que passa / Num doce balanço / Caminho do mar..."
A SOFISTICAÇÃO DA MULHER
Mas segundo o poeta, sua música que mais fez conquistas foi Minha Namorada, que é bem "a definição poética da garota que a gente curte. Importante porque marca a distinção entre a namorada e a "amante pra valer".
- Teve até um grupo de bossa nova que começou a curtir a garota feia, como numa música de Oscar Castro Neves. Isso tudo fazia parte daquela ingenuidade da época. Me lembro também, quando tinha uns 15 anos, e começou a se falar em apartamento, telefone, asfalto. Foi quando apareceu a mulher de piteira, de sinal de rosto e pega-rapaz, que chamávamos de "belezinha". Orestes Barbosa fala disso numa música: "Recordo às seis da tarde o apertivo / Depois jantar, cinema, a vida ao léu / Meu telefone agora vive mudo / O dela sempre em comunicação..."
Até a grã-fina ganhou um samba, e inspirados em Teresa Souza Campos, Francis Hime e Vinicius de Moraes fizeram Teresa, dedicada à mulher que transa em gafieira e sociedade: "Chegou, chegou sim senhor / Chegou sem avisar / Fez um alô pra ioiô / Fez um olá pra iaiá / Depois sambou e sambou / Até o dia raiar."
- Acho que o samba se assexuou um pouco. Os caras não curtem mais a mulher com aquela dor de corno de antigamente. Mas eu continuo fazendo música para a mulher amada. Só componho apaixonado e fiz o Samba da Gesse com Toquinho, para minha mulher: "Até parece / Que eu conhecia sempre você / Que me aparece / Quando eu não via / Jeito de ser..." Quando a tipo definido de mulher na música atual, acho que não existe. É a que cada um vê.
A visão das mulheres de Chico Buarque de Holanda é inteiramente diferente da de Vinicius:
- Em geral, as mulheres das minhas músicas são presas, ficam na janela. Não são independentes. É claro que faço isso tudo com uma dose de crítica, de chamamento à mulher. Uma espécie de apelo para tirá-la de casa para a rua. Porque a mulher classe média brasileira é assim, presa. O problema existencial da garota Zona Sul, de minissaia, para mim não é importante. Uma das minhas primeiras composições, Teresa, de 64 e que nem foi gravada, dizia assim: "Ser mulher é muito mais / Que pregar botão..." Carolina, Januária, Com Açúcar Com Afeto e até Cotidiano, que fiz no ano passado, têm o mesmo tipo de recado: "Todo dia ela faz tudo sempre igual / E me acorda às seis horas da manhã.."
Mas debochada, amada, triturada, difamada, julgada, fica a imagem que Sinhô deu à mulher em Gosto Que Me Enrosco: "Gosto que me enrosco / De ouvir dizer / Que a parte mais fraca é a mulher / Mas o homem / Com toda a fortaleza / Desce da Nobreza/ E Faz o que ela quer..."

15 CANÇÕES CITADAS NA MATÉRIA
Maria (Ary Barroso - Luis Peixoto)  Aqui com Lucio Alves em um álbum só com canções com nomes de mulher no título

Deus me Perdoe (Lauro Maia - Humberto Teixeira) com Ciro Monteiro

As Lágrimas Rolavam com  Jayme Vogeler 

Formosa (Nássara) _ Francisco Alves e Mario Reis


Formosa (Vinicius de Moraes - Baden Powell)



O Teu Cabelo Não Nega (Irmãos Valença - Lamartine Babo)


Maria Rosa (Nássara)


Maria Candelaria (Armando Cavalcanti / Klecius Caldas)


Serenata (Orestes Barbosa)



Julieta (Noel Rosa)

Divina Dama (Cartola)
Dora (Dorival Caymmi)

Amélia (Mario Lago)



Samba da Gesse (Vinicius de Moraes - Toquinho)

Tereza Tristeza (Chico Buarque)










Nenhum comentário:

Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...