Dias depois do desfile da
Mangueira fui atrás de Luiza Mahin, homenageada pela escola com seu filho Luiz
Gama (post anterior) na hemeroteca digital da Biblioteca
Nacional. E na busca, me chamou a atenção a descrição de Luiz sobre a mãe em
carta para o escritor Luis de Mendonça, onde contava sua vida. A carta foi
escrita em 1880, dois anos da morte do poeta e abolicionista Luiz Gama e oito antes
da abolição da escravatura.
Abaixo, a carta, uma aula
sobre a história brasileira, aquela que nem sempre (ou raramente) se conta.
Nota: Breve Luiz Gama estará no cinemas: o diretor Jeferson De filma Prisioneiro da Liberdade, com a história dele.
LUIZ
GAMA POR LUIZ GAMA
"São
Paulo, 25 de Julho de 1880
Meu caro
Lucio
Recebi o
teu cartão com a data de 28 do pretérito.Não me posso negar ao teu pedido,
porque antes quero ser acoimado de ridículo, em razão de referir verdades
pueris que me dizem respeito, do que vaidoso e fátuo, por as ocultar, de
envergonhado: aí tens os apontamentos que me pedes e que sempre eu os trouxe de
memória.
Nasci na
cidade de São Salvador, capital da província da Bahia, em um sobrado da rua do
Bângala, formando ângulo interno, em a quebrada, lado direito de quem parte do
adro da Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de Junho de 1830, pelas 7 horas
da manhã, e fui batizado, 8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento, da
cidade de Itaparica.
Sou filho
natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina, (Nagô de Nação) de nome
Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.
Minha mãe
era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem
lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa,
insofrida e vingativa.
Dava-se ao
comércio - era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi
presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que
não tiveram efeito.
Era dotada
de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao
Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na
Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que
conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada com malungos
desordeiros, em uma "casa de dar fortuna", em 1838, fora posta em
prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião
dos meus informantes que esses "amotinados" fossem mandados pôr fora
pelo governo, que, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres,
tidos como provocadores.
Nada mais
pude alcançar a respeito dela. Nesse ano, 1861, voltando a São Paulo, e estando
em comissão do governo, na vila de Caçapava, dediquei-lhe os versos que com
esta carta envio-te.
Meu pai,
não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país,
constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa
presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais
famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma
injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome.
Ele foi
rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi
revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito
apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho,
amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia
em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de Novembro de 1840, em companhia
de Luiz Candido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos
proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecido em um
sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do
patacho "Saraiva".
Remetido
para o Rio de Janeiro, nesse mesmo navio, dias depois, que partiu carregado de
escravos, fui, com muitos outros, para a casa de um cerieiro português, de nome
Vieira, dono de uma loja de velas, à rua da Candelária, canto da do Sabão. Era
um negociante de estatura baixa, circunspecto e enérgico, que recebia escravos
da Bahia, à comissão. Tinha um filho aperaltado, que estudava em colégio; e
creio que três filhas já crescidas, muito bondosas, muito meigas e muito
compassivas, principalmente a mais velha. A senhora Vieira era uma perfeita
matrona: exemplo de candura e piedade. Tinha eu 10 anos. Ela e as filhas
afeiçoaram-se de mim imediatamente. Eram cinco horas da tarde quando entrei em
sua casa. Mandaram lavar-me; vestiram-me uma camisa e uma saia da filha mais
nova, deram-me de ceiar e mandaram-me dormir com uma mulata de nome Felícia,
que era mucama da casa.

Sempre que
me lembro desta boa senhora e de suas filhas, vêm-me as lágrimas aos olhos,
porque tenho saudades do amor e dos cuidados com que me afagaram por alguns
dias.
Dali saí
derramando copioso pranto, e também todas elas, sentidas de me verem partir.
Oh! eu
tenho lances doridos em minha vida, que valem mais do que as lendas sentidas da
vida amargurada dos mártires.
Nesta casa,
em Dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio
Pereira Cardoso, o mesmo que, há 8 ou 10 anos, sendo fazendeiro no município de
Lorena, nesta Província, no ato de o prenderem por ter morto alguns escravos a
fome, em cárcere privado, e já com idade maior de 60 a 70 anos, suicidou-se com
um tiro de pistola, cuja bala atravessou-lhe o crânio.
Este
alferes Antonio Pereira Cardoso comprou-me em um lote de cento e tantos
escravos; e trouxe-nos a todos, pois era este o seu negócio, para vender nesta
Província.
Como já
disse, tinha eu apenas 10 anos; e, a pé, fiz toda viagem de Santos até
Campinas. Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e
Campinas; e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples
fato de ser eu "baiano".
Valeu-me a
pecha!
O último
recusante foi o venerando e simpático ancião Francisco Egidio de Souza Aranha,
pai do excelentíssimo Conde de Três Rios, meu respeitável amigo.
Este,
depois de haver-me escolhido, afagando-me disse:
- Hás de
ser um bom pagem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
- Na Bahia,
respondi eu.
- Baiano? -
exclamou admirado o excelente velho. - Nem de graça o quero. Já não foi por bom
que o venderam tão pequeno.
Repelido
como "refugo", com outro escravo da Bahia, de nome José, sapateiro,
voltei para a casa do senhor Cardoso, nesta cidade, à rua do Comércio número 2,
sobrado, perto da igreja da Misericórdia.
Aí aprendi
a copeiro, a sapateiro, a lavar e a engomar roupa e a costurar.
Em 1847,
contava eu 17 anos, quando para a casa do senhor Cardoso veio morar, como
hóspede, para estudar humanidades, tendo deixado a cidade de Campinas, onde
morava, o menino Antonio Rodrigues do Prado Junior, hoje doutor em direito,
ex-magistrado de elevados méritos, e residente em Mogi Guaçú, onde hoje é
fazendeiro.
Fizemos
amizade íntima, de irmãos diletos, e ele começou a ensinar-me as primeiras
letras. Em 1848, sabendo eu ler e contar alguma cousa, e tendo obtido ardilosa
e secretamente provas inconcussas de minha liberdade, retirei-me, fugindo, da
casa do alferes Antonio Pereira Cardoso, que aliás votava-me a maior estima, e
fui assentar praça. Servi até 1854, seis anos; cheguei a cabo de esquadra
graduado, e tive baixa de serviço, depois de responder a conselho, por ato de
suposta insubordinação, quando tinha-me limitado a ameaçar um oficial
insolente, que me havia insultado e que soube conter-se.
Estive,
então, preso 39 dias, de 1 de julho a 9 de agosto. Passava os dias lendo e às
noites, sofria de insônias; e, de contínuo, tinha diante dos olhos a imagem de
minha querida mãe. Uma noite, eram mais de duas horas, eu dormitava; e, em
sonho vi que a levavam presa. Pareceu-me ouvi-la distintamente que chamava por
mim.
Dei um
grito, espavorido saltei da tarimba; os companheiros alvorotaram-se; corri à
grade, enfiei a cabeça pelo xadrez.
Era
solitário e silencioso e longo e lôbrego o corredor da prisão, mal alumiado
pela luz amarelenta de enfumarada lanterna.
Voltei para
a minha tarimba, narrei a ocorrência aos curiosos colegas; eles narraram-me
também fatos semelhantes; eu caí em nostalgia, chorei e dormi.
Durante o
meu tempo de praça, nas horas vagas, fiz-me copista; escrevia para o escritório
do escrivão major Benedito Antonio Coelho Neto, que tornou-se meu amigo; e que hoje,
pelo seu merecimento, desempenha o cargo de oficial-maior da Secretaria do
Governo; e, como amanuense, no gabinete do excelentíssimo Sr. Conselheiro
Francisco Maria de Souza Furtado de Mendonça, que aqui exerceu, por muitos
anos, com aplausos e admiração do público em geral, altos cargos na
administração, polícia e judicatura, e que é catedrático da Faculdade de
Direito, fui eu seu ordenança; por meu caráter, por minha atividade e por meu
comportamento, conquistei a sua estima e a sua proteção; e as boas lições de
letras e de civismo, que conservo com orgulho.
Em 1856,
depois de haver servido como escrivão perante diversas autoridades policiais,
fui nomeado amanuense da Secretaria de Polícia, onde servi até 1868, época em
que "por turbulento e sedicioso" fui demitido a "bem do serviço
público", pelos conservadores, que então haviam subido ao poder. A
portaria de demissão foi lavrada pelo dr. Antonio Manuel dos Reis, meu
particular amigo, então secretário da polícia, e assinada pelo exmo. dr.
Vicente Ferreira da Silva Bueno, que, por este e outros atos semelhantes, foi
nomeado desembargador da relação da Corte.
A
turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e
pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias; e promover processos
em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente,
na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e
todos os senhores, principalmente os Reis. Desde que fiz-me soldado, comecei a
ser homem; porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18, fui soldado.
Fiz versos;
escrevi para muitos jornais; colaborei em outros literários e políticos, e
redigi alguns.
Agora chego
ao período em que, meu caro Lucio, nos encontramos no "Ipiranga", à
rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e folhetinista principiante;
eu, como simples aprendiz-compositor, de onde saí para o foro e para a tribuna,
onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os
infelizes; e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho
arrancado às garras do crime.
Eis o que
te posso dizer, às pressas, sem importância e sem valor; menos para ti, que me
estimas deveras.
Teu Luiz".
Encontrei a carta nessa matéria do jornal Hora do Povo