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Nara e Odete com Baden Powell |
Corte
para um tempo depois. As duas se cruzam em uma feijoada do povo da bossa nova.
Daí vem aulas de violão e as duas ficam amigas. As duas mulheres são Odete Lara
(1929-2015) e Nara Leão (1942-1989). E quem conta a história é Odete em Minha
Jornada Interior (1990), o segundo livro de memórias dela escrito dez anos
depois de Eu Nua (1976), uma das primeiras autobiografias de uma estrela
brasileira, "numa tentativa de dissecar o processo neurótico que me levou à
beira da demência e do suicídio", nas palavras da autora. Ambos são excelentes.
Abaixo o texto, que abre o capítulo intitulado "Com Vinicius, Nara e Baden"
"Benê Nunes, cupincha e pianista preferido de Juscelino Kubitscheck, e Dulce,
sua mulher, costumavam abrir seu apartamento da Gávea todos os sábados para o
pessoal da bossa nova, com uma feijoada que se estendia até o domingo à noite.
Além de compositores, músicos, intelectuais e artistas, lá se revezava uma
constante variação de visitas esporádicas.
Uma tarde, para minha
surpresa,encontro entre os demais a moça que eu via todos os dias saindo do
consultório do psicanalista. Eu ficava na sala de espera folheando uma revista
atrás da qual entreescondia o rosto sempre que percebia que a porta ia se abrir
para dar passagem àquela moça discreta, bem vestida, com vasta franja cobrindo a
testa.
Intrigada, ao vê-la essa tarde dedilhando um violão, perguntei a um
músico quem era. "É Nara Leão, o pessoal se reúne muito na casa dela também."
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Os livros de memórias de Odete Lara |
Fiquei observando-a, querendo descobrir o que é que podia fazê-la ir ao
psicanalista se aparentemente era normal. Mas aparentemente eu também não era
normal? Ela era reservada, observadora e retraída, como eu. Tocava violão, mas
só atendia aos pedidos para cantar quando a insistência passava dos limites. Sua
voz saía contida, quase inaudível.
Algum tempo depois a vi de novo numa reunião
em torno de um piano de cauda na Avenida Atlântica. Era seu apartamento. Voltei
lá várias vezes, e ainda que tivéssemos trocado algumas palavras, continuávamos
distantes, observando-nos.
Mais tarde, quando soube que ela dava aulas de
violão, passei a ser sua aluna, e só aí, com o contato quase diário, nos
tornamos amigas. Quando a confiança permitiu, nos divertíamos às gargalhadas,
confessando uma à outra as fantasias que fazíamos quando nos cruzávamos no
consultório.
"Quem problema pode ter uma vamp de cinema diante de quem os homens
devem tombar? Aposto que ela vai usar um negligé de cetim bem decotado para
seduzir meu namorado se um dia ele for entrevistá-la para o jornal onde
trabalha. Na certa o dr. Ivan quer se ver logo livre de mim para atendê-la..."
"Que problema pode ter uma filhinha de mamãe como essa, a quem nada deve faltar?
Deve fazer psicanálise porque não tem como preencher o tempo. Na certa, o dr.
Ivan prefere dar mais atenção a ela, que é moça "bem", de família, do que a mim,
uma bastarda...""
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