quarta-feira, 21 de outubro de 2020

As sessões de terapia de Odete Lara e Nara Leão


Revista O Cruzeiro, 1963. A Foto de Antonio Rudge está inteira abaixo


Nara e Odete com Baden Powell 
Rio, final dos anos 50. Sala de espera do consultório de um psicanalista. "Vamp" do cinema esconde o rosto por trás de uma revista sempre que percebe que a porta vai se abrir e de lá sair uma moça "bem", discreta, bem vestida e com uma franja cobrindo a testa. Elas tinham treze anos de diferença - a da franja, morena, ainda não completara vinte e a vamp, loira, uma mulher de quase trinta. 

Corte para um tempo depois. As duas se cruzam em uma feijoada do povo da bossa nova. Daí vem aulas de violão e as duas ficam amigas. As duas mulheres são Odete Lara (1929-2015) e Nara Leão (1942-1989). E quem conta a história é Odete em Minha Jornada Interior (1990), o segundo livro de memórias dela escrito dez anos depois de Eu Nua (1976), uma das primeiras autobiografias de uma estrela brasileira, "numa tentativa de dissecar o processo neurótico que me levou à beira da demência e do suicídio", nas palavras da autora. Ambos são excelentes. Abaixo o texto, que abre o capítulo intitulado "Com Vinicius, Nara e Baden"


 Nara por Odete: "Ela era reservada, observadora e retraída, como eu. Tocava violão, mas só atendia aos pedidos para cantar quando a insistência passava dos limites. Sua voz saía contida, quase inaudível" 


"Benê Nunes, cupincha e pianista preferido de Juscelino Kubitscheck, e Dulce, sua mulher, costumavam abrir seu apartamento da Gávea todos os sábados para o pessoal da bossa nova, com uma feijoada que se estendia até o domingo à noite. Além de compositores, músicos, intelectuais e artistas, lá se revezava uma constante variação de visitas esporádicas. 

Uma tarde, para minha surpresa,encontro entre os demais a moça que eu via todos os dias saindo do consultório do psicanalista. Eu ficava na sala de espera folheando uma revista atrás da qual entreescondia o rosto sempre que percebia que a porta ia se abrir para dar passagem àquela moça discreta, bem vestida, com vasta franja cobrindo a testa. 

Intrigada, ao vê-la essa tarde dedilhando um violão, perguntei a um músico quem era. "É Nara Leão, o pessoal se reúne muito na casa dela também."

Os livros de memórias de Odete Lara
Fiquei observando-a, querendo descobrir o que é que podia fazê-la ir ao psicanalista se aparentemente era normal. Mas aparentemente eu também não era normal? Ela era reservada, observadora e retraída, como eu. Tocava violão, mas só atendia aos pedidos para cantar quando a insistência passava dos limites. Sua voz saía contida, quase inaudível. 

Algum tempo depois a vi de novo numa reunião em torno de um piano de cauda na Avenida Atlântica. Era seu apartamento. Voltei lá várias vezes, e ainda que tivéssemos trocado algumas palavras, continuávamos distantes, observando-nos. 


Mais tarde, quando soube que ela dava aulas de violão, passei a ser sua aluna, e só aí, com o contato quase diário, nos tornamos amigas. Quando a confiança permitiu, nos divertíamos às gargalhadas, confessando uma à outra as fantasias que fazíamos quando nos cruzávamos no consultório. 

"Quem problema pode ter uma vamp de cinema diante de quem os homens devem tombar? Aposto que ela vai usar um negligé de cetim bem decotado para seduzir meu namorado se um dia ele for entrevistá-la para o jornal onde trabalha. Na certa o dr. Ivan quer se ver logo livre de mim para atendê-la..."

 "Que problema pode ter uma filhinha de mamãe como essa, a quem nada deve faltar? Deve fazer psicanálise porque não tem como preencher o tempo. Na certa, o dr. Ivan prefere dar mais atenção a ela, que é moça "bem", de família, do que a mim, uma bastarda...""

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