terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O mais zen dos baianos



O post anterior - Mania de Gilberto Gil – tinha alguns trechos de uma entrevista minha com o cara, em 1994. Algumas pessoas me pediram pra ler inteira. Está aqui, copiadinha total, aproveitando as comemorações dos 70 anos de Gil. E as fotos são de Klaus Mitteldorf

  
Prepare-se, pois você vai ouvir falar muito de Gilberto Gil nesse ano. Ele lança disco acústico, disco inédito, faz show na Europa com Caetano Veloso e com Os Doces Bárbaros e turnês pelo Brasil. Não resta dúvida que 94 é um ano “totalmente sim”, demasiadamente sim” na carreira do baiano. AUDIO NEWS foi atrás de Gil, acompanhando-o durante dois dias, quando ele ensaiou e gravou o especial acústico para a MTV. Duas semanas depois, conversou com exclusividade.

Bem disposto e com uma banana na mão – ao estilo tropicália – Gilberto Gil apareceu nos estúdios da Frame, em Cotia, arredores de São Paulo, onde gravou o Acústico. Gil, com a banana descascada na mão, vai direto ao estúdio conferir os cenários e o som. Depois parte para a exclusiva sessão de fotos que ilustra esta reportagem. Em volta, algumas crianças – que apareceram misteriosamente – circulam pelos estúdios da Frame, com caneta e papel na mão. Fazem menção de que vão partir para a caça de autógrafos, mas desistem e desaparecem. Enquanto a sessão fotográfica não começa, Gil conversa com as pessoas que vai encontrando. Com o figurinista Cao, comenta a repercussão do show de reencontro dos Doces Bárbaros, que tinha acontecido dois dias antes na quadra da Mangueira. “Foi belíssimo”, diz Gil.

Como um modelo, se entrega as fotos, inventa poses e demonstra total intimidade com a lente. Veste sapatilha preta, jeans e camiseta do grupo ecológico Onda Azul. Aliás, antes de chegar à Frame, ele visitou o Partido Verde paulistano. As fotos estão prontas e Gilberto Gil é carregado pelo pessoal da MTV para gravar o Reggae MTV. Cercado pela garotada que produz o programa, escolhe os clips que vai apressentar. “É um programa seu, onde você é o VJ”, ouve atento as instruções do jovem diretor. Sentado em cima de uns caixotes, o cinquentão baiano estreia como VJ. Nos intervalos, o figurinista Cao se transforma em camareiro e, de toalha na mão, enxuga o rosto suado do astro.

Hora de ensaiar o acústico. Gil e músicos começam a complicada sessão de afinar instrumentos, cheios de problemas técnicos para resolver. “Falta grave no estúdio”, reclama um Gil irritado, entre muitos goles de água de côco. Ao violão, dedilha pela quarta vez Três Caravelas até ser interrompido por uma forte microfonia. Mas duas horas depois, os problemas técnicos estão resolvidos, o som limpíssimo e tudo está pronto para a gravação do dia seguinte.


Todo de vermelho e com tamancos pretos (tudo by Cao), Gilberto Gil entra animado no estúdio cheio de convidados: “Eu já nasci unplugged, a minha geração é unplugged e agora vem todo mundo perguntar porque eu decidi gravar acústico”, apressa-se em desmentir a novidade da apresentação. Afinal,  desde que Eric Clapton bateu recordes de vendagens com seu Unplugged, virou moda desplugar os instrumentos da tomada. Na gravação, a empolgação é total, o público reage entusiasmadíssimo, surpreendendo-se com certos momentos, como na versão forró que torna Expresso 222 uma festa ainda maior. O prazer de tocar de Gil e músicos é evidente. A gravação acaba e algumas músicas precisam ser repetidas. “Não se fazem mais discos ao vivo como antigamente”, brinca com a plateia. Este “bis programado” inclui até o que ele chama de “uma versão punk” da inocente Sítio do Pica Pau Amarelo. Exibido pela MTV, o acústico de Gil deu origem a um home video e um disco que serão lançados no começo de abril. No Brasil, o disco vai se chamar Gil Unplugged e no exterior, Gil Acústico. Com o programa da MTV acontece o contrário: aqui foi batizado de Acústico e lá fora de Unplugged. Por que essa confusão? Mistérios de registros de marcas entre MTV e a gravadora Warner.

ZEN – Místico e obscurantista, como ele mesmo se define, Gilberto Gil está cada vez mais zen. “Minha mulher diz que eu sou quase zen. Dia desses encontrei Dori Caymmi, que mora em Los Angeles e ele falou que que ouviu muita gente se referindo a mim como um cara zen, o Caetano vive me chamando de zen. Essa palavra tem sido associada a mim, mas quem dera se eu fosse”. Mais zen impossível. Diz o I Ching e Gil fica atento, pois é admirador do oráculo considerado o mais antigo livro chinês. O observador mais atento vai encontrar hexagramas do I Ching nas capas dos discos Luar, Um Banda Um, Extra e Diadorim Noite Neon. Ele conta que antes de começar o projeto comemorativo (excursão e disco) Tropicália, jogou o I Ching e recebeu o hexagrama 35, que assim recomenda: um governante esclarecido e um servo obediente, eis os requisitos para um grande progresso. Gil reconheceu ali sua porção “servo obediente” e entregou-se ao que chama de “doce liderança” do amigo Caetano. “Ele é mais racional, mais iluminista. Lidera o processo e eu vou a reboque. Ao longo de todo relacionamento, tem sido assim”.

TALISMÃ – Autor de mais de 400 composições, Gil compara sua produção “a parentes distantes que você não pode visitar com frequencia” e a cada novo show recupera algumas delas. Para o acústico, convocou duas filhas pródigas A Paz e A Novidade, gravadas por Zizi Possi e Paralamas do Sucesso, respectivamente. Também recuperou Beira Mar, faixa de Louvação (66), o primeiro disco, e Chiquinho Azevedo, homenagem ao músico, seu companheiro de prisão por posse de drogas em Florianópolis durante a conturbada excursão com Os Dosces Bárbaros, em 1976. “Eu preciso voltar a cantar tanta coisa”, diz e, meio saudosista, cantarola algumas que nunca gravou, como Copo Vazio (“uma música boa, nova, com letra forte”), gravada há décadas por Chico Buarque e Morte é Rainha, por Macalé. Qual a sua música preferida, Gil? “Várias, mas Palco é meu Talismã”. No acústico, a canção-talismã ganha o que ele define de “uma versão rebelada à melodia”, onde faz improvisos vocais à maneira dos cantores negros de soul e gospel. Na nova e acústica versão de Super Homem, A Canção, ele reconhece algumas ainfluências de Sarah Vaughan: “Abri um daqueles “bocão” como ela e a Nana Caymmi costumam fazer, mas que eu só posso fazer de brincadeira”.

Entusiasmadíssimo com o projeto Unplugged, Gil estava mixando o disco (e escolhendo as 15 músicas definitivas) quando o entrevistei. “Está muito bem gravado, tecnicamente perfeito. Para projetos desse tipo, os erros são mínimos. Ainda mais quando soube que o Eric Clapton gravou certas músicas quase 30 vezes para o seu unplugged”, comenta. Você já imaginou um encontro de Clapton, Jorge Ben e Gil, todos tocando violão numa sessão totalmente unplugged? Pois ele conta que isso aconteceu nos anos 70, no Rio, na casa do produtor André Midani e na presença de Chris Wood (ex-Traffic)). “Não tem segredo, quem toca guitarra, toca violão”, diz Gil.

O show de reencontro dos Doces Bárbaros (“Nós quatro com as vozes mais carregadas pelo tempo, só não chorei porque tive que me segurar”) na quadra da Mangueira deixou boas recordações e deve render novos frutos, inclusive uma ainda não acertada excursão nacional. Quem disse que baiano é lento? O Gil 94 está mais trabalhador que nunca e tem agenda internacional lotada para esse ano. Em junho, ele e Caetano estreiam em Nova York um show solo que depois segue temporada pela Europa. Julho, em Londres, acontece nova apresentação dos Doces Bárbaros, com repertório ampliado. Antes disso, faz turnê pelo Brasil para divulgar o álbum acústico e começa a compor músicas novas para um disco novo que vai ser lançado no final do ano. “Tenho um título provisório, mas prefiro não dizer qual. Por enquanto existe apenas alguns esboços de canções e ideias”. A intenção, ele conta, é explorar a interface entre ciência e arte, cultura, religião e filosofia. (Nota: É o disco Quanta, lançado em 1997)


No Acústico, Gil é acompanhado por uma super banda. Há quem prefira ouví-lo acompanhando-se apenas pelo violão e Gilberto Gil “adora cantar sozinho”. Mas explorador e músico também, como se define, gosta muito de extrapolar o Gilberto Gil que conhece muito bem e alçar novos vôos. “Eu já sei que sou um cara bacana, uma personalidade, e trabalhar com bandaé tudo que eu quero nesse momento”. Nos ensaios com Marcos Suzano e Celso Fonseca, ele redescobriu o prazer de fazer versões integrais e completas de versões antigas. Assim, em Sampa – sugestão de Caetano Veloso -, Gil e músicos exploraram uma sonoridade do tipo Radamés Gnatalli. Já Tenho Sede ganhou uma versão folk.

Em dezembro, faz um ano que acabou o mandato de Gilberto Gil como vereador de Salvador. “Não demonstrei talento para as funções. Era surpreendente me ver tão calado, tão inibido. Acho que a cidadania coletiva inibia a cidadania individual”, analisa. O Eterno Deus Mudança (89), gravado nessa época, foi rejeitado pelo público, recebeu críticas pesadas e chegou a ser chamado de “disco de vereador”. “Como repertório, gosto mais dele do que de Parabolicamará. Mas, como disse Caetano, eu ajudei a crítica, fazendo um disco apressado no tratamento musical, tímbrístico”. Hoje, o cidadão Gilberto Gil dedica-se ao grupo ecológico Onda Azul e faz parte da executiva nacional do Partido Verde. Já o músico Gilberto Gil é cada vez mais cidadão do mundo.
                                          Revista Audio News, 1994

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