quinta-feira, 5 de abril de 2018

Meu caro telefone fixo



Foi uma festa quando você chegou, há mais de 20 anos. E veio de graça não, custou sofridos e suados quatro mil dólares. Na primeira década você tinha uma companheira inseparável, praticamente gêmea: a secretaria eletrônica. Ainda lembro com saudade a delícia que era abrir a porta e dar de cara com aquela luz vermelha piscando como se me saudasse - "oba, tem recado" - e raramente era algo indesejável. Chegava a ligar da rua para pegar as mensagens.

Ah, e como numa canção do REM (At My Most Beautfiful), gravava as que me falavam ao coração. Dia desses encontrei uma fita daquelas pequenas que alimentava a sua companheira secretaria e ali os recados de então, de gente que se foi, inclusive. Foi bom ouvi-los depois de tantos anos e doloroso também.

Você me conectou ao admirável mundo novo da internet - a discada, claro - e nunca vou esquecer o ruído aquele. Eram horas e horas de linha ocupada. Você atarefadíssimo, até cogitei comprar outro número, mas nunca o fiz. Lembra daquele fio imenso que usávamos para andar pela casa? Era divertido.

Nos primeiros tempos você tinha menos dígitos - começava com 881 - e depois cresceu, ganhou mais um e foi promovido a 3081. Lá pela metade dos anos 90, o golpe fatal que nem percebi como tal: a chegada do celular. Aos poucos, os recados na secretaria eletrônica foram rareando, até que um dia ela quebrou e não foi substituída. Você mais mudo a cada dia.

Hoje saí da cama e ainda tentava me convencer que acordado estava lendo as notícias pelo celular. Em menos de 20 minutos, três sinais de vida seu, meu caro telefone fixo. E eram três ligações de telemarketing - duas gravações e uma daquelas senhoras fofas pedindo dinheiro para assistência social. Infelizmente, são essas as vozes que usam você para penetrar no meu mundo. E outras mais terríveis também, aquelas que tentam o golpe do falso sequestro: "Pai, Pai, Pai...", diz quase a voz chorosa pra mim que nem filho tenho. Dá pra contar nos dedos de uma mão os amigos e familiares que discam - alguém ainda disca? - seus oito dígitos. É duro dizer isso, meu caro telefone fixo, mas você se tornou um pesadelo. E um pesadelo que me custa praticamente 500 reais por ano - e para receber propagandas e ameaças.

Quando é que começou a tomar conta de você esse pesadelo chamado telemarketing? Será que você percebeu? Aos poucos, como tudo, até se apossar feito um posseiro e inviabilizar a nossa relação. Sim, inviabilizar nossa relação. Sinto muito, meu caro telefone fixo, mas não dá mais e esquecer seu número que parece incorporado a mim parece a única solução. Tudo acaba, fique triste não. Até porque o celular, nove dígitos, nem tagarela é - ele gosta mais da comunicação via escrita, algo que você nem entende o que seja. Fomos felizes, fomos sim, mas hoje não dá mais. Adeus, com carinho do Vilmar.

PS: Ingrato é que não sou e nossos momentos felizes - como esse em que você salvou minha vida - seguem comigo e vou esquecer nunca.


E aqui a canção do REM, que sempre me lembra... do meu telefone fixo :)





Um comentário:

monstra disse...

H, vou guardar seu número de fixo no meu caderninho (digo, na minha agenda do celular, né), assim em anos futuros o 3081 e o 881 também me trarão memórias. Bjs Marlene

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