Há dois anos topei com um conto de natalino de Erico Verissimo, publicado na revista O Cruzeiro, em 1939. Erico faz um passeio pelos bairros da Porto Alegre de então - Floresta, Bonfim, Cidade Baixa...O texto, descobri, nunca havia saído em livro. Bom, acabou sendo publicado no jornal Zero Hora naquele ano (link no final). Abaixo, o conto e com a grafia fim anos 30
Noite de Natal em Porto Alegre
Erico Verissimo
- No Norte, o Natal é diferente.... - dizia meu
amigo pernambucano.
- Este enthusiasmo pelo Natal – expliquei – este
costume de enfeitar pinheirinhos e fazer que o papae Noel appareça na véspera
de Natal, nos foram trazidos pelos immigrantes allemães. Ensinaram-nos também
muitas outras coisas. Algumas boas, outras más...
- É curioso. A filha da dona de minha pensão dá
a papá Noel um nome exquisito.
- Pelznickel... Era assim que muitas das
crianças de meu tempo lhe chamavam... Christkindchen é o Menino Jesus... E não
eram só as crianças de sangue allemão que conheciam e usavam esses nomes...
Pausa. Continuamos a andar. Aproximamo-nos da
rua dos Andradas. Mergulhamos no clarão dos combustores e dos letreiros
luminosos. A rua está negra de gente. Dos cafés vem o clamor de vozes, risadas,
música...
Meu companheiro para debaixo dum grande anuncio
a gaz-neom. Por um instante seu rosto fica purpureo e eu penso no conto de Poé
“A Máscara da Morte Vermelha”...
BAR ALLEMÃO
Em cima do balcão de marmore, perto da machina
registradora, ergue-se uma minuscula árvore de Natal. As velas coloridas estão
accesas e os penduricalhos lampejam, reflectindo as luzes da sala.
As mesas acham-se quasi todas occupadas.
Sentamo-nos perto do aquario. Um dos peixinhos japonezes encosta o focinho no
vidro, á altura de minha cabeça e fica me olhando.
- São conhecidos? – indaga o meu companheiro.
- Ah... conhecemo-nos de cumprimento.
Um garçom se aproxima. Pedimos chopps.
Uma victrola arremassa para o salão os compassos
duma valsa de Strauss. Aceitamo-la como se aceitam as coisas inevitáveis.
Olha em torno. Talvez sejamos os únicos
brasileiros puros (puros?) no bar. Só vejo epidermes claras, algumas caras
apopléticas, cabelleiras que vão desde o castanho bronzeado e chegam, via-ruivo
e cor-de-palha até o louro de platina. Um minuto de silêncio em homenagem a
Jean Harlow.
- Prosit! – diz meu companheiro.
- Prosit – respondo. E, depois do primeiro gole,
ainda com um bigode de espuma, accrescento – Qual! O de que nós dois precisamos
é de uma bela nacionalização...
As conversas crescem, sobem como ondas quentes.
Faz calor. Um senhor gordo passa o lenço pela nuca vermelha, lustrosa e
pregueada. Uma vasta senhora cyclópica, abana-se com um leque, bate com elle
nos seios fartos que decerto já amamentaram algum siegfried.
As paredes do bar estão eriçadas de pontas de
cervo. Viva a falta de malícia germânica!
Os peixes nadam por entre algas. Faz de conta
que elas são as suas arvores-de-natal. Mas... nada de sentimentalismos em torno
de peixes.
Strauss retirou-se de scena. Agora saem da
victrola os acórdes duma doce melodia conhecida. Há como que um vácuo na sala:
um subito buraco de silencio se abre. E de repente, sem o commando dum maestro,
todos começam a cantar “Sttile Nacht, Heilige Nacht...” Parece que se sentem
felizes. Mas duma felicidade triste. Lembram-se decerto de Vaterland. E no
entanto muitos deles são apenas netos de allemães, nunca viram a Allemanha a
não ser em cartões postaes.
- Raça... Uma grande coisa, amigo! Mas que
perigo!
Pegamos o chopp e saímos.
Concurso de arvores de natal instituído por uma
grande empresa. Lá vae serenamento dentro dum Lassale a comissão julgadora.
Poetas, jornalistas, pintores, esculptores e um senhor do commercio local.
Visitam as casas que se inscreveram no concurso. São recebidos com
amabilidades, doces e bebidas. Na primeira casa, tudo optimo. Uma linda arvore.
Crianças adoraveis. Um casal muito sympathico. Passam para a segunda casa. A
mesma scena. Mais bebidas. Já o mundo, para a commissão julgadora, passa a ser
um estranho logar cheio de alegrias fumegantes, de gente adorável e da mais
absoluta e excitante alegria. Terceira casa. “Agora queremos oferecer aos
senhores alguma coisinha para beber...”. optima idea. E lá se vae a comissão
julgadora. Quarta casa. O presidente da comissão entra na sala, olha a arvore
de Natal e depois chama o secretario para um canto e, com voz arrastada e
grossa, lhe pergunta:
- Senhor secretario... não acha... não acha...
que é um esbanjamento inutil... fazerem... du... duas arvores de Natal?
O secretario, que já não pode com o peso das
palpebras, fixa o olhar no pinheiro enfeitado e protesta:
- Perdão, Senhor presidente... Duas não... Três!
NA FLORESTA
Passamos por uma casa de janellas illuminadas.
Relanceio os olhos para dentro da sala. Basta aquela visão rapida para eu
recompor depois mentalmente a scena. O dono da casa deve se chamar Shultz ou
Schmidt. Trabalha numa firma allemã da rua Sete. Tem tres filhos: Willy, Karl e
Trude. Estão esperando o Pelznickel... A arvore de Natal vem exercendo suas
funcções regularmente há seis annos, desde que Willy nasceu. Frau Shultz ou
Schmidt fez uma linda cuca. Há dois barris de chopps na area. Os rapazes da
firma vão aparecer. “Que farra!” – antegoza o senhor Shultz ou Schmidt.
Cantarão abraçados canções engraçadas. Pelznickel vae trazer uma boneca para
Trude, soldadinhos nazistas para Karl e um avião de bombardeio para Willy.
É uma casa alta e antiga, com azulejos. Família
tradicional. Grande arvore de Natal na varanda.
O dono da casa é medico. Tem quatro filhos. Os
dois primeiros acreditam em papai Noel, os outros dois não.
O radio enche a casa de musica. Vozes alegres se
escapam pelas janellas escancaradas.
Dona Maria vae buscar os gelados no
refrigerador. Na grande mesa alinham-se pratos com sandwiches, nozes, avelãs,
castanhas e passas. Ouve-se o estouro de uma garrafa de champagne que se abre.
Não há canções tradicionaes.
O senhor nacionalista conversa com um tenente do
exercito:
- Pois é. Precisamos acabar com esses
estrangeirismos. Nada de papá Noel ou de Pelznickel. Vovô índio... É... Vovô
índio. Que diabo! Temos neve? Temos pinheiro? Isso é coisa para a Europa.
- A America para os americanos – obtemporou o
official.
O senhor nacionalista fica um instante pensativo
e depois continua:
- E porque não promovemos o nosso Negrinho do
Pastoreio a Papae Noel? Ficava admiravel. Em vez de pinheiro, um umbu... ou
outra arvore menor... Bastava acender uma vela para o Negrinho e ficar a pedir
um presente...
Ficou sorrindo não para o tenente mas para a
propria idéa.
Aqui nessa zona de casas melancolicas, pequenas
e velhas começou a cidade. Olho indiscretamente para dentro de uma casa de
porta e janella e vejo uma arvore de Natal solitaria no centro da pequena sala.
Luz amarellada a allumiar meia duzia de caras tristes. Casa decerto de um
modesto funcionario publico que não foi contemplado no reajustamento. Elle, a
mulher, a filha solteirona, a filha noiva ao lado do eterno noivo (que decerto
tambem não foi contemplado em coisa nenhuma nesta vida). Estão tristes e
graves, parece que a arvore de Natal é uma criança morta e elles estão ali em
silencio, velando o anjinho...
Para as famílias que moram nas velhas barcaças encalhadas na praia dos Navegantes não há Natal.
NOS MOINHOS DE VENTOS
Palacete dum industrialista allemão que ficou
rico com a guerra (a primeira). Grande parque com palmeiras, pinheiros e outras
arvores que a escuridao e a falta de conhecimento de botanica me impedem de
classificar.
Janelas fechadas. A “fraulein” que cuida da casa
saiu com o namorado, um mecanico ruivo e athletico. Decerto a esta hora estão
bebendo num bar qualquer.
Os donos da casa foram passar o Natal na
Allemanha.
NO BONFIM
O Bonfim é o “ghetto”. Lojas, cafés, dois
cinemas, judeus velhos sentados nas frentes das casas, barrete negro na cabeça,
longas barbas grisalhas ou completamente brancas. Mocinhos e mocinhas a passear
nas calçadas. O centro social israelita. Salões de bilhar. Aqui e ali uma casa
de família brasileira.
Para esta gente Christo ainda não nasceu.
Mas aquella meninazinha que ali está na calçada,
de dedo na boca, e que se chama Lea, deita olhares compridos de inveja para a
arvore de Natal que scintila na casinha da família brasileira.
COLONIA AFRICANA
Uma zona em que as fronteiras do “ghetto” e da
colonia Africana se misturam. Começamos a ver negros e negras endomingados para
festejar o Natal. Alguns deles foram ao “cabellizador” alisar a carapinha,
muitos botaram na cabeça, no lenço, na lapela uma loção que tem um cheiro que
lembra o de doce de batatas.
A rua é de terra batida cor de rosa. A casa, de
taboa. A familia é grande e há muitos convidados. A maioria delles se acha no
terreiro, debaixo das árvores. Um mulato cabellizado toca um violão. Um preto
começa a tocar um samba. O refresco corre a roda (Framboeza, naturalmente). Na
sala de visitas há um presepio encardido. E também um pequenissimo e esmirrado
pinheirinho cheio de curiosos enfeites: vidros de iodo vasios, lampadas
electricas queimadas, colares de contas coloridas, vidrilhos e flores de papel
de seda.
Tudo indica que a festa vae acabar em macumba.
DUVIDA
Nas ruas alguns homens se abraçam e quasi todos
parecem alegres. Desejam-se bom Natal e muitos aproveitam o pretexto para tomar
tremendas bebedeiras.
- Eu só queria saber uma coisa...
- Que é? – indagou o companheiro.
- É se essa gente realmente se lembra que hoje
se festeja o nascimento de Jesus...
O amigo parou, franziu a testa numa careta de
estranheza e exclama:
- Mas é mesmo, rapaz! E eu que nem me lembrava
disso!?
NOTA SENTIMENTAL
O Natal do poeta solitario que não tem família nem esperança e que anda pelas ruas como cachorro sem dono a olhar para as estrellas?
Oh! Não... Mil vezes não!
Revista O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939
Aqui, o conto quando publicado por Zero Hora, há dois anos
https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2015/12/confira-conto-natalino-de-erico-verissimo-inedito-em-livro-4934187.html
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