Colunas de Luiz Carlos Maciel na Revista Ele & Ela |
Por meninice minha, a coluna
Underground do Pasquim que Luiz Carlos Maciel escrevia no Pasquim me chegou com
alguns anos de atraso. E eu adorava uma coluna que ele mantinha na revista Ele
& Ela no final dos anos 70. Sim, naqueles tempos as revistas de “mulher
pelada” também eram pra ler e através delas eu, garoto interiorano, fui
descobrindo um mundo. As revistas se foram após esses anos todos, as colunas de
Maciel não – as páginas arrancadas passaram a habitar os livros dele, que volta
e meia voltava a ler. Fiquei em dúvida de qual postar aqui: Sobre o Amor, Carta
Sobre o Mistério e A Mentira do Tempo, são as preferidas e não sei se foram
publicadas em livro. Optei por Sobre o Amor. Acho que ele gostaria. Ah, éramos
amigos no Facebook e quando ele aceitou minha solicitação de amizade foi uma
alegria tão grande, como se eu o tivesse conhecido, o que não ocorreu. E hoje,
quando soube de sua morte, bateu uma tristeza imensa.
Sobre O Amor
Luiz Carlos Maciel
Maciel, o gato Antonico e sua mulher Maria Claudia nos posters: contracapa do livro Negócio Seguinte (1982) |
Meu Amor, resolvi escrever,
hoje cedo, quando acordei, uma declaração de amor. Acordei em paz e achei que
seria fácil escrever coisas bonitas – pois parece que se escrevem,
naturalmente, coisas assim, quando se está em paz. Considerei, com espontâneo
bom senso, que, afinal, de contas, não pode existir melhor literatura do que
aquela que puder fazer um bem qualquer,
mesmo um momento de alegria ou simples prazer, a nosso semelhante. E quem é meu
semelhante? Você, vida, a quem julgo amar, o tempo todo, como a mim mesmo e, em
certas circunstâncias, nas quais pareço experimentar, na plenitude, o que
chamam de paixão, até mesmo mais do que isso.
Em seguida, porém,
pensamentos posteriores, de ordem histórica, lançaram sombras sobre o sol
nascente. Não, raciocinei, não vivemos um tempo de declarações de amor, mas de
bens, de imposto de renda e, até, de princípios. Declarações de tudo, menos de
amor. Eis uma força, sem dúvida real, cantada pelos poetas, venerada pelos
religiosos, especulada, quase sempre com susto, pelos filósofos que, no
entanto, não é reconhecida pela ordem formal das coisas. O amor nos parece,
oficialmente, um acidente mais ou menos marginal, uma perturbação imprevista
pelas leis, uma tempestade tão incontrolável quanto qualquer tempestade, e
contra a qual – segundo o normal, o socialmente aceitável – é necessário alguma
espécie de proteção.
Sim, na ordem social em que
vivemos, a magia da paixão é um estado considerado um tanto ou quanto
patológico, e nós procuramos, através de feitiçaria disciplinadora de nossos
costumes, instituições, preceitos e preconceitos, substituí-la pelo medo e a
necessidade de segurança. Amor não dá camisa a ninguém – esta é a conclusão da
ideologia dominante, introjetada pela educação e outros meios de coação social
em cada um de nós. O amor não dá, ao contrário do cálculo, da representação
cotidiana ou do trabalho compulsivo e neurótico que nos acenam com promessas de
camisas, calças, sapatos, sobretudos e outras miragens diabólicas. Talvez essa
não seja uma maneira muito natural de viver, mas não nos importamos com isso,
desde que que resolvemos que o ser humano é aquele cuja natureza, por uma
contradição chocante, mas que não nos surpreende, é a de se sobrepor à própria
natureza, conquistá-la, dominá-la e, por fim – como é inevitável, por uma
questão de automática justiça – assassiná-la dentro de cada um de nós.
Assim são as coisas – e não
adianta espernear. E aprender o jogo, segundo as normas vigentes, a dançar
conforme a música, parece ser uma condição sine qua non de sobrevivência, num
mundo em que a violência também parece crescer, sem impedimentos maiores, a
partir da suposição tácita de que a hostilidade mútua, o ódio em todas as suas
manifestações, das mais grosseiras às mais sutis, é verdadeiro regulador de
nossas relações interpessoais e a base de nossa coexistência. Por isso, até nos
sentimos vagamente bem, quando temos raiva de alguém ou alguma coisa, porque
tal sentimento nos adapta ao mundo tal como ele funciona, não nos sentimos
estrangeiros ou marginais quando ele nos domina mas, pelo contrário, cheios de
razões e direitos, enquanto o amor é sempre tingido de culpa pelas ferozes
artes do sistema.
A primeira regra do jogo
social, observa Alan Watts, é fazer de conta que não se trata de um jogo.
Apontar a farsa como farsa, denunciá-la, mostrar que o jogo, ainda que as
apostas sejam feitas com o sangue de cada um, é uma audácia que desqualifica o
jogador e deve ser devidamente punida. Confesso que já tentei esse lance, meu
amor, como muitos de nós tentaram – e sei que sempre é possível tentar de novo,
desde que não nos abandonem a imaginação e a coragem – e transgredir algumas de
suas regras, na certeza de que um jogo, qualquer que seja, mesmo os que são
diabolicamente apresentados em nome de ordem e da justiça humanas, é um jogo e
que, portanto, suas regras só podem ter sido feitas para serem mudadas, a
qualquer momento sempre que for necessário. Tentei – e não me dei muito bem.
Tentei – e posso tentar de novo. Talvez esteja até tentando, sem saber, como se
não nos restasse mais nada, senão tentar, e reiterar as tentativas, até que o
jogo, por um milagre incalculável – pois só quem pode aspirar a esse momento é
o coração, e não a cabeça -, consentisse em nos mostrar a verdadeira face e recuar
para seu verdadeiro lugar, que é atrás, e não na frente do amor. Não há mais
nada a fazer senão tentar, mesmo não tentando – um truque, aliás, recomendado
por muitos sábios, desde Lao Tsé, pelo menos -, pois a aspiração por um mundo
melhor parece ser o impulso fundamental
de nossa natureza, o avatar mais amplo e luminoso do próprio amor.
Tentar é, por isso, amar ao próximo como a si mesmo, como outro sábio
recomendou. E como eu te amo, meu amor. Agora, amor, coloque-se no lugar do
amor, e veja o que você faria num quadro desses em que toda espontaneidade é
suspeita e toda maquinação cultuada como um deus. É possível que você
simplesmente silenciasse e abrisse, no vazio desse silêncio, o espaço para uma
carinhosa estratégia. É isso, me parece, que o amor faz, está fazendo, o tempo
todo, diante dos dentes cegos da repressão. Ele se cala e, no silêncio,
alimenta as próprias energias, em calma, em paz. Em silêncio.
Desmentir as regras do jogo
é deixar que elas, simplesmente, se desmintam como com efeito o fazem – para quem
vê bem – todos os dias, a todo instante. A vida, filha do amor, o auxilia sem
descanso nessa tarefa desmistificadora e também silenciosamente cria suas
surpresas, seu terror e sua maravilha. Por isso, como dizia ainda o velho Lao
Tsé, não sabe aquele que fala e cala aquele que sabe.
Tudo, não apenas o resto, é
silêncio, desde que o amor, fonte da vida, é silêncio. Não precisamos misturar
declarações de amor com as de bens, rendas ou princípios. Basta-nos olhar.
Assim, nos olhos. Basta-nos sorrir. Basta-nos dar as mãos. Basta-nos o
silêncio.
Mostrar que o jogo é um
jogo, tentar, é não tentar: abrir um espaço, abraçar o vazio, para que, atrás
ou na frente, fique quem deve estar lá. Não vamos deixar que o mundo, as
exigências, e repressões do mundo usurpem o lugar de nosso amor e substituam
com sua feitiçaria, tão cheia de promessas quanto de traições, a magia
primordial que é a origem desta nossa ilusória existência. Calemo-nos. Vamos
amar em silêncio. Que o carinho anteceda o discurso, que a compreensão silencie
o argumento e a sensação acalme o pensamento enlouquecido que manipula o grande
jogo do mundo. Não há nada a discutir, não há nada a dizer. Não há nada a
pensar.
O amor, deixe que eu repita,
é o silêncio.
Publicado na revista
Ele & Ela, março de 1978
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