O escritor Jorge Amado tinha 46 anos quando escreveu essas recordações para a Revista da Semana. Era 1958, o ano em que foi lançado Gabriela, Cravo e Canela. Aqui, ele lembra liricamente os natais passados no estrangeiro - França, Rússia, China, Tchecoeslováquia -, enquanto rememora os distantes natais de sua infância em Ilhéus, tempos de pastorinhas, bumba-meu-boi, presépios nas salas de visita. No final, link para Visita ao Presépio de Quinquina, conto natalino pouco conhecido dele que a revista O Cruzeiro publicou em 1939. Quinquina, 20 anos depois, vira personagem de Gabriela, o presépio também. "Quando reencontrarei o natal de minha infância?": abaixo é tudo Jorge Amado.
Jorge Amado
Quando reencontrarei o natal de minha infância? Não vinha
Papai Noel, figura europeia desconhecida nas terras do sul da Bahia, mas
deixávamos crianças nossos sapatos na porta do quarto e nele deviam ser
depositados presentes. Não havia Papai Noel mas, em compensação, iniciavam-se
os folguedos populares – ternos de pastorinhas, bumba-meu-boi, reizado –
estendendo-se até as festas dos Reis em janeiro. E os presépios nas salas de
visitas das casas de famílias eram visitados e admirados pelos olhos curiosos
dos meninos. Não tinha o natal esse caráter de festa estritamente familiar,
acontecendo no interior das casas onde os parentes se reúnem e confraternizam,
a neve lá fora caindo em flocos, o frio rondando cidades e campos, o fogo aceso
nas lareiras, como na Europa. Ao contrário, as ruas estavam cheias: a caapora,
o boi e o vaqueiro, as belas pastorinhas dançavam e cantavam, todo mundo saía
de casa, ia-se em romaria aos presépios, esperava-se a missa noturna.
Só homem feito eu iria viver o Natal europeu e adaptar-me
a ele, incorporá-lo ao meu calendário. Esse Natal que meus filhos conhecem, tão
diferente daquele que encheu minha infância, cuja lembrança carrego dentro de
mim, eco de vozes perdidas, visão de cores tropicais, a beleza das pastoras, a
poesia dos presépios.
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Paris é a
cidade do conhecimento fácil, onde se multiplicam as relações, onde uma parte
da população parece em férias permanentes, onde se encontram homens e mulheres
dos mais diferentes países. Foi em Paris onde primeiro dei-me conta do
significado do Natal europeu, dessa festa de família onde não cabem estranhos.
Muitos são os meus amigos franceses, gente de condição diversa e – nem sei
mesmo porquê – sempre esperei que pelo Natal afluíssem os convites. Via Paris
vestindo-se para a festa, a multiplicação das árvores de Natal, as vitrinas
alegres de presentes. Recordava o Natal de Ilhéus,
tão diferente: naquela altura do ano estariam as pastorinhas preparando os
vestidos, ensaiando as cantigas, as velhas tias armando os presépios.
Tanto nos convidavam em Paris e para tantas coisas... Só
para o Natal ninguém nos convidou e no hotel dos estudantes, ao lado do
Boulevard Saint- Michel, um grupo de brasileiros nos reunimos mais ou menos
tristemente para recordar a Pátria e os parentes distantes.
Foram por acaso diferentes os outros natais passados na
Europa? Não creio que houvesse diferença fundamental pois para mim era a noite
quando desapareciam todos os amigos, cada qual em sua casa, com seus
familiares, na ceia tradicional.
Com Guillen (sentado à direita de Jorge): China, 1952 |
Passei um natal no transiberiano,
viajando para a China. Lá fora era a
estepe gelada, o frio de quarenta graus abaixo de zero, aquela paisagem vazia
de gente, onde de raro em raro surgia uma casa, a fumaça de uma lareira. Na
interminável viagem perdíamos a conta dos dias. Íamos dois casais, o poeta
cubano Nicolás Guillen e sua esposa eram nossos companheiros de viagem. Já no
fim da tarde, o poeta descobriu ser noite de Natal. Foi um Natal de recordações
de infância, eu a contar das festas da zona do cacau, ele a recordar o fim do
ano em Cuba. Falávamos de comidas e
de canções, lembrávamos pequenos detalhes, sentíamos de repente toda a imensa
distância a nos separar de nossas pátrias do outro lado do mundo. Davomo-nos
conta subitamente de como estávamos longe, montanhas e oceanos nos separavam de
nosso chão, de nossos habitas, de nossa gente. A noite gelada da Sibéria nos cercava. Mas canções de
Cuba e do Brasil encheram a cabina do trem.
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A bailarina Ulanova |
Em Moscou um
ciclo de festas nas ruas e nos clubes se desenrola no fim do ano. O Pai Nicolau
ergue-se nas praças junto aos pinheiros carregados de lâmpadas multicolores e
lantejoulas. Nos clubes de cultura, nos palácios de pioneiros, nas ruas sobre
tablados, dançam moços e velhos. Recordo de ter ido num domingo de fim de ano
ao Palácio das Colunas, no centro de Moscou, a uma festa onde eram distribuídos
brinquedos para as crianças. Uma enorme árvores de Natal no centro da sala
imensa. Os palhaços mais célebres do circo moscovita, Karandachi entre eles, os
mais célebres bailarinos, Ulanova entre eles, artistas conhecidos, divertiam a
criançada. Festa semelhante assisti em Leningrado
numa casa de pioneiros.
Mas o Natal propriamente dito, a noite de Natal, essa era
reservada para a família. Lembro-me de como minha intérprete nesse Natal
soviético, solicitou-me que a dispensasse naquela noite e pediu-me que lhe
emprestasse o automóvel para ela transportar para casa a árvore de Natal
(vendiam-se numa praça pinheiros de todos os tamanhos). Também em Moscou, na
noite de Natal, cada um está com a sua família, no recesso do seu lar.
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Passei em outros países, em distantes cidades, vários
natais. Para mim significavam sempre saudade, lembrança da pátria, evocação de
festas do nordeste, de líricas pastores, do bumba-meu-boi nas ruas das prquenas
cidades.
De um Natal me recordo, o triste Natal do viajante.
Estava na Europa e calculei meu tempo de modo que deveria chegar ao Brasil na
véspera de Natal. Já me adaptara ao Natal como festa de família, entre os meus,
na alegria dos parentes reunidos. Era um inverno especialmente duro, a noite
chegava antes do tempo no meio da tarde, não havia visibilidade nos aeródromos
e meus cálculos de viagem arruinaram-se. Dois, três dias, sem sair aviões. Eu
estava em Praga. Na véspera de Natal
mais uma vez estive quase o dia inteiro na expectativa de saída do avião. Mais
uma vez ele falhou. Voltei para o hotel pela tarde. Um cartaz na portaria
avisava que naquela noite o hotel não serviria jantar, os hóspedes que o
desejassem deviam pedir com o tempo uma ceia fria para a noite. Foi o que fiz e
dormi. Acordei pelas nove horas da noite. Vesti-me e saí. Não havia uma pessoas
nas ruas cobertas de neve. Estavam todos em suas casas, festejando. No hotel
mal iluminado, apenas um empregado. Andei sem rumo pela cidade. Não encontrava
ninguém. Tudo fechado. Nem mesmo os vendedores de salsichas assadas, nem mesmo
os bebedores de cerveja. O silencia e a neve. Uma tristeza sem fim me envolveu.
As janelas iluminadas e lá dentro a festa, a alegria. Eu andava sem rumo e
jamais senti tanto o significado do Natal.
Revista da Semana, 27 de dezembro de 1958
Abaixo o link para Visita ao Presépio de Quinquina, conto natalino pouco conhecido de Jorge Amado, que saiu na revista O Cruzeiro, em 1939, quando ele tinha 26 anos.
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